Por Marcelo Lyra*
Morreu na madrugada desta quinta-feira (19) o genial pesquisador de cinema Antônio Leão, o cara mais dedicado e incansável que conheci na área de cinema brasileiro. Se só tivesse escrito o "Dicionário de Filmes Brasileiros", Leão já seria digno de uma estátua em frente à combalida Cinemateca Brasileira. Mas em seguida ele fez o hercúleo "Dicionário de Filmes Brasileiros de Curta e Média Metragem", que é uma coisa inimaginável, um catálogo perfeito de tudo que se produziu no formato entre 1897 a 2006, quase 18 mil filmes.
Leão escreveu ainda “Astros e Estrelas do Cinema Brasileiro”, um dicionário sobre filmes feitos em 8mm, o “Dicionário de Fotógrafos do Cinema Brasileiro” e recentemente “Enciclopédia Mazzaropi de Cinema”.
Conheci o Leão em 2001, quando ainda trabalhava no jornal O Estado de S. Paulo. Desde então, sempre me surpreendia o conhecimento enciclopédico que ele expunha com uma simplicidade que era bem dele. Jeitão de gente tranquila do interior, olhando você não imaginava estar diante de uma enciclopédia ambulante.
Seu livro sobre filmes brasileiros tem tudo sobre todos, informações e ficha técnica que nem os próprios diretores dispunham. É um trabalho essencial para pesquisadores e jornalistas da área de cultura. Nada escapa ao seu olhar atento.
Em 2004 ele contou que estava escrevendo um livro parecido sobre curtas e médias metragens. Falei: "Nossa, Leão, isso é praticamente impossível. É tanta coisa, é trabalho para um século". Dois anos depois lá estava ele lançando o livro. Não acreditei quando comprei. Quase 18 mil filmes catalogados com ficha técnica. Diversos diretores citados perplexos. A pergunta que mais ouvi foi "Onde ele conseguiu descobrir isso?". Sim, porque muita coisa nem os próprios diretores tinham mais. Meses atrás um pesquisador de Santos me procurou para saber sobre um curta de Rogério Sganzerla, que teria sido produzido por Maurice Legeard, fundador do Clube de Cinema de Santos. Olhei no dicionário e lá estava o curta, produzido pelo Clube de Cinema, com informações que nem no IMDB existiam. Não era o conhecido "Documentário", curta do Sganzerla. Era outro, mas estou fora da minha cidade neste momento e não tenho como consultar o precioso dicionário.
Em 2002 estava terminando meu livro sobre Carlos Reichenbach "Cinema Como Razão de Viver". O primeiro filme do Carlão, "Corrida em Busca do Amor", era tido como perdido. Na busca para tentar encontrar o filme, liguei para o Leão, que era também co-fundador do Clube de Colecionadores de Filmes em 16mm, e ele, sempre solícito, disse que não sabia nada, mas ia perguntar para colegas. Meses depois ele telefonou eufórico: "Achamos uma cópia em perfeito estado", que tinha sido comprada anos antes, sem título, naquela feira de antiguidades da rua Benedito Calixto.
O Clube fez uma sessão exclusiva comigo e com o Carlão, que me proporcionou uma experiência incrível de ver o Carlão felicíssimo por rever seu filme, lembrando de várias histórias das filmagens. Tivemos outras conversas, até discutimos porque ele era fanático pelo Corínthians, e eu, santista, detesto o Timão. Ele sempre lembrava de me sacanear nas raras vitórias do Timão contra meu Peixão. Mas Leão sempre foi um amigo querido e, mais do que isso, muito respeitado.
Hoje acordei triste com essa perda. Aos 63 anos, ele ainda tinha muito o que dar ao cinema. Num país sério, ele teria sido contratado para examinar o acervo da Cinemateca, catalogar o que não tinha sido catalogado, organizar. Certamente o faria em pouco tempo. Posso imaginar sua expressão feliz em meio aos filmes, alegre como criança num parque de diversões. No mínimo deveria ter sido contratado por alguma universidade de cinema ou ter apoio público. Mas quem disse que esse país é justo? Leão sempre pesquisou sozinho, sem apoio. Seriam necessários uns cinco Marcelos Lyras para dar conta do trabalho dele, pois fazia juz ao nome: era um Leão na pesquisa. Me sinto pequeno diante do desafio de homenageá-lo, da grandeza da importância desse homem para a memória do cinema brasileiro. Uma perda comparável ao incêndio da Cinemateca do MAM décadas atrás.
*Professor, crítico de cinema e jornalista. Formado em jornalismo pela PUC-SP em 1989, cursou as disciplinas de roteiro, montagem, crítica de cinema e de história da crítica, na Escola de Comunicação e Artes da USP. Passou por quase todas as editorias de jornais até chegar, em 1999, ao Caderno 2 do Jornal O Estado de S. Paulo, quando tornou-se repórter de cinema e eventualmente assinava a coluna de Filmes na TV. Foi crítico de cinema do Jornal da Tarde e colaborador de inúmeras publicações, sempre na área de cinema. Atualmente escreve para o jornal Valor Econômico, além de ministrar regularmente cursos sobre crítica de cinema, história do cinema, cinema brasileiro e outros. É autor do livro “Cinema Como Razão de Viver”, publicado em 2003. Em 1993 foi vencedor do prêmio Abic de melhor reportagem.