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Justiça manda Nunes reintegrar projetos culturais excluídos da Lei Paulo Gustavo

Fórum revelou no ano passado que mais de 30 coletivos culturais da periferia paulista foram desclassificados de forma arbitrária

Manifestação de diferentes setores culturais em São Paulo em setembro de 2024.Créditos: Reprodução de vídeo/Brasil de Fato
Escrito en CULTURA el

O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ-SP) decidiu que todos os grupos artísticos periféricos prejudicados pela desclassificação arbitrária da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (SMC) no edital da Lei Paulo Gustavo em 2024 sejam reintegrados ao programa. A decisão liminar de caráter de urgência foi concedida no último dia 10 de janeiro e cabe recurso.

Em outubro do ano passado, a Fórum trouxe à tona o caso dos mais de 30 coletivos culturais periféricos de São Paulo que estavam sendo afetados pela gestão do prefeito Ricardo Nunes. Diante da situação, coletivos elaboraram e divulgaram uma carta aberta, na qual manifestavam a preocupação com a sobrevivência da cultura local e exigiam a habilitação dos proponentes. O edital fornece recursos financeiros para a manutenção e desenvolvimento dos projetos, necessários para o fomento da cultura pelo coletivos. Apesar da mobilização, a SMC reintegrou apenas um espaço independente

Indignados com a decisão, artistas ingressaram com uma ação judicial contra o órgão municipal, buscando o reconhecimento de todos os agentes que haviam sido desclassificados indevidamente, e que agora lutam pela permanência da arte periférica.

“A secretaria fez como uma exceção, ela não reintegrou todos os outros coletivos que foram desclassificados pela mesma causa. Se ela aceitou que errou com uma, ela tem que aceitar que errou com todos”, relatou um dos representantes dos coletivos periféricos à Fórum.

À época, o juiz Antonio Augusto Galvão de Franca, encarregado da ação de um agente cultural excluído da seleção, reconheceu a legitimidade das manifestações dos grupos contra o governo Nunes no inquérito. O autor da ação, Marco Antonio Trocoli, era Microempreendedor Individual (MEI).

“Havendo dubiedade no edital e tendo o impetrante formalmente consultado a Administração sobre tal questão, obtendo inclusive aval inicial, com aceitação de sua participação, não caberia sua superveniente exclusão pelo mesmo fundamento”, descreveu Augusto Galvão no processo.

No dia 12 de dezembro foi publicada no Diário Oficial somente a reintegração de Marco Antonio, enquanto outros coletivos seguem excluídos. “A vista dos elementos constantes, informamos a reintegração do proponente Marco Antônio Trocoli da lista classificados do Edital 01/2023/SMC - Prêmio Cultura Viva e Espaços Culturais - Lei Paulo Gustavo, em face da liminar concedida através do processo judicial n° 1089776-92.2024.8.26.0053”.

'Não caberia exclusão': projetos culturais da periferia estão em risco

Na decisão concedida este mês, o desembargador e relator Antonio Celso Campos de Oliveira Faria, responsável pelo processo movido pelo Centro Cultural Afrika e outros coletivos contra o governo Nunes, confirmou que há ambiguidade no edital, que foi dada uma resposta favorável à sua inscrição pelo próprio órgão e, por isso, a decisão liminar urgente é favorável aos coletivos, exigindo a reintegração ao concurso:

Veja decisão liminar proferida em caráter de urgência:

“Em princípio, em sede de cognição sumária, constato que houve manifestação administrativa, indicando que o impetrante poderia participar do certame (Inicial fls. 11 e 103) na modalidade na qual se inscreveu. Ademais, havendo dubiedade no edital e tendo o impetrante formalmente consultado a Administração sobre tal questão, obtendo inclusive aval inicial, com aceitação de sua participação, não caberia sua superveniente exclusão pelo mesmo fundamento. Desse modo, conforme os princípios da boa-fé e da preclusão administrativa, entendo que o impetrante deverá ser reintegrado ao concurso. Ante o exposto, defiro a liminar, determinando a reintegração do impetrante ao concurso, apenas com a ressalvada de que o pagamento de eventual prêmio em seu favor deverá aguardar o trânsito em julgado de potencial sentença de concessão da segurança”

Em defesa da sobrevivência dos espaços culturais independentes periféricos, os diretores artísticos também fizeram um abaixo-assinado na comunidade Avaaz, uma plataforma de mobilização global que permite aos usuários criarem petições e campanhas sobre questões sociais, políticas e ambientais. O manifesto precisa de 500 assinaturas e até o momento recebeu 454 manifestações.

A petição declara que a cultura é um direito constitucional e um instrumento fundamental para a construção de uma sociedade mais justa, plural e democrática. "Os espaços culturais independentes são pilares dessa construção e não podem ser ignorados ou excluídos por falhas administrativas. Exigimos que a Prefeitura de São Paulo cumpra sua responsabilidade e assegure que os recursos da Lei Paulo Gustavo sejam utilizados para o fim ao qual se destinam: o fortalecimento da cultura para todos”

Leia o abaixo-assinado completo: Em defesa dos espaços culturais independentes e pelo cumprimento da Lei Paulo Gustavo

O abaixo-assinado pede que o Minstério Público de São Paulo (MP-SP) também atue no caso. O protocolo da denúncia dos coletivos ao órgão de justiça ainda aguarda uma ação.

Foto: Arquivo Pessoal

Como tudo começou

O edital da Lei Paulo Gustavo forneceu recursos financeiros até 31 de dezembro de 2024 para os selecionados. Publicado em 30 de agosto no Diário Oficial, o resultado deveria prever a participação de diversas modalidades jurídicas, incluindo microempreendedores individuais (MEIs) e micro e pequenas empresas. No entanto, muitos projetos que se encaixavam nesses critérios foram inabilitados por não serem “organizações sem fins lucrativos”.

"A incoerência e o excesso de vícios no edital violam os princípios da Lei de Licitações e da própria Lei Paulo Gustavo, que garantem a participação de espaços culturais independentes", afirma um trecho da carta-denúncia. Um dos membros dos coletivos comentou que entrou em contato com a Secretaria Municipal de Cultura, que reafirmou a participação de MEis, micro e pequenas empresas no edital sem condição desclassificatória. A exclusão atinge diretamente centenas de trabalhadores da cultura. 

“É assim que a gente paga o nosso arroz e feijão como trabalhadores da cultura e a gente precisa de uma MEI para gente conseguir ou no caso de alguns coletivos um pouco mais estruturados com ME para conseguir os fins lucrativos que são as garantias de renda dos próprios proponentes”, afirmou.

'Inimigo da cultura'

De acordo com um diretor artístico dos coletivos culturais periféricos entrevistados pela reportagem, que preferiu não ser identificado, o governo Nunes, ao excluir esses espaços, a maioria deles localizados na periferia, "está assinando uma sentença de fechamento para muitos deles e se declarando inimigo da cultura periférica”, disse.

“Estamos falando de espaços culturais independentes, que foram equivocadamente excluídos do Módulo V do edital. Esse valor que foi repassado pelo Governo Federal constitui um auxílio emergencial para dar conta dos danos que ainda se alastram no setor por conta da pandemia de COVID-19 e a péssima administração do governo Bolsonaro na época”

A todos os coletivos que assinam a carta foi alegado que "embora o edital conceitue no item 3, subitem h) 'pessoa jurídica' de maneira lato sensu, as vedações acerca das condições participação para os módulos I e V são explícitas e podem ser percebidas no item 6, que trata da 'Das Condições de Participação e dos Impedimentos de Inscrição'. Lembramos, também, que todos os proponentes assinaram o anexo II, indicando e declarando ciência e que aceitam incondicionalmente as regras do edital. Dessa maneira, por consequência, evidenciando que aceitam as condições de participação estabelecidas no item 6 e 6.1. Ademais, por essas questões e pelo princípio da vinculação ao edital, indeferimos o presente recurso".

No entanto, o item três do edital diz que as inscrições podem ser feitas por MEIs, MEs e afins. "Esses grupos foram excluídos da Paulo Gustavo e isso viola a lei Federal. Para complementar, a confusão no edital levou diversos artistas a questionar a secretaria se as inscrições de organizações com fins lucrativos seria possível e a orientação era de que sim e de que deveríamos considerar o item 3. Como se já não bastasse, excluir essa parcela de espaços culturais e coletivos do edital viola a LEI Nº 14.133, DE 1º DE ABRIL DE 2021, que regula os processos licitatórios", destacou à época o agente cultural.

Além da exclusão, mais de 200 artistas e trabalhadores da cultura deferidos pelo mesmo edital realizaram um ato em frente à SMC no dia 2 de setembro para protestar contra o atraso de 400 dias no pagamento dos recursos. Apenas 9,35% dos 3.024 artistas e grupos culturais que se inscreveram para a Lei Paulo Gustavo foram selecionados, o que representa apenas 283 projetos aprovados e a maioria com taxa de reprovação. Os recursos federais da Lei chegaram à Prefeitura de São Paulo em julho de 2023, mas até aquele nenhum artista ou coletivo cultural tinha recebido o valor devido.

Leia carta denúncia dos coletivos sobre exclusão do edital

“Nós, coletivos artísticos, produtores culturais e representantes de espaços culturais independentes, vimos por meio desta carta denunciar e repudiar a decisão arbitrária e excludente que resultou na inabilitação de diversos projetos culturais inscritos no Edital n° 01/2023/SMC/LEI PAULO GUSTAVO - Edital Prêmio Cultura Viva e Espaços Culturais para a Cidade de São Paulo, publicado no Diário Oficial em 30/08.

A justificativa apresentada para a inabilitação dos projetos, baseada no argumento de que "não nos classificamos como organizações sem fins lucrativos", conforme descrito no item 6.1 do edital, desconsidera as próprias condições de participação previstas no documento original. O edital em questão contempla, explicitamente, a participação de microempreendedores individuais (MEI), micro e pequenas empresas, sociedades empresárias e cooperativas, todas elas legítimas e comprometidas para participar.

Além disso, a própria Secretaria Municipal de Cultura orientou diversos proponentes e produtores culturais da cidade a se inscreverem, considerando para as inscrições o item 3 alínea h do edital que garantia a inscrição de nossas organizações. Inclusive foram publicados no Diário Oficial a habilitação e chamamento dos projetos agora inabilitados, ocasião em que foram solicitados documentos e abertura de conta corrente no Banco do Brasil.

A incoerência e o excesso de vícios no edital, situação que vem sendo cada vez mais recorrente nessa gestão, violam os princípios da Lei de Licitações- Nº 14.133, DE 1º DE ABRIL DE 2021, os processos licitatórios têm por objetivos: Art. 11, II - assegurar tratamento isonômico entre os licitantes, bem como a justa competição; E também viola os princípios da própria Lei Paulo Gustavo, que garantem a participação de espaços culturais independentes no edital.

Essas decisões, que impactam diretamente centenas de trabalhadores da cultura em São Paulo, são inaceitáveis. A referida lei tem como objetivo promover a inclusão e fomentar a diversidade de expressões culturais. A decisão de incapacitar nossos projetos sem uma justificativa coerente ou uma análise criteriosa dos fatos gera um impacto devastador para os coletivos e espaços culturais que, por meses, aguardam a liberação desses recursos externos para a continuidade de suas atividades. Estamos falando de artistas que promovem ações culturais em regiões periféricas, de espaços que oferecem programas gratuitos ou a preços populares, e de iniciativas que garantem o acesso à arte e à cultura a toda população.

Solicitamos que as autoridades competentes revejam com urgência essas inabilitações, sob pena de continuarmos testemunhando o desmantelamento de projetos importantes que atuam diretamente na promoção da cultura como agente de transformação social. Reivindicamos a transparência no processo de avaliação, bem como o cumprimento das regras do edital, que devem garantir a participação ampla de diversos tipos de organizações culturais.

Essa é uma luta de todos os coletivos, grupos e espaços que foram prejudicados por uma interpretação equivocada do edital e por uma gestão que falha em promover a pluralidade cultural prometida pela Lei Paulo Gustavo.

Sem mais, exigimos justiça e o reparo imediato deste erro grave.

Assinam esta carta:

Bando Golíardis

CASA DA F.U.R.I.A 

Espaço Cultural - VIVIDAS

Associação Imargem

Cia Mungunzá de Teatro

Teatro de Contêiner Mungunzá 

Grupo Xingó

Circo Marambio 

Coletivo Bela 

Casa Gramo 

Espaço Psi Cultural Vozes de Carolinas Vivas

Dente de leoa 

Funani 

Frida Projetos Culturais

República Ativa de Teatro - Embaixada Cultural

Espaço Cia do Pássaro.

Mucambos de Raiz Nagô

Ponto Cultural CASUÁ DO URSO 

Espaço Cultural Q.G. 791 

CASA GALERIA EXPERIÊNCIA 

RIA Respeito Inclusão Acesso

Teatro de Contêiner Mungunzá

Coletivo Casa Dois

COLETIVA UNIÃO DEIXA ELA TOCAR

Cia Teatral As Graças

Favela Galeria - Rede Fundamental

Circo de Québra

Coletiva Profanas de Teatro

Espaço Cultural Casa8

Manfrin produções artísticas 

Espaço Brasilândia cultural”

TCM foi acionado contra Nunes 

A vereadora de São Paulo Luana Alves (PSOL) acionou o Tribunal de Contas do Município (TCM) contra a Secretaria Municipal de Cultura do governo Ricardo Nunes após a denúncia feita por coletivos culturais sobre exclusão de projetos da periferia do edital da Lei Paulo Gustavo, como revelou uma reportagem da Fórum no mesmo dia.

De acordo com a vereadora do PSOL, será solicitada uma auditoria das exclusões na Justiça. “Vários projetos de cultura nas periferias, inscritos no edital da Lei Paulo Gustavo foram excluídos, mesmo cumprindo as exigências, e correm risco de fechar”, escreveu Luana Alves nas redes sociais. 

LEIA A MATÉRIA: TCM é acionado contra Nunes por exclusões de vários projetos da periferia da Lei Paulo Gustavo

Outro lado

No dia 22 de outubro de 2024, a Secretaria Municipal de Cultura disse à Fórum que "respeitou todos os critérios de transparência e equidade" (veja nota completa). No dia 20 de dezembro, a reportagem entrou em contato novamente com o órgão, que afirmou, em nota, ter sido "personalíssima" a inclusão de apenas um coletivo cultural e ainda que o proponente reintegrado não terá o pagamento feito "até a decisão final":

"A Secretaria Municipal de Cultura (SMC) esclarece que a demanda do direito foi personalíssima, ou seja, é válida apenas para o proponente que teve sua liminar concedida. Contudo, é importante ressaltar que o juiz deixou claro que a reintegração do proponente ao edital da Lei Paulo Gustavo era de caráter urgente, destacando que não deveria ser realizado nenhum pagamento até que a decisão de mérito ocorresse. Deste modo, a pasta aguarda até que a justiça decida sobre o caso.

O edital, por sua vez, restringe a participação de beneficiários do MEI. Portanto, foi concedida uma liminar para que fosse permitido ao proponente ser reintegrado, tendo sua documentação analisada. Todavia, não haverá pagamento até que haja uma decisão final de mérito."

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