MARCELO LYRA

Casa-Grande e Senzala na terra do Sol em “Propriedade”, de Daniel Bandeira

O filme, um dos melhores brasileiros do ano, transita entre duas situações: a mulher rica presa no carro de luxo e os funcionários pobres que perderam tudo, por Marcelo Lyra

Cena de Propriedade, de Daniel Bandeira.Créditos: Divulgação
Por
Escrito en DEBATES el

Por Marcelo Lyra*

Acaba de estrear nos cinemas um dos melhores filmes brasileiros do ano: Propriedade, de Daniel Bandeira. É um drama de suspense com pitadas de terror que trabalha bem os elementos do gênero e de quebra conta com um elenco em estado de graça, particularmente Malu Galli. Ela faz Tereza, uma mulher de classe alta que sofre um trauma quando é assaltada e feita refém no meio da rua. Em choque, quase sem conseguir falar, ela é levada pelo marido para relaxar numa temporada na bela fazenda de propriedade da família. O problema é que os funcionários estão revoltados por saberem que a propriedade está para ser vendida e todos perderão emprego, bem como a moradia onde vivem há algumas gerações. O casal de proprietários chega justo quando o conflito explodiu e o caseiro da fazenda foi morto por homens exaltados. Começa uma rebelião e na confusão Tereza consegue fugir, trancando-se no luxuoso carro blindado que o marido acabou de comprar. O carro se transforma numa espécie de quarto do pânico.

O filme transita entre duas situações: a mulher rica presa no carro de luxo e os funcionários pobres que perderam tudo, um microcosmo que parece inspirado no clássico Casa-Grande & Senzala, do Pernambucano Gilberto Freyre. A fotografia de Pedro Sotero (Bacurau) é genial, trabalha elementos expressionistas de claro e escuro e consegue um equilíbrio entre três situações antagônicas: as cenas claustrofóbicas dentro do carro, os conflitos no ambiente externo e as cenas dentro da casa grande onde a rebelião acontece. Nesse sentido vale destacar o trabalho da montagem, que transita com agilidade entre os três ambientes e sabe dosar com precisão o timing de suspense, as cenas de ação e os momentos mais reflexivos onde se percebe a incomunicabilidade entre classes sociais separadas por desejos opostos.

Há também um elemento extra: os funcionários revoltados até então eram queridos pelos patrões e trabalhavam para a família há gerações. Alguns deles parecem se compadecer por Tereza, encurralada numa ratoeira (a cena do rato só reforça essa metáfora. Mas o conflito de classes parece deflagrar um ajuste de contas engasgado na garganta há décadas.

Além do contraste entre classe alta e desfavorecidos, há uma justaposição entre modernidade e a vida simples. Toda tecnologia do carro de luxo é inútil pois a ignição que responde a comandos de voz não reconhece a voz traumatizada de Tereza. Da mesma forma, seu celular de última geração não serve para nada num lugar quase sem sinal e o wi-fi vem do modem dentro da mansão, desligado pelos funcionários. Da mesma forma, o conforto do carro de luxo vai se perdendo à medida em que os funcionários tentam fazer com que Tereza saia dele.

Alguns críticos afirmaram que o filme faz com que mudemos de posição, ficando ora do lado da mulher ora do lado dos trabalhadores. Eu não senti nada disso. Estive sempre ao lado da mulher traumatizada e indefesa diante da turba enfurecida e assassina. Em muitos momentos a ideia de uma mulher indefesa contra todos me lembrava o contexto do Impeachment de Dilma Roussef e não é improvável que haja alguma influência já que o roteiro foi escrito na mesma época.

Propriedade estreia num período muito ingrato, às vésperas de Natal e fim de ano. Por conta disso, talvez passe despercebido por parte dos cinéfilos, o que seria uma perda lamentável, pois trata-se de um dos grandes filmes brasileiros.

*Marcelo Lyra é formado em Jornalismo pela PUC-SP em 1989, cursou as disciplinas de montagem, crítica de cinema e de história da crítica, ambos na Escola de Comunicação e Artes da USP; Foi crítico de cinema do Caderno 2 do Jornal O Estado de S. Paulo, do Jornal da Tarde e colaborador das seguintes publicações: Revista de Cinema, Jornal do Brasil, Revista Bizz entre outras.