Perante o sucesso instantâneo do lançamento de artistas brasileiras como Anitta e Pabllo Vittar no mercado internacional, vamos aproveitar para analisar as referências cinematográficas do novo videoclipe “Boys Don’t Cry” de Anitta e entender um pouco mais do empreendimento na música ‘para estrangeiro ver’.
Não deixamos, com isso, de reconhecer que possa igualmente ser algo positivo, evidente, e que Anitta possua talento e espírito empreendedor para merecer o mercado mundial e representar muito bem o Brasil lá fora. Porém, há seus deméritos artisticamente também, especialmente perante outros trabalhos mais exitosos da própria artista, como colocaremos em análise ao lado de videoclipes igualmente cinematográficos mais recentes de Gloria Groove.
O trabalho de “Boys Don’t Cry” bebe da fonte direta dos anos 80, e acrescenta o terror que anda revalorizado e na moda ‘de novo’ (algum dia realmente saiu?). Algo que Gloria Groove também fez no álbum mais recente, “Lady Leste” (e fez melhor).
Voltando à Anitta: Há ali muitos títulos com zumbis, principalmente a obra-prima de Michael Jackson, "Thriller", e perpassa até pela marca do mestre George Romero com a série "A Noite dos Mortos Vivos". Há espaço para o humor e a paródia também, como zumbis domesticados e caricatos à la "Meu Namorado é um Zumbi" e "Todo Mundo Quase Morto". Além disso, há o estilo vamp com roupas de couro "Os Garotos Perdidos".
E, sobre a fuga do casamento, há vários filmes como "Noiva em Fuga" e a fuga final da noiva no ônibus de "A Primeira Noite de Um Homem". Bem como o vestido vermelho em casamentos são ironias invertidas com o branco virginal, e um vestido-sangue já apareceu em alguns filmes desde "Questão de Tempo" a "Casamento Sangrento" ("Ready or Not"), além do vestido e penteado da personagem de Winona Ryder no final de "Beetlejuice - Os Fantasmas se divertem".
Sim, Anitta pegou uma responsabilidade enorme pra si com esse título da música e a carga que ele traz. Seja o trabalho homônimo do The Cure ao filme de mesmo nome com a atriz oscarizada Hilary Swank ("Meninos não Choram", representado até visualmente no clipe de Anitta, como nos planos detalhes na boate com as mulheres dançando entre si e etc)... E há várias referências cinematográficas ali, o que é bem legal, apesar de todas serem referências americanas, quando podiam ter pensado melhor em referências brasileiras coexistindo naquele espaço, mesmo que mais voltado pro mercado estrangeiro.
Agora falando da música em si, de fato, e infelizmente, descaracteriza a artista de algumas formas. Não que não possa se reinventar sempre, até como fez em “Girl From Rio” e a adição de bossa nova, mas Anitta possui um diferencial muito grande para além do que pode ser encontrado em “Boys Don’t Cry”, e que permanece na originalidade reverencial de “Girl From Rio”, mas que aqui no novíssimo trabalho não permanece tanto assim.
É quase como se fosse a cultura atual da geração Z de ouvir áudio de Whatsapp e podcast em velocidade 1,5x ou 2x, como muita gente passou a escutar tudo de forma acelerada, e pareceu que faltou a “Boys Don’t Cry” colocar seu arranjo em 150 bpm, ou meio que dobrar a batida pelo menos no refrão, e realçar os graves, tipo drum & bass. Até é compreensível uma referência retrô meio oitentista à la Cyndi Lauper e Kylie Minogue, além do estilo latino mais advindo da saudosa Selena, contudo faltou mais Anitta e o que lhe faz ser grande.
O lado positivo é que a artista continua tendo controle total, e até dirigiu o videoclipe em conjunto com Christian Breslauer! É importante levar em consideração que esta coluna já adora a artista e já até escreveu sobre a presença dela no audiovisual (leia aqui). Porém, é possível que esse novo hit empalideça na playlist dela e esqueçamos num futuro próximo um pouco o ritmo desta música...
E podemos até mesmo cruzar referências com o novo álbum e videoclipes de Gloria Groove, que fez uso das referências cinematográficas de forma bem mais eficiente a serviço de suas músicas de sucesso e da conscientização de questões trans, travestis, drag e etc na sigla LGBTQIAP+. Sem falar na estética híbrida e fluida, bebendo de fontes desde o gênero do terror ao da fantasia, ou mesmo da paródia.
Em seu novo álbum, “Lady Leste”, Gloria já começou com o primeiro single "Bonekinha", com referências mis, desde bonecas clássicas que subvertem o sistema padrão imposto, como Tiffany ("A Noiva de Chucky") e Annabelle ("Invocação do Mal"), a ironias como referenciar “Bonequinha” da Xuxa Meneghel, que por si só já era uma baita fissura no sistema, se analisarmos hoje com olhar opositivo ao que era imposto junto com o filtro infantojuvenil da programação da Rainha dos baixinhos.
Todavia, o principal mesmo foi seu videoclipe fazer uma grande crítica social aos avatares de internet e redes sociais, em que as pessoas se usam da pretensa liberdade total e fingem ser quem quiserem, a interagir com quem quiserem no mundo online, sendo que do lado de fora da vida virtual mantém as mesmas hipocrisias ou até piores em relação a como se colocam no mundo. E, quando lembramos que o Brasil detém um dos piores recordes de transfobia e crimes de ódio à população LGBTQIAP+, ao mesmo tempo em que consome toda uma cultura advinda das raízes desta mesma cultura, torna-se uma declaração política pungente de Gloria fazer este clipe.
Ao falar da bonekinha que ‘não sabe brincar’ e é ‘cavalona tipo Meghan’, Gloria reinventa as próprias regras do jogo e não se sujeita a titereiro nenhum que ainda se acha no privilégio de manipular as cordas invisíveis de boneca alguma...
Além disso, Gloria Groove retomou as referências de terror em seu trabalho seguinte, além de se tornar seu próprio Títere em “A Queda”. Ela brincou de freak show e trouxe desde figuras aludindo ao palhaço Pennywise de “It” a zumbis, e até referências à Lady Gaga atuando na série “American Horror Story”, ou mesmo citação à Britney Spears com seu sucesso “Circus”. Sem falar que mais uma vez há certas caricaturas em homenagem à Xuxa, como na personagem histórica da ídola no filme “Super Xuxa Contra o Baixo Astral”. Tudo isso para falar sobre a cultura do cancelamento como um manifesto crítico ao culto à fama vazia.
Vide a letra bastante irônica: "E venha ver os deslizes que eu vou cometer! E venha ver os amigos que eu vou perder! Não estou cobrando entrada, vem ver o show na faixa. Hoje tem open bar pra ver minha desgraça! Extra! Extra! Não fique de fora dessa, garanta seu ingresso pra me ver fazendo merda! Melhor do que a subida, só mesmo assistir à queda".
Por fim, a artista lançou o maior destaque até agora, “Leilão”, que já está virando, inclusive, a música-tema da nova edição do Big Brother Brasil 2022, graças à participante Linn da Quebrada, que fez virar chiclete no gogó de todo mundo e até inspirou a trilha do novo quadro “Terapia BBB” do humorista Paulo Vieira.
No videoclipe, Gloria agradeceu ao diretor Felipe Sassi pelo clima aterrorizante de fábula, e busca outros tipos de referências. É bem interessante o cenário inicial aludindo a uma grande feira na Idade Média, pois parece reciclado intencionalmente da novela recente “Deus Salve o Rei”, muito satirizada e acusada de ter tentado imitar e surfar na onda da série icônica “Game of Thrones”... Mas, em se falando de sátira, parece o melhor tipo de matéria-prima para Groove fazer os trabalhos de que mais gosta.
Além disso, logo no segundo ato, ela passa a uma crônica de classes com um leilão muito sofisticado e elitista, já aparecendo no videoclipe com vestidos e maquiagem tipo vilã da Disney, como “Cruella”, bem como aludindo ao filme “Convenção das Bruxas”. E culmina no terceiro ato a abraçar completamente o conto de fadas mais sombrio ao sair de dentro de um ovo meio demoníaco com maquiagem de Sátiro, da mitologia grega.
A fantasia final da pequena narrativa não só lembra diretamente os monstros da década de 80 como em “A Lenda”, “O Labirinto” com Bowie ou mesmo “Willow – Na Terra da Magia”, mas também filmes mais recentes, como o cult “O Labirinto do Fauno”. Brilhante! E tudo a serviço de uma forte alfinetada de novo ao culto à fama, mas de forma diferente desta vez, especialmente levando em consideração a fama contra-hegemônica de artistas trans, travestis e LGBTQIAP+.
Devemos sempre ter em mente que este reconhecimento recente é muito necessário, apesar de sabermos de uma história de exclusão que precisa ser denunciada e combatida, justamente para que grandes contribuições para a história da arte, como estas citadas acima, continuem a render frutos com a liberdade criativa que merece e sem ameaças. E por isso que o lado freak é tão necessário, como um alerta ali no canto de olho, no pé da orelha, a lembrar que, se o mercado tentar ‘domesticar’ uma força da natureza, irá receber a mordida de volta!
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum