As mulheres representam 52% da população brasileira, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mas a presença em cargos políticos altos ainda é extremamente baixa ou quase impossível. Nas eleições municipais, esse cenário se repetiu mais uma vez, com apenas cerca de 18% das candidatas disputando prefeituras, e pouco mais de 30 mulheres concorrendo ao comando das capitais do país no primeiro turno.
A limitada participação não é obviamente por falta de interesse ou por acaso, mas fruto de uma estrutura política fortemente marcada pelo machismo e pela misoginia, que dificulta o amplo acesso e a visibilização da luta de muitas mulheres na arena política, além de eliminar o mais importante: as marcas históricas que elas deixaram e deixam no Brasil, na resistência por causas caras às minorias e às classes desfavorecidas.
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Nessa conta estão Maria Prestes e outras Marias que, embora muitos já tenham ouvido falar em algum momento na história, não conhecem de fato a verdadeira história e dimensão de seus protagonismos na democracia para além dos limites do ambiente doméstico, conjugal ou estigmatizante a que a mídia e a classe política tentaram reduzi-las.
Nesta quinta-feira (17) estreia o documentário “MARIAS”, da diretora e roteirista Ludmila Curi, em produção pela Plano 9, Lumiá Filmes e distribuição de Descoloniza Filmes. O filme chega aos cinemas nas cidades de Aracaju, Belo Horizonte, Brasília, Palmas, Rio de Janeiro e Salvador.
A produção cinematográfica explorou diferentes tempos em que mulheres foram silenciadas e invisibilizadas pelo Estado através da cumplicidade e endosso da mídia tradicional (dos jornais impressos à televisão) e por grupos políticos conservadores de centro e de direita.
Em entrevista exclusiva à Fórum antes do lançamento, Curi mostrou que o documentário é inédito, pois as histórias dessas mulheres convergem no presente e no cotidiano de milhões de brasileiras. Uma representante feminina inspirou a luta da outra, o que fica evidente nas filmagens.
As causas atravessam o tempo
O paralelo que ela estabeleceu entre personalidades, por vezes, invisibilizadas como Maria Prestes, Maria Bonita, Maria Quitéria, Dilma Rousseff, Marielle Franco e outras mulheres, que se destacaram na luta política, aconteceu de forma natural durante os anos de produção e pesquisas de arquivo para o documentário, segundo Curi.
“A Marielle Franco foi filmada em uma visita à Maria [Prestes], na primeira diária de filmagem do projeto. Olga Benário é uma personagem que atravessa a vida de Maria, primeiro como uma referência no Partido Comunista, e depois pessoalmente, quando na clandestinidade ela se torna companheira de Luiz Carlos Prestes. Maria Quitéria estava citada em um material encontrado durante a pesquisa, uma reportagem sobre nove Marias que mudaram a história do Brasil. E a Dilma tinha acabado de sofrer um golpe na época das filmagens, um tema sempre abordado pela Maria em todas as suas falas públicas”, afirmou a cineasta.
Ludmila ainda contou à revista sobre a convivência com uma das personagens principais, Maria Prestes, viva à época, e como sua história espelhou outras resistências. “Filmar com ela durante cinco anos foi um grande privilégio e aprendizado. Eu me identifico e me orgulho na verdade de todas as personagens de Marias. Com o filme, as (re)conheço como minhas referências e esperança de transformação”, disse Curi, que reafirmou o compromisso com o cinema político.
“É preciso que se aproxime do público, que gere debate, reflexão, e que faça diferença na construção de memória sobre fatos e pessoas desvalorizadas pela narrativa hegemônica”
Ela conheceu Maria enquanto atuava como jornalista, em 2012, na função de repórter em uma imprensa carioca. “Fiquei fascinada pela história da viúva do Prestes que eu nunca tinha ouvido falar. A trajetória de uma revolucionária que tinha atravessado grandes momentos do século XX não caberia em poucas páginas, ou minutos”, destacou.
“Além de carregar o legado político de sua família, Maria andava na rua a falar com o povo, como o povo, e sobre o povo. Ao longo desses anos, aprendi muitas coisas com ela, mas a mais importante foi que desistir não é uma opção. A luta continua, companheira”
As mulheres na Coluna Prestes
A Coluna Prestes, liderada pelo gaúcho Luís Carlos Prestes, foi um marco na resistência da classe operária e do campo no Brasil, e completa 100 anos em 2024. Unindo jovens militares indignados com a situação do país, a Coluna percorreu 25 mil quilômetros, denunciando as desigualdades e as injustiças da República do Café com Leite. A luta por um Brasil com igualdade social, com voto secreto e educação para todos, ecoou por todo o território nacional.
Todavia, no meio dessa trajetória, houve a participação ativa de mulheres no movimento tanto na produção de campanhas, quanto na resistência física e verbal, o que a nova produção revela em imagens. Mulheres como Hermínia, enfermeira austríaca, uma das mais influentes da marcha, e Elza, que foi presa, desafiaram esses estereótipos. Elas, assim como Alzira, Maria, Albertina, Isabel e tantas outras, foram combatentes e revolucionárias. Maria Prestes é um dos exemplos mais notáveis, antes mesmo de ser casada com Carlos Prestes, era engajada no ativismo político.
“MARIAS pode fortalecer a democracia porque imprime o quão importante é o papel das mulheres na construção de uma sociedade melhor para todos, seja na vida cotidiana, seja na política institucional. A produtora do filme, Mannu Costa, diz que o filme deixa claro como nada nesse país pode prescindir da mulher. Seja porque seguramos a estrutura, agimos diretamente, ou forjamos outros seres humanos que vão à luta”, destacou a diretora.
Maria teve nove filhos, vivia a vida doméstica, mas se interessava e lutava pelos direitos das mulheres e a Reforma Agrária brasileira. Por isso, foi obrigada a viver boa parte de sua vida na clandestinidade e sendo chamada por distintos nomes para que não fosse identificada, o que era realidade para muitos daqueles que iam em busca da justiça social. Ela chegou a se exilar na antiga União Soviética - hoje a Rússia - com os filhos.
No próprio documentário, narrado inteiramente por Ludmila Curi, a voz de Maria não aparece, somente as perguntas da cineasta direcionadas a ela. As imagens e as outras Marias retratadas ficam no encargo de trabalhar o sentido e a narrativa.
‘Outras Marias ajudaram a construir’
“A ausência de Maria mudou completamente a linguagem do documentário, mas não seu conteúdo. O desafio que tivemos foi de editar outra proposta de filme com o mesmo material já captado, em que Maria era figura central em todas as cenas. Foi um grande exercício de roteiro e montagem, pra mim e pra montadora Virginia Primo. Não por acaso, no nosso material havia muitas mulheres, muitas Marias, famosas e anônimas, que ajudaram a construir nossa personagem na vida real e no cinema”, disse a cineasta à Fórum.
Os motivos pelo qual Maria decidiu não aparecer ou ter a sua voz exposta nas gravações é um mistério, mas que a diretora compreende. Ela percebe esse reflexo do silenciamento persistente imposto às mulheres que lutam por causa sociais. Muitos jornais e rádios no século XX falavam sobre os casamentos de Carlos Prestes e daqueles e daquelas que participavam dos levantes comunistas. Até recentemente, Maria ainda não foi nem mesmo reconhecida como deveria pela grande mídia ou em espaços políticos significativos.
“Não posso responder por ela, mas suponho que, como uma mulher forjada na luta clandestina, ela não se sentiu confortável ou segura com a exposição de sua imagem. Além disso, ela sempre dizia que não assinava contrato com ninguém, nem com o Prestes, ela casou no papel, e nunca se filiou a nenhum partido político oficialmente”, acrescentou Curi. Assim, o formato roadmovie foi escolhido pela equipe, pois, de acordo com ela, “somente dessa forma seria possível retratar a vida de uma mulher com mais de 80 anos de idade que ainda atravessava o país, e já tinha atravessado um oceano, em defesa das causas que lhe eram caras”.
Produção desafiadora
Ao analisar o exílio de Maria Prestes e de outros guerrilheiros no país russo, a historiadora e jornalista afirma que aprofundou a história de mulheres que lutaram na então União Soviética durante a Segunda Guerra e que também atuaram na reconstrução do país na dissolução. “Contei com a ajuda de pesquisadores muito bons, como Luciana Almeida, Vlad Ketkovich, e as equipes do Arquivo Nacional e do Arquivo da Memória Operária do Rio de Janeiro. O maior desafio mesmo foi ter recursos para adquirir os direitos de imagens das mulheres que lutaram na Segunda Guerra Mundial e que reconstruíram a Rússia, mas conseguimos”, comentou.
Na visão de Curi, produzir “MARIAS” foi um grande desafio, tanto pela temática, pela questão financeira, quanto pela pouca valorização do trabalho de mulheres cineastas. “Vão da dificuldade de se captar recursos à falta de salas para exibição do filme para o grande público. Acredito que o fato de as narrativas cinematográficas serem ainda majoritariamente protagonizadas por homens, na frente e atrás das câmeras, é limitante. Reduz a percepção de temas, linguagens e narrativas que podem descolonizar o pensamento e provocar alguma transformação no público”, destacou a pesquisadora.
Violência simbólica e política persiste
Uma nação que não reverencia suas mulheres, o que fica ainda mais evidente em "MARIAS", o Brasil segue registrando violências simbólicas e políticas contra mulheres candidatas. O documentário mostra de perto como essas mulheres enfrentam inúmeros preconceitos, e cada vez mais atrozes. Para Curi, o cinema é uma das melhores formas de trabalhar contra isso e para entender a interseccionalidade. “É preciso virar a câmera e os olhos para o óbvio: um mundo sem nós já não deu certo.”
Inclusive, um estudo revelou que candidatas recebem mais do dobro de insultos e quase cinco vezes mais ataques em comparação aos homens em períodos eleitorais. Os ataques, que vão da misoginia à xenofobia, reforçam estereótipos de gênero sobre aparência, idade e capacidade. As mulheres já foram alvo de 733 insultos e 462 ataques, 673 insultos e ataques a mais em comparação aos homens em cidades do interior do Brasil, o que representa um acréscimo de 128,9% no cenário de violência política de gênero. A pesquisa foi feita em outubro pelo Instituto MonitorA e repercutido na Fórum.
Em uma declaração na revista no ano de 2022, ano em que Maria Prestes morreu em decorrência da Covid-19, a neta e cientista política Ana Prestes, relembrou os momentos com a avó, o seu grande protagonismo no passado e agora o legado para as próximas gerações de mulheres brasileiras na luta, por essas causas que atravessam o tempo.
“A gente pensa que para todo o sempre, do outro lado da linha do telefone memorizado desde a infância, digitado como se fosse a própria extensão das mãos, vai atender aquela mesma voz. Que nas eleições ela vai fazer campanha, vai torcer e acertar o resultado eleitoral. Que não vai te deixar desistir, que vai te apoiar, que vai te dar bronca e perguntar quais os planos para as próximas férias, os próximos trabalhos e os próximos amores. A mais linda abuela. A gente pensa que é pra sempre. Não estamos preparadas para o inverso, reverso e transverso da vida sem ela”, declarou à época.
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Assista trailer
O documentário "Marias" foi tema do programa especial da Revista Fórum. No dia 19 de outubro, com base na publicação desta reportagem, a jornalista Cynara Menezes debateu com Ana Prestes e a diretora Ludmila Curi sobre a importância do protagonismo de mulheres na história e na política no Brasil.
Assista na íntegra
*Reportagem atualizada para incluir a edição do programa da Fórum, veiculado no dia 19 de outubro