Thiago Schutz, de 35 anos, é o nome do chamado ‘coach do Campari’. Ele ganhou destaque nas páginas da imprensa nos últimos dias após fazer uma ameaça de morte online à atriz Lívia La Gatto, que ironizou seu discurso altamente misógino nas redes. Mas não foram apenas os absurdos ditos pelo influenciador digital que ‘viralizaram’, também a sua marca: ‘Red Pill’, derivada do nome de sua página no Instagram, ‘Manual Red Pill’.
Sob a bandeira da pílula vermelha – ‘red pill’ em português – o influenciador chegou a dizer que se uma moça se interessa por um rapaz, que bebe Campari numa festa, e o oferece cerveja, ela na verdade estaria testando a própria capacidade de moldar os gostos da ‘vítima’. Uma verdadeira barbaridade.
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Com a história rodando na internet, o termo viralizou como sinônimo para influenciadores que oferecem aos seguidores as chamadas “verdades secretas”. São supostos fatos óbvios que esconderiam sofisticados mecanismos de controle da liberdade e manobra do desejo alheio. E as pessoas que revelam tais “verdades” nas redes sociais seriam os “influenciadores red pill”.
Graças ao caso de Thiago Schutz, a expressão ganhou uma conotação ainda mais específica. Esse ‘despertar’ para uma ‘verdade oculta’ estaria sendo diretamente relacionado a um suposto sistema que privilegia as mulheres, colocando os homens em posição desfavorável. Bem, basta uma rápida pesquisa em termos como “isonomia salarial” e “violência doméstica” para entender que a ideia é completamente sem pé e nem cabeça.
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No entanto, assim como uma série de outros termos utilizados por elementos truculentos, racistas e misóginos da atualidade, o termo ‘red pill’ vem das artes, mais especificamente do filme ‘Matrix’, de 1999, onde é empregado sob uma perspectiva crítica considerada de esquerda, sobretudo se levarmos em consideração as características ‘libertárias’ da esquerda dos EUA. Mas assim como muitas expressões da mesma natureza – vide a própria palavra ‘libertário’ – a expressão passou um verdadeiro ‘rebranding’ até ser vinculada a discursos sem sentido de extrema direita.
A pílula vermelha no Matrix
Na obra cinematográfica que originou o termo e é considerada um verdadeiro clássico, a humanidade era subjugada por máquinas. Corpos humanos eram conectados, logo ao nascer, à chamada ‘Matrix’ – uma mistura de computador, fábrica e incubadora que, conectada ao cérebro humano, trazia a consciência da pessoa a uma realidade artificial, regulada por software, que permitiria o desenvolvimento do corpo humano e a vivência de falsas experiências de vida ao corpo preso à incubadora. Por sua vez, o grande objetivo das máquinas é “minerar” a energia humana, gerada pelas interações entre corpo e sistema, carregando suas próprias baterias.
Nesse contexto, o personagem Morpheus, interpretado por Laurence Fishburne, é o líder dos seres humanos que conseguiram despertar da realidade artificial e fugir da sua incubadora. Ele e um grupo de despertos desenvolveram, então, um método para entrar e sair da ‘Matrix’, independente do software que a regula.
O grande objetivo do grupo que luta contra a opressão das máquinas, naquele momento, era recrutar novos seres humanos.
Em uma das cenas mais icônicas da obra, Morpheus aborda Neo, então candidato a juntar-se ao grupo e interpretado por Keanu Reeves, ainda dentro da ‘Matrix’, oferecendo-o duas pílulas, uma azul e outra vermelha.
“Essa é a sua última chance. Depois disso não há como voltar. Você toma a pílula azul e a história acaba. Você acorda em sua cama e acredita no que quiser acreditar. Você toma a pílula vermelha e vai para o País das Maravilhas, onde eu vou mostrar a profundidade da toca do coelho”, diz Morpheus.
Em outras palavras, a pílula azul faria com que Neo simplesmente fosse descartado pelo grupo e pudesse viver “em paz” no mundo de ilusões criado pelas máquinas, enquanto seu corpo produzia a energia que alimentava a existência dos opressores. Já no caso de tomar a ‘red pill’, ele adquiriria consciência, se libertaria das ilusões e poderia lutar contra essa opressão, o que acarretaria em perigos e desconfortos.
Gamergate, negação da covid-19 e ‘rebranding’ de extrema direita
A atriz Eréndira Ibarra, que interpretou a personagem Lexy em Matrix Resurrections (2021), continuação mais recente do filme original, declarou para o Uol em janeiro do ano passado, que se incomoda com o fato de que referências e metáforas utilizadas na obra tenham sido apropriadas pela extrema direita.
“O novo filme pega de volta a narrativa. Por muito tempo, ‘Matrix’ e as pílulas azul e vermelha se tornaram uma espécie de meme para a extrema direita. Pessoas que não acreditam na diversidade e usavam isso, a metáfora das pílulas, a seu favor. Mas não é para ser assim”, declarou.
As referências sobre o uso dos termos de ‘Matrix’ pela extrema direita datam de 2014, na ocorrência do Gamergate, um movimento de jogadores online de games que originou uma onda de misoginia no país, dando munição e combustível para a extrema direita de lá.
Tudo começou quando o programador Eron Gjoni publicou um ‘textão’ em seu blog descrevendo o seu término de relacionamento com Zoe Quinn, uma desenvolvedora de jogos. Ele teria levado um belo chifre da ex. O texto acabou caindo em fóruns online reconhecidamente misóginos como o 4chan e o Reddit, onde usuários começaram a planejar ameaças a Quinn. Ela começou a ser perseguida no mundo real com ameaças enviadas ao seu endereço residencial.
Além das ameaças, e também na busca por novos alvos, os integrantes do Gamergate passaram a formular teorias que justificassem a demanda. Foi aí que começou a circular a ideia de que o atual “estado das coisas” incentivaria uma suposta opressão sexual e moral contra os homens a fim de resguardar as mulheres. Foi nesse contexto que surgiu o uso da expressão ‘red pill’ vinculado à misoginia e extrema direita.
A pílula traria, para o neofascista dos EUA, conhecimentos ‘ocultos’ sobre a opressão das mulheres sobre os homens, o racismo reverso, o marxismo cultural, entre outras ladainhas. Já as referências 100% brasileiras datam do início da pandemia de Covid-19.
Em maio de 2020, no Brasil, por três vezes o então ministro da Educação, Abraham Weintraub, usou as figuras de linguagem da obra. Um de seus alvos foi João Dória, à época governador de São Paulo e em pé de guerra com Jair Bolsonaro (PL) para defender a manutenção de medidas sanitárias no Estado. A ‘pílula vermelha’, que revelaria a verdade, neste caso, diria a quem a tomasse que a “covid-19 não seria um problema grande o suficiente para que adotássemos medidas restritivas”.
No mesmo mês, o bilionário Elon Musk usou do mesmo artifício para defender a retomada das atividades de suas fábricas, nos EUA. “Escolha a pílula vermelha”, publicou, minimizando os riscos da pandemia. Em resposta a Musk, Ivanka Trump, filha do então presidente dos EUA, Donald Trump, escreveu que tomou a pílula. Em resposta a ambos, a cineasta Lilly Wachowski, co-criadora da franquia, foi curta e grossa: “Vão se foder”.