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"Além de pessoas, filmes eram perseguidos”, revela autora de livro sobre 'rota secreta' do cinema na ditadura

Em entrevista à Fórum, Patrícia Machado detalhou descoberta inesperada de arquivos cinematograficos e ressalta que "extrema direita falseia a história sem nenhum pudor"

Livro 'Cinema de Arquivo: imagens e memória da ditadura militar', de Patrícia Machado.Créditos: Divulgação
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Em uma investigação minuciosa que durou mais de cinco anos (2012-2016), a pesquisadora e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) Patrícia Machado desvendou uma trama histórica que envolveu cineastas, ativistas e intelectuais no período da ditadura militar: a busca pela preservação de arquivos cinematográficos que expunham a verdade sobre o regime, e trouxe todos os registros no novo livro “Cinema de arquivo: imagens e memória da ditadura militar”.

Em entrevista exclusiva à Fórum, a pesquisadora revelou detalhes sobre a descoberta de uma rota secreta do cinema brasileiro durante a ditadura, mostrando como a censura não só silenciava vozes, mas também perseguia aqueles filmes que flagravam diretamente as torturas do regime. 

A “rota clandestina” de imagens ligava Brasil a Cuba e à França, e era composta por filmes e fotografias, produzidos por cineastas como Eduardo Escorel e José Carlos Avellar, documentando as resistências de diferentes pessoas em 1968, além de contar histórias desconhecidas até então por historiadores. 

A partir de pequenas histórias de vida, como a de Nego Fuba, um desaparecido político filmado enquanto era acusado injustamente; de cineastas que, arriscando suas vidas, registraram momentos cruciais da história; e de um militante que, exilado e transformado em cineasta, a obra reúne arquivos em um relato visceral sobre a censura ao cinema no Brasil.

'Rota secreta' entre cineastas

“Além das pessoas, filmes eram perseguidos. São inúmeros documentos de censura e perseguição produzidos pelos agentes da ditadura, histórias de latas de filmes escondidas debaixo da cama de pessoas comuns, de nomes de latas trocadas na Cinemateca para que agentes do estado não destruíssem esses registros. A primeira parte de Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho, ficou anos nomeado como Rosa dos Ventos, para distrair os censores”, ressalta Machado à Fórum.

Segundo ela, a descoberta de uma “rota clandestina” foi inesperada durante a pesquisa, que buscava até então arquivos da época gravados no Brasil. “Partimos de um material filmado pelo cineasta Eduardo Escorel, no dia do cortejo fúnebre do estudante Edson Luís, que ficou desaparecido por 40 anos. Essas imagens foram descobertas na Cinemateca do MAM, durante uma pesquisa para o filme Hércules 56, de Silvio Da-Rin, e estavam dentro de uma lata, junto com outras imagens filmadas no mesmo dia pelo crítico José Carlos Avellar”, disse.

Durante o processo, a pesquisadora identificou colaborações entre cineastas brasileiros e estrangeiros. “Na França, na produtora de Chris Marker, localizamos dois filmes do cineasta francês que na época eram pouco conhecidos no Brasil e que denunciavam a tortura competida pelos agentes do Estado e o assassinato de Marighella. Ao assistir aos filmes, identifiquei frames registrados por Escorel e Avellar. Na produtora, identificamos também documentos trocados entre Marker e Cuba e entendemos que o material tinha vindo de Cuba, que também produziu dois cinejornais com as mesmas imagens. Com isso, identificamos a existência dessa rota.”

A obra será lançada pela Sagarana Editora nesta quinta-feira (3) às 18h, no Solar Grandjean de Montigny, na PUC-Rio.

Foto: Divulgação

Além do cinema, a autora utilizou diversas fontes como acervos, prontuários e documentos políticos para contar a narrativa. “Para contar essas histórias, mapeei acervos no Brasil e na França, incluindo documentos políticos, e realizei entrevistas com protagonistas da época. Ao cruzar essas informações com imagens de filmes, descobri histórias esquecidas de camponeses, manifestantes, cineastas e vítimas de tortura”, comenta.

O ano de 1968 foi um marco, pois foi neste ano que começaram os protestos contra o assassinato do estudante Edson Luís e culminando com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), que impôs uma forte repressão e proibiu manifestações públicas. A partir desse período, muitos artistas e cineastas brasileiros foram forçados ao exílio.

“Retomar arquivos audiovisuais do período da ditadura em novas obras traz a possibilidade de elaborar e disputar memórias no nosso presente, uma tarefa cada vez mais urgente e necessária. Os discursos negacionistas têm voltado com força e a memória e a história são um campo em disputa.”

Ditadura 'tem linhas de continuidade'

Ao resgatar registros históricos, as pesquisas de arquivo e memória contribuem para o entendimento dos mecanismos que impulsionam o ressurgimento de neofascismos, discursos de ódio e a ascensão da extrema direita no cenário político contemporâneo, de acordo com a autora. 

“Não fizemos o principal, punir aqueles que cometeram atos bárbaros como as torturas e desaparecimentos de corpos de quem se colocava contra a ditadura. Como demonstram vários pesquisadores do campo da história, a ditadura tem linhas de continuidade no país, como as torturas e assassinatos de jovens pretos e pobres da periferia. Se não fizermos essas conexões, se não entendermos o que passou, a tendência é repetir os mesmos esquemas. A extrema direita hoje investe na criação de narrativas negacionistas a partir da mobilização de imagens e sons sem nenhum lastro de historicidade: falseiam a história sem nenhum pudor”, diz.

Arquivos como testemunho

Patrícia Machado ainda destacou o poder dos arquivos cinematográficos na construção de narrativas alternativas e na preservação da memória histórica. "Nas imagens em movimento que analiso podemos buscar detalhes dos corpos, das expressões, das vozes e das dinâmicas daqueles que lutaram contra a ditadura militar no Brasil", declarou. As escolhas feitas pelos cineastas ao capturar esses momentos são igualmente reveladoras, como a decisão de filmar uma multidão de um ponto alto ou se aproximar de um manifestante para destacar suas emoções.

Os registros capturados pelas câmeras não apenas documentam eventos históricos, mas também carregam intenções e sensibilidades de quem os filmou. "Podemos analisar as decisões daquele que segurou a câmera para filmar a partir dos posicionamentos do equipamento, do tempo gasto no registro de um plano, no desejo de ressaltar o detalhe do olhar de um manifestante ou daquele que presta um testemunho sobre a tortura que sofreu", afirma a pesquisadora. Esse cuidado na captura das imagens é uma tentativa de amplificar as vozes dos que foram silenciados.

Um exemplo emblemático desse tipo de registro é uma filmagem do cineasta Eduardo Coutinho, que retrata um camponês em um protesto. A cena levou a pesquisadora à descoberta de uma carta manuscrita, escrita no início dos anos 1960, onde o camponês, chamado Nego Fuba, relatava ter sido preso e torturado três vezes antes do golpe militar. "A prisão desse líder rural da Paraíba, chamado de Nego Fuba, enfatiza que os moradores do campo começaram a ser perseguidos antes mesmo do golpe militar", ressalta Machado. Com o golpe, Nego Fuba desapareceu, tornando-se mais uma vítima na lista dos desaparecidos políticos brasileiros.

"Enquanto houver famílias que desconhecem o paradeiro dos corpos das vítimas da ditadura, a justiça não terá sido feita."