Diretor de obras-primas como “Barbara”, “Phoenix” e o mais recente “Undine”, o diretor fala um pouco sobre suas obras, seu processo criativo e a pandemia.
Confiram entrevista exclusiva que o cineasta alemão Christian Petzold concedeu ao podcast da Reserva Imovision, conversando com este que vos escreve e, agora, também disponível nesta coluna em transcrição realizada por mim e Mariane Morisawa, cohost do podcast (áudio original no spotify aqui ou no youtube aqui). O diretor fala um pouco sobre suas obras, seu processo criativo e a pandemia. E não deixem de ler a crítica para seu mais recente longa-metragem, “Undine”, listado como um dos melhores filmes de 2021 no mundo inteiro, em coluna recente aqui na Fórum (clique aqui).
Você acha que os fãs podem ter uma visão geral ou uma sensação diferente assistindo seus filmes em ordem cronológica em um serviço de streaming, como na plataforma Reserva Imovision? E você assiste de novo, seus filmes depois de um tempo? Como você se sente revisitando seu corpo de trabalho no mesmo lugar online?
Para mim, é muito difícil ver meus próprios filmes. Porque, você sabe, a mesa de edição, por exemplo, depois de filmar, é, assim, uma patologia. E o filme, então, é como um crime... E você encontra os erros e as feridas. Mas outra coisa, também meio narcisista, é dizer: eu não posso ver meus próprios filmes e assim por diante, porque eles são muito ruins.
Mas depois de 10 ou 12 anos, é possível para mim ver meus filmes novamente e vê-los com distanciamento. Estive na França há alguns anos. E na França, eles têm uma formação cinematográfica forte. Há uma semana no ano em que todos os alunos podem ir ao cinema para ver e discutir os filmes. E eles discutiram de uma forma muito boa, eu gosto desse tipo de educação. E, então, fomos para a França e vi um filme que fiz há 20 anos, “A Segurança Interna”. E eu vi junto com jovens alunos entre 12 e 14 anos. E isso é possível, então posso falar porque tenho uma nova perspectiva. Mas a outra coisa é ver meus próprios filmes (por si só), é um pouco como masturbação. Eu não preciso.
E para os fãs encontrarem todos eles em um só lugar agora, cronologicamente?
Na plataforma de streaming, por exemplo? Meus filmes estavam no MUBI, que é uma plataforma de streaming na Europa. E, então, vejo que existem outros autores, femininos e masculinos. Por exemplo, Kelly Reichardt. Eu amo isto. Eu a amo também. E eu amo os filmes. E vê-los todos juntos de forma cronológica, para mim, é educação. Eu gosto muito disso. É muito bom. Você pode comprar todos os livros, mas não pode comprar todos os filmes. É um grande problema. E para aprender um pouco sobre cinema, sobre a história do cinema, é fantástico ver toda a obra de alguém de forma cronológica. Disso, eu gosto muito.
Aliás, nos seus filmes, o passado nunca é algo remoto. Está sempre no presente. Até os filmes de época. Você acha que tem a ver com ser de Berlim, onde o passado é inescapável? E isso podemos dizer, aqui, de um país que esquece seu passado, que é o Brasil, infelizmente.
Sim. Vi um filme do Glauber Rocha, há algum tempo. Foi muito interessante porque você pode ver, no final dos anos 60, que você vai ter o cinema na Alemanha, e você tem o cinema no Brasil, que tem uma relação entre eles baseada em Bertolt Brecht, Pasolini... É interessante. Acho que hoje em dia você não tem essa colaboração. Temos os mesmos roteiristas trabalhando no Brasil e na Alemanha, os mesmos diálogos, os mesmos tipos. Isso é um pouco chato e decepcionante. Mas esqueci a pergunta.
O passado está sempre presente nos seus filmes. Será porque em Berlim o passado é inevitável?
Sim, lembro-me do meu melhor amigo Harun Farocki, que morreu há sete anos. Acho que fizemos muitas caminhadas juntos e pensando no nosso trabalho, e escrevemos juntos, acho que 12, 13 roteiros. E, às vezes, caminhávamos por Berlim. E ele me fez uma pergunta fantástica. Ele disse: Que ruínas são da guerra e que ruínas são da paz em Berlim? Você pode ver as ruínas que o mundo capitalista neoliberal cria. Destruíram casas e reconstruíram casas. E você vê as ruínas da guerra. E então ambas as coisas estão em Berlim.
E acho que em todo o mundo você pode fazer perguntas como esta: quais ruínas são contemporâneas e quais são as ruínas da história? E ambas estão no mesmo momento na sua frente. E acho que o cinema é sempre contemporâneo. Sempre.
Não gosto de filmes que querem dizer que somos um filme como se tivéssemos vivido no século 18, isso não funciona (para mim). Por exemplo, “Barry Lyndon” de Kubrick é um filme contemporâneo (para mim). E também, em Pulp Fiction, você tem filmes antigos na contemporaneidade. E sim, você tem coisas dos anos 30 e 40 em nossos tempos com boxeadores, prostitutas e assim por diante. E isso, em Berlim, é totalmente concreto. Você pode ver, na sua frente, que os tempos estão lá no mesmo momento. E, então, eu acho que o cinema é assim, para mostrar coisas antigas do mundo moderno. E as coisas modernas no velho mundo, ambos estão em relações essenciais entre si.
Como no seu filme “Em Trânsito”.
Como “Em Trânsito”. Primeiro, tentei fazer um filme de época de “Em Trânsito”, queria criar Marselha nos anos 40. E eu estava totalmente entediado com isso. E eu parei o trabalho em “Em Trânsito” e fiz dois filmes policiais, histórias policiais. E, então, em certa manhã, durante o banho, tenho as melhores ideias no banho...
Eu também!
Mas, por isso, tenho que tomar banho acho que 10, 12 vezes por dia, para criar algumas ideias. Eu tenho essa ideia, como te disse, quando passo por Berlim, temos pedras de memória na frente das casas, com nomes dos judeus que viveram nessas casas e foram mortos pelo fascismo. E meu filho e minha filha ficam na frente das casas e estão lendo os nomes. E, às vezes, os meninos e meninas nas pedras têm a mesma idade que meu filho e minha filha. Portanto, há uma identificação entre eles. Eles estão pensando nos velhos tempos em nossos tempos contemporâneos. E isso é algo que tem a ver com cinema, eu acho.
Como é o seu processo criativo desde o início de uma ideia? E se você tende a criar seus filmes em trilogias temáticas ou se eles se encaixam só depois?
É algo depois. Quando criamos “Em Trânsito”, os atores e eu estávamos andando por Marselha e mostramos a eles os locais de filmagem e temos nossos ensaios e vimos filmes antigos e assim por diante. São como seminários, meus ensaios são como seminários. Durante nossas discussões, nosso discurso, temos ideias para outras portas pelas quais podemos passar, mas não podemos atravessá-las, porque temos esse roteiro na nossa frente. Mas esta porta é interessante. E depois de terminar as filmagens, estamos pensando no próximo. E assim começa uma trilogia. E a outra coisa é que sou protestante desde o nascimento. Então os protestantes sempre têm que trabalhar. Não podemos dormir, temos que trabalhar, trabalhar, trabalhar. E assim a ideia de uma trilogia é continuar trabalhando, sem parar. E eu não gosto disso. Não quero mais fazer trilogias porque quero tirar uma soneca à tarde (risos).
Mas eu amo a metafísica em sua criação lógica, porque às vezes você inverte o processo em outro filme. Então, eles estão conectados de certa forma, não apenas pelos personagens, mas também pela linguagem, você tenta fazer algo que não fazia antes, mas está conectado com algo que você fez, dá uma ideia. Então eu amo isso. Então, essa é a próxima pergunta. Você tem realidade e fantasia em seus filmes, há algo de realismo mágico. Mas nunca há algo óbvio em um gênero de filme, não é apenas um thriller, ou apenas uma fantasia ou apenas um terror, como em “Undine”. Então, como é criar esse equilíbrio? De onde vem essa combinação?
Um dos movimentos cinematográficos mais populares e famosos da história da Alemanha foi o período romântico nos séculos XVIII e XIX. E nesta época, começa a industrialização da Alemanha e os românticos querem encontrar mitos, lendas, contos de fadas. Então, há um poema muito, muito popular de Josef von Eichendorff, um famoso romancista e poeta romântico. E eu fiz uma tradução em inglês. É tipo isso: “Dorme uma música e pensa num salto que fica sonhando para ser ouvido. As melodias da Terra pararão de ressoar se você encontrar o pássaro mágico.”
Este é o século 18 e 19. E, para mim, não podemos voltar a este tempo. Com pequenos lagos fantásticos, florestas, lindas garotas. Não é apenas clichê, não é nada. Mas muitos filmes tentaram fazer isso. Mas eu quero encontrar as coisas em nossos tempos contemporâneos, um pouco como Edward Hopper também é um pintor romântico. Mas ele encontra a beleza e a solidão e a melancolia em seu mundo contemporâneo, em uma mulher, em uma janela, em um cinema ou em um posto de gasolina. E, então, temos que encontrar essas coisas em nosso mundo, temos que encontrá-las.
E, então, eu tenho uma atitude romântica. Mas não quero recriar ou fazer um mundo retrô, mas quero encontrá-lo em nossos tempos. Então, em “Undine”, por exemplo, a estação de trem onde eles se beijam, essa estação de trem é um lugar muito feio. E quando fui lá com os atores, eles ficaram totalmente decepcionados. Não há nada aqui. É um lugar muito feio, mas temos que reencantá-lo. As estações de trem de todos os tempos são lugares fantásticos de beijos, de separação de casais, de pessoas que esperam seu amor. Mas agora as estações de trem estão feias, como podemos contar as velhas histórias nessas feias e modernas estações de trem? E é isso que temos que fazer, para encontrar a beleza ou como no poema de Eischendorff, temos que encontrar o mundo mágico. Sim, isso é o que temos que fazer.
É por isso que você gosta tanto de melodrama, ou histórias de amor? E falar sobre isso também é por que Berlim está dividida na história? E deixa uma marca para ser contada em melodramas e histórias de amor?
Sim, morar em Berlim é uma cidade antiga e lendária. Sim, nos anos 20 e início dos 30 acho que era o centro cultural do mundo. E foi totalmente destruída pelo fascismo e pela guerra. E eles se separaram e havia quatro partes em Berlim e não havia mais indústria. E assim Berlim não tem uma identidade. É uma construção. E também é uma construção chata, mas Berlim sempre teve o desejo de se reconstruir. E seguir seu caminho de reconstrução é interessante para a câmera, para os microfones, para os escritores, para os lápis. Então, é isso, portanto, estou morando aqui porque é um laboratório.
Eu amo isso, essa é a metamorfose que vejo em seus filmes, eles estão sempre mudando e se transformando. Então, essa é a próxima pergunta: Já que você tem mais protagonistas femininas em seus filmes, como é fazer essa metamorfose com essas criaturas cambiantes que partem de um ponto masculino em algum tipo de representação da estrutura social? Mas elas se movem, elas mudam de lugar? E você sente que elas começam um pouco desconfiadas e com medo de se abrir porque são um reflexo das mulheres na sociedade nessa estrutura masculina? Ou é especificamente sobre mulheres alemãs?
Não, não se trata de específico sobre as mulheres alemãs, porque acho que o cinema é sempre internacional. E está contando a história do seu próprio país, mas é internacional. Há um ano e meio fiz parte do júri em Veneza e lá recebi um prêmio. O prêmio por construção de personagens femininas no Cinema Award. E eu fiquei com um pouco de vergonha disso. Porque eu não sou mulher. E acho que eles querem me enganar um pouco com esse prêmio. Mas então eles me disseram, porque todas essas personagens femininas em seus filmes, você receberá esse prêmio e eu tenho que dizer algo na frente dos microfones, na frente do público. E lembro-me que, quando estive pela primeira vez no Festival de Cinema de Veneza, eu era jovem. E eu estava lá. Acho que foi na competição e foi lá no hotel, e na sala do café da manhã, o Claude Chabrol está sentado na mesa ao lado e dando uma entrevista. Ele disse uma frase fantástica, eles lhe fizeram a mesma pergunta: Por que em seus filmes todos os personagens principais são principalmente mulheres? E a sua resposta foi tão incrível. Ele disse: “os homens vivem, as mulheres sobrevivem”. E o cinema é sobre sobreviver. E isso eu acho que gosto muito. Para mim, é ver como funciona um mundo quando está fazendo o retrato de uma mulher.
Falando de Chabrol que trabalhou muito com as mesmas atrizes, você também tem alguns artistas que servem de assinatura, então como é lançá-los? E você escreve pensando em Nina Hoss, Paula Beer, Franz Rogowski? Mas como é para você ajudar a lançar suas carreiras? E você pensa direto neles na hora da construção de personagem?
Quando conheço atores como Franz ou Paula Beer ou Nina Hoss, eu quero trabalhar com eles continuamente. Os próximos roteiros que estou escrevendo... eu os tenho em mente. Eu tenho as fotos deles na minha frente. E estou escrevendo o roteiro para eles. Com eles. Eu não escrevo algo e procuro com um agente de elenco alguém que possa interpretá-lo. Eu escrevo para eles. Por exemplo, o próximo filme também é com Paula Beer, faremos em junho. E eu tenho duas ou três caminhadas junto com ela e estou contando a história e vejo como ela reage e como ela está pensando sobre o personagem e, então, eu mudei um pouco e ela também mudou um pouco. É uma colaboração realmente fantástica.
Não é essa atmosfera de elenco. Que eu sou um chefe e há alguns atores e eu disse sim, não, eu vou te ligar e assim por diante. É algo como um trabalho de conjunto. Sim, é um trabalho coletivo. E acho que quando você vê a história do cinema, os filmes mais importantes são criados assim. Você tem James Gray e Joaquin Phoenix, você tem Marcello Mastroianni e Fellini, você tem James Stewart e Alfred Hitchcock e assim por diante. E Uma Thurman e Tarantino. Acho que não tem nada a ver com desejo sexual e amor, talvez? Eu não sei. Eu não penso nisso. É algo para fazer que estamos em uma maneira coletiva de contar histórias e o cinema tem que fazer algo com o trabalho coletivo da indústria. Não é como pintar, escrever livros. Sim, é algo muito moderno. Portanto, é a melhor arte do mundo, devo dizer.
Então, preciso perguntar também sobre o trauma em seu trabalho. E agora temos um trauma coletivo e comum no mundo que é a pandemia e está junto de muitas coisas para governos conservadores que foram o pior cenário para escalonar a pandemia. Você acha que esse trauma pode mudar a forma como vemos os filmes ou até mesmo sobre ver os filmes antigos vendo-os novamente, sob essa nova luz? Você acha que o trauma em seus filmes mudou um pouco com esse novo trauma, esse trauma comum no mundo?
No ano passado, fui infectado por esse vírus e tive que ficar de cama por mais de quatro semanas. E eu estava trabalhando em uma história de distopia. E depois de três semanas na cama, disse a mim mesmo que odeio histórias distópicas. Os filmes que vi nessa época em que estava deitada na cama foram de Eric Rohmer, Claude Chabrol. E muitas coisas melodramáticas dos anos 50 dos EUA, Leo McCarey, Robert Siodmack.
Reassisti Polanski e Chantal Ackerman, porque eles fizeram muitos filmes de apartamento. Pensei pandemia, filmes de apartamento e escrevi um artigo sobre isso também (leia aqui). Meu Deus, mudou tudo.
Sim, isso eu tenho a mesma experiência aqui. E, então, eu mudei tudo, e o próximo filme não é sobre distopia. É sobre amor e desejo. É sobre um grupo de jovens no verão na floresta, eles têm suas férias e as florestas estão queimando. E também seus sentimentos e seus desejos sexuais queimando e ambos os fogos estão ficando fora de controle. Isso foi mais interessante. E, então, eu mudei tudo e a coisa da distopia. Acho que quando vejo meu filho, minha filha, os dois estão estudando, mas nunca viram a universidade. Eles nunca estiveram na universidade porque está fechada. É tudo por zoom, e o desejo deles de tocar, de corpo, de cheiro, é tão profundo, que acho que o cinema é a arte de reencontrar nossos corpos depois dessa pandemia.