Motivador profissional

O motivador profissional caprichava nas metáforas, criava experiências que nunca teve e citava uma frase de Henry Ford, que era podre de rico, para mostrar aos desempregados do dia seguinte quantas oportunidades existem no fracasso

Escrito en COLUNISTAS el
Conheci um sujeito numa festa. A simpatia viva. Há pessoas que parecem nunca ter sido tristes, nem um dia sequer. Por isso, desconfiei desde o começo. Digo isso, não por cabotinismo, mas por justiça. Essa que defendo para todos, quanto mais para mim. Tudo na vida tem seu reverso. Por isso que eu desconfiei. Sorria. A toda hora ele sorria. E quanto mais abria a boca e estendia os músculos do rosto até formarem-se covas em suas bochechas, quanto mais puxava cadeiras para as senhoras e se dispunha a ajudar alguém, mais a desconfiança me tomava. Aí vem a bebida, as gravadas se afrouxam e a informalidade revela o inconfessável. Não sei porque de mim se aproximou, pois o evitei enquanto pude. Talvez tenha sido, para ele, desafiadora minha indiferença. Àquela altura era praticamente um parente dos anfitriões, íntimo de meus amigos e o queridinho do porteiro à cozinheira. Eu era o último soldado na trincheira, e me sentia protegido em minha Linha Maginot. A simpatia, entretanto, é uma desgraça. E ele veio, pediu o isqueiro, acendeu um cigarro e envolveu-me numa conversa ajustada ao ritual do cigarro em festa. Contornou minha resistência. Quando dei por mim, estávamos enchendo a cara e reclamando do nosso Vitória. Contou-me. Era consultor motivacional, especialista em gerenciamento de mudanças e novos desafios, o que demorei a entender, mas sem perder a pose. Aos poucos, com dificuldade, comecei a conectar os fatos. O busílis era esse. Uma grande empresa ia demitir funcionários, ou ser incorporada e cortar despesas, retirando benefícios e derrubando os salários. Os empresários, munidos de pesquisas e dados estatísticos, preferiam arcar com os custos de seu serviço, do que assumir as consequências. O sujeito recebia uma pauta da empresa, já com os pontos a serem trabalhados. Só depois empregava seu talento. Iriam demitir centenas de funcionários? O motivador profissional caprichava nas metáforas, criava experiências que nunca teve e citava uma frase de Henry Ford, que era podre de rico, para mostrar aos desempregados do dia seguinte quantas oportunidades existem no fracasso; indispensável ao recomeço. Os empregados aplaudiam. Planejava-se o corte nos planos de saúde? O palestrante recorria à Bíblia, sacava dela dois versículos e outra situação pela qual nunca passou, e explicava didaticamente porque na vida, menos é mais. Perderão metade do auxílio transporte? “Quem tiver duas túnicas dê uma a quem não tem nenhuma; e quem possui o que comer, da mesma maneira reparta”, citava ele os sacramentos, sem constrangimento. “Melhor perder um olho do que os dois, porque quem vê não é o olho, mas você”, arrematava, criando encíclicas. E assim, entre menções aos apóstolos, o profissional da motivação fazia justiça aos seus rendimentos, em seu peculiar entendimento. Para a empresa, saía mais barato contratá-lo do que arcar com as prováveis demandas judiciais. Dalí saímos, cada um para seu canto. Sina que o álcool realiza, a incontinência verbal pulou de felicidade. Estava livre. Ele me atirou no meio da cara, como quem premeditara a vingança cruel por eu ter vendido tão caro minha desconfiança. -  Sou eu quem amanso o boi.