OPINIÃO

Ataque dos Cães leva o Oscar 2022? – Por Filippo Pitanga

Com fortes candidatos, como estaria o favoritismo de obras mais contundentes e de vanguarda do que a média entre os indicados a melhor filme no Oscar 2022?

“Ataque dos Cães”, de Jane Campion, é franco predileto para a noite de premiação Créditos: Divulgação
Escrito en CULTURA el

Após uma semana do anúncio das indicações concorrendo às famosas estatuetas douradas que serão entregues pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas na noite de 27 de março, as manchetes e destaques em maior evidência começam a decalcar nas mídias de entretenimento para que possamos subtrair um extrato um pouco mais apurado da contenda deste ano. 

São filmes para todos os gostos, desde perfis mais populares a vanguardas mais ambiciosas. De comédias como “Não Olhe Para Cima” (leia aqui) a dramas edificantes como “Coda” e “King Richard”; de blockbusters como “Duna” (leia aqui) a produções mais autorais e independentes como “Licorice Pizza”.

Outrora, seria fácil vermos certas propostas como favoritas ao Oscar, como os gêneros tipicamente aclamados de biografias e musicais. Vide o número elevado de prêmios a que estão competindo exemplares do porte de “Belfast” (7 indicações), inspirado na infância do próprio diretor, o também ator Kenneth Branagh; e o remake homônimo do musical já oscarizado em 1962, “West Side Story”, ora dirigido em sua nova versão por Steven Spielberg (7 indicações).

Curiosamente, apesar de certo favoritismo habitual, historicamente falando, o único Oscar de Spielberg na categoria de melhor filme ocorreu em 1994, com “A Lista de Schindler”, numa edição em que competiu de frente com outro peso pesado, “O Piano” da diretora Jane Campion – o qual havia saído do Festival de Cannes em 1993 com a primeira Palma de Ouro de melhor filme para uma obra dirigida por uma cineasta mulher. Ambos saíram multipremiados daquela noite, sendo que, na equilibrada peleja principal, quem levou a melhor, na ocasião, foi Spielberg.

Eis que, uma vez mais, esses dois nomes se veem frente a frente, porém em situações diversas, com apostas mirando para “Ataque dos Cães” de Jane Campion (12 indicações) como franco predileto para a noite de premiação. E não seria por pouca vantagem. Tudo isso para além da evidente questão de gênero, pois, naquela época, nenhuma diretora havia levado o Oscar de melhor filme até ali. Agora, o cenário é outro. 

A reparação histórica está pendendo a reconhecer uma verdadeira bagagem de filmes esnobados ao longo dos anos com maior força no presente. Não que a luta de 1994 tenha sido desleal, pois não foi, já que eram duas obras-primas por mérito próprio. Porém, numa sociedade com desigualdade estrutural, houve um longo período esnobado por questões que vão além do mérito, e que culminam no reconhecimento um pouco tardio que algumas diretoras gigantes desde sempre só estão recebendo agora...

Vale reiterar que não seja por falta de mérito. Frisemos esta última parte. “O Piano” já trazia essa qualidade da diretora em verter roteiros originais com a grandeza e camadas de uma adaptação literária de mais de 500 páginas em densidade de escrita, mas cuja criatividade saiu toda de sua mise-en-scène (“O Piano" é raro caso de roteiro original que merecia um livro de tão recheado de prosa). 

Já “Ataque dos Cães”, mesmo realizado a partir de um livro homônimo de faroeste publicado em 1963, é filme atualíssimo com F maiúsculo do porte que Oscar adora, e, mesmo assim, com bom grau de subversão e ousadias contemporâneas. No escopo que a Academia gosta, como todo faroeste que se preze, a plasticidade é construída com inúmeros planos abertos e externos, bastante exuberantes em paisagens naturais (algo que Campion tende a gostar muito), num tom escalonado não apenas épico como metafórico. 

É impossível dizer que a fotografia seja apenas estética pela beleza física, e sim pelas simbologias narrativas. Cada montanha, nuvem, rio ou planície serve à história com peso igual ao de qualquer personagem humano. Até o título do filme recebe uma seqüência só pra ele através de uma panorâmica de nuvens na colina com o formato de um cachorro que, se não estivermos atentos, podemos perder e precisar assistir de novo para identificar.

E este valor de revisão é alto não só pelo exercício de estilo visual, porém, também dramatúrgico. Desde a divisão da trama em capítulos, que se derrama a apresentar melhor cada personagem, por um ângulo mais íntimo, um a um de cada vez, bem como até a mudança de perspectivas, já que os diferentes pontos de vista vão se espelhando com protagonismos diferentes, a depender do capítulo. 

Na primeira parte, temos apresentada de forma mais aprofundada a personagem de uma jovem mãe, Rose Gordon (Kirsten Dunst, de “As Virgens Suicidas”), mesmo que o caubói que irá protagonizar o filme, Phil Burbank (Benedict Cumberbatch, de “O Jogo da Imitação”), por enquanto, seja mais revelado por soslaio como antagonista daquela e de seu filho Peter (Kodi Smit-McPhee, de “A Estrada”)... 

No segundo episódio, temos o irmão de Phill, George Burbank (Jesse Plemons, de “Estou Pensando em Acabar com Tudo”) cortejando Rose, sempre de forma elegante e com o charme da formação na universidade de uma cidade grande, egresso de grandes centros metropolitanos que o distanciaram do campo e do caráter bucólico e rústico do irmão (e os conflitos entre esses três personagens só aumentam, com mudanças de força cambiando entre eles). Fica propositalmente difícil saber se o caubói está com ciúme do irmão ou da pretendente dele.

Enfim, no terceiro e quarto segmentos, o filho de casamento anterior da personagem materna, Peter, retorna da faculdade de medicina, e a trama passa a girar em torno de sua relação tensa e sempre à beira de um abismo com Phil – num jogo mental de forças com perigosa força de repulsão e atração ao mesmo tempo. Muito acontece no não dito e na troca de olhares.

O grande diferencial do filme é que ele não é necessariamente um faroeste, apesar de se revestir da carapuça de um. Nem propriamente um drama familiar, já que suas tensões elevam o ritmo para quase um suspense psicológico em que você pensa que essas quatro personagens podem matar umas às outras a qualquer momento. Lógico que a desconstrução dos faroestes na contemporaneidade, principalmente dirigidos por mulheres, anda agregando e muito à linguagem audiovisual. E é deste hibridismo que Jane Campion se serve para fazer um triunfo.

O próprio período histórico do longa-metragem se coloca numa época limítrofe, nem tão faroeste, coisa dos séculos anteriores, mas ao mesmo tempo também sequer se permitindo entrar de plano no século XX, nos loucos anos 20, no desenvolvimentismo de uma Revolução Industrial e de duas Grandes Guerras que sufocariam a vida dos campos e fazendas de modo a exigir migrações urbanas cada vez maiores (a única cena “moderna” é um belíssimo panorama do trem que liga as cidades e as tensões familiares). 

Essas personagens são trágicas não por caminharem no fio da navalha de tensões pessoais, e sim, mais do que isso, por representarem arquétipos sociais com intenso pano de fundo, antes mesmo de adentrar a narrativa, mas que saberemos aos poucos por relatos. A jovem mãe, Rose, é a figura da mulher emancipada que trabalhou nos centros metropolitanos, inclusive com a metalinguagem do cinema (outra coisa que o Oscar ama), pois teve de trabalhar para sustentar a casa durante a primeira Guerra Mundial, tocando piano ao vivo em sessões de cinema mudo (ou primeiro cinema, antes da sincronização do som). 

Na realidade, a trama começa quando Rose agora precisa regressar para o interior quando seu marido morre e lhe deixa viúva. Logo na primeira sequência introdutória, ela passa a dirigir um restaurante com seu filho sensível e prodigioso, Peter, que deseja ser médico – e possui a inteligência para ser grande. A sexualidade e certa androgenia deste jamais chegam a ser enunciadas com palavras expressas, deixando tudo no subtexto e nas nuances sutis. Sua representação está na vanguarda dos indivíduos do novo século, do modernismo, do futuro e etc...

Já o outro lado da trama representa a resistência à mudança: O caubói que se mantém cuidando da terra e dos animais e que acredita só existir autoridade pela força física e leonina. Ele se impõe de corpo e mente ao irmão, mesmo que ambos tenham sido formados com excelência na universidade, mas num dualismo que tenta olhar pra frente, por um lado, e é forçado a olhar pra trás, por outro. 

A enorme tensão ameaçadora de Phil advém de mitos antigos, retrógrados, que antigamente eram endeusados até no cinema como heróis, mas que ao longo do tempo foi matando o gênero do faroeste dentro e fora das telas. Aquele tipo de heroísmo egoísta e individualizado num só homem (e quase nunca numa mulher, com raríssimas exceções) já não teria mais espaço nos novos tempos.

E não estamos falando apenas de “Ataque dos Cães”, mas como de todos os faroestes. É fato público e notório que o gênero como formalmente conhecido de outrora foi enterrado com seus últimos exemplares clássicos na década de 90. Especialmente a partir do momento em que a geração Y, plugada na internet, e lutando por igualdade de direitos, não conseguiria mais ver com os mesmos olhos um estilo cinematográfico cuja essência dependia de estrutura patriarcal e colonialista (calcado no genocídio da população indígena no “velho oeste”). 

Tanto que o novo milênio viu surgir o neo-western, com filmes que ressignificavam o que era o mocinho e o bandido na contemporaneidade, vide “Onde os Fracos não têm vez” dos irmãos Coen e “A Qualquer custo” de David Mackenzie, em que os xerifes são obstáculos indesejáveis ou inúteis e os bandidos fora-da-lei são protagonistas pelos quais torcemos pela subversão da opressão do capital. 

Foi nesta seara que os faroestes dirigidos por mulheres, como “First Cow” de Kelly Reichardt (leia aqui), “The Nightingale” de Jennifer Kent, “Western” de Valeska Grisebach, “The Ryder” de Chloe Zhao e “O Estranho que Nós Amamos” de Sofia Coppola começaram a narrar a perspectiva de personagens contra-hegemônicas, outrora tidas como visões periféricas, como mulheres, povos originários, pessoas negras e LGBTQIAP+, ou mesmo a desconstruir a masculinidade tóxica dos antigos heróis. Pois “Ataque dos Cães” se diferencia e se destaca, não só como estudo de caso, como desenvolvimento minucioso de personagens, e sim também como crônica de uma era, tanto na virada do século XIX para o XX, quanto, por analogia, para o próprio século XXI, metaforizado em como nos vemos refletidos nestas personas.

O conflito destas quatro pessoas não é formado por estereótipos, e sim por códigos que vão além da moral ou de caráter ilibado, pois todos possuem falhas e vulnerabilidades. Nem há a intenção de culpabilidade deles, e sim o teste do tempo para saber quem consegue se adaptar às mudanças e quem deseja permanecer imutável e passível de ficar obsoleto, consumido pelas chamas na memória de sua própria repressão. 

Da mesma forma, não haverá “castigo” para os crimes, e sim um desejo desesperado de se entregar a seus desejos, independente de alguns desejos intencionarem ou pela superação e avanço, ou pelo recalque de permanecer entregue à passividade histórica do que se permitiu sufocar. Algumas pessoas interpretam as questões de sexualidade ou de gênero do filme como punitivas, quando, porém, na verdade, são muito mais simbólicas, pois ninguém é julgado, e não deixa de possuir liberdade de escolha, inclusive de se libertar e se assumir, ou se filiar a velhos tempos cujas lembranças lhe prendem a quem já se foi... E lá, com o passado, desejam permanecer. É a negação que não possui mais espaço nesse tempo.

Alguns talvez se lembrem do sucesso do casal de caubóis de “Brokeback Mountain” de Ang Lee, que merecia ter levado o Oscar de melhor filme em 2006, mas foi usurpado por “Crash: No Limite”, uma obra bastante equivocada. Naquela época, já podíamos falar de uma ficção inovadora que decolonizava a masculinidade tóxica dos faroestes nos dias de hoje. Porém, “Ataque dos Cães” não é um romance, e muito menos um drama puro, e possui altas doses de tensão e perfídia, mas colocando no ringue dois tempos diferentes do Velho Oeste, dois estilos diferentes de gênero cinematográfico, contrapondo personagens que representam o passado e outro o futuro. Vai ser interessante ver esta chance de reparação histórica.

Lembrando que não será apenas na categoria de melhor filme ou melhor direção que o longa-metragem pode levar vantagem – exceto que nesta última categoria Spielberg pode ser lembrado por “West Side Story” ou a zebra merecedora, Ryusuke Hamaguchi, do representante japonês “Drive My Car”, tanto na categoria principal quanto na de filme estrangeiro e roteiro adaptado do conto homônimo de Haruki Murakami, categoria esta que deve levar. “Ataque dos Cães” também pode levar melhor ator para Benedict Cumbatch (só perdendo talvez para Denzel Washington por “A Tragédia de MacBeth” ou até para o recente favoritismo representativo crescente de Will Smith pelo lacrimonioso “King Richard”); e outras categorias técnicas, apesar de que irá perder artistas coadjuvantes, Jesse Plemons e Kirsten Dunst, respectivamente, para Ciaran Hinds por “Belfast” e Ariana DeBose por “West Side Story” (pela mesma personagem e categoria que Rita Moreno ganhou o Oscar em 1962 na versão original, feito raro) – em breve textos sobre estes outros filmes aqui nesta coluna.

Só devemos ter em mente que prêmios não garantem nem retiram mérito da obra, pois os artistas estão gigantescos no elenco muito bem azeitado e com ótimo preparo. Vale mencionar que Kirsten Dunst e Jesse Plemons são casados realmente na vida real, e isso trouxe muitas dialéticas interessantes de intertextualidade para suas personagens, com cenas marcantes para ambos, como o encontro de Rose com a representação indígena no filme, subvertida para outras significações.

Aliás, menção honrosa para a contextualização do talento ao piano de Rose que não só serviu de background, como de elemento de suspense em duas das cenas mais belas e tensas, disputando forças com o personagem de Cumberbatch (a disputa de instrumentos, usando a trilha sonora diegética como ferramenta de combate entre cunhados é de uma genialidade tamanha, até porque não se esperava que o caubói rústico fosse tão virtuoso em artes prodigiosas, e parece que ele está escondendo suas hipocrisias de forma ainda mais intimidante). 

No entanto, é a dupla principal que excede expectativas, com a atuação dos principais rivais, Benedict e Kodi, cuja relação cambia entre tutor e pupilo, carrasco e alvo, bem como uma relação de amizade e, de certo modo, homoerótica... Sendo ainda mais intrigante o fato de eles alternarem essas posições, sem sabermos qual a real intenção de cada um, ou qual destino tomarão, como na cena memorável em que ambos estão trabalhando juntos enrolando uma corda e compartilhando o mesmo cigarro de forma sexy e ameaçadora ao mesmo tempo, em planos detalhes sensuais e cáusticos.

Por fim, algumas pessoas podem se perguntar o real sentido do título, tanto do original, “The Power of The Dog”, quanto da tradução aparentemente não literal, que seria “O Poder do Cão” e virou “Ataque dos Cães”. Eis que a resposta, curiosamente, está num diálogo com a Bíblia, cujo salmo davídico em inglês cita nominalmente o título original, em 22: 16-20, mas cuja tradução oficial é exatamente como o filme foi nomeado no Brasil. 

Confiram agora, logo abaixo, de forma autoexplicativa, os versículos que falam sobre a força interna para superar os desafios e tentações. E, no filme, fala sobre o conflito geracional entre épocas diferentes, o que é muito interessante, por ser uma releitura queer da própria Bíblia, em defesa da auto-aceitação e em contraposição a se viver em negação, contra a intolerância e a perseguição da matilha de cachorros grandes pela intimidação contra os oprimidos e as minorias.

Leiam aqui:

16 Cães me rodearam!

Um bando de homens maus me cercou!
Perfuraram minhas mãos e meus pés.

17 Posso contar todos os meus ossos,
mas eles me encaram com desprezo.

18 Dividiram as minhas roupas entre si,
e lançaram sortes pelas minhas vestes.

19 Tu, porém, Senhor, não fiques distante!
Ó minha força, vem logo em meu socorro!

20 Livra-me da espada,
livra a minha vida do ataque dos cães.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.