ENTREVISTA

Sergio Amadeu explica tudo sobre os softwares de espionagem da Abin

Pesquisador do mundo digital e professor da UFABC explica a operação do First Mile e outros aparelhos usados pela inteligência no Abingate

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Em entrevista ao programa Fórum Onze e Meia desta quarta-feira (31), o sociólogo e pesquisador do mundo digital Sergio Amadeu comentou o escândalo de espionagem da Abin sob o governo Bolsonaro.

Segundo uma investigação da Polícia Federal, o órgão da inteligência brasileira foi aparelhado pelo bolsonarismo. Com o uso do software israelense FirstMile, a Abin monitoraria inimigos e alvos políticos do clã Bolsonaro para fins obscuros.

Sergio Amadeu, que é professor da UFABC, especialista em software livre e segurança digital explicou em sua entrevista à Fórum como o programa de espionagem funciona. Em conversa com Renato Rovai, Dri Delorenzo e Felipe Pena, o especialista detalhou o método da operação bolsonarista.

Renato Rovai: Explica para a gente: First Mile, esse sistema utilizado por Israel para monitorar pessoas, que ele tem de diferente? Como ele funciona?

Sergio Amadeu: Esse sistema visa a detecção da pessoa no ambiente geográfico. A partir do celular que qualquer pessoa carrega, ele consegue saber em que lugar essa pessoa está georreferenciadamente. É basicamente isso. Só que esses sistemas são empregados, em geral, junto com outros. 

Esse First Mile é ligado à Cognite, uma das empresas de Israel. A União Europeia tem um relatório sobre esses spywares, que são softwares de espionagem, e foi motivado por um outro tipo de spyware, que foi muito famoso no Brasil também, que era o Pegasus, que é de outra empresa, a NSO. 

O Pegasus é um software que você manda para o celular da pessoa, e ele não precisa nem você fazer nada, ele já entra no seu celular quando você liga o aparelho e atende, mesmo que a ligação caia, e ela vai cair, ele insere alguns pacotes de dados, que depois vão puxando outros pacotes. 

Ele passa a dominar o seu celular, e esse celular, praticamente, ele está vulnerável. Com o Pegasus instalado, o software passa a enviar todas as informações que forem solicitadas do que você está fazendo naquele celular. 

No caso, a União Europeia, por causa do Pegasus, começou a investigar as empresas de espionagem de Israel. Ela chegou também na Cognite. ocê só acha um contrato com ela formal no Diário Oficial da União, que é com a Polícia Rodoviária Federal, era um contrato com a Verity, que foi renovado por R$ 5 milhões, com a Polícia Rodoviária Federal, na época do Jair Bolsonaro também. 

Nos governos do Estado, as subsidiárias dessa empresa têm vários contratos. Então, as polícias estaduais, ou os seus sistemas de inteligência, de espionagem, que podem estar a serviço também de autoridades, ilegalmente, no meu modo de ver, estão vigiando as pessoas no país inteiro. 

O que está acontecendo é o seguinte, esses sistemas, eles, em geral, ele estão trabalhando diretamente no seu celular, explorando falhas, explorando determinadas portas de entrada que eles descobrem que existem. Não é um vírus em que você precisa usar um software para ele estar incubado, e entrar e contaminar o seu aparelho. Ele não, ele não é um vírus.

Ele explora outras entradas do seu aparelho. E, no caso do First Mile, eu não tenho certeza, porque é um software que usa fragilidades do sistema de telecomunicação para detectar as pessoas ou se ele usa o aparelho da pessoa. 

 

Se ele está instalado no aparelho da pessoa, ele, na verdade, é muito fácil de georreferenciar por causa das torres de celular, as empresas de celular, por exemplo, qualquer uma, ela sabe que você está num certo lugar. 

Por isso que chama celular, né? Você está dentro de uma célula, onde tem uma torre que te atinge. Então, por exemplo, se eu desligar o meu celular agora, entrar num avião e ligar na Bahia, como é que vai funcionar? Lá na Bahia eu vou dar um ping, quando o meu telefone ligar para a torre de um celular. 

Por isso que você vai conseguir me localizar imediatamente. Em qualquer lugar do mundo que tenha um acordo de roaming.

Esse tipo de ação, no meu modo de ver, é completamente ilegal. Essa empresa, a Cognite e a Verity, ela trabalhou para ditaduras no mundo inteiro, ela trabalhou, efetivamente, está sendo... A União Europeia tem um relatório muito detalhado, que mostra que ela já perseguiu gente, já permitiu que fossem localizadas lideranças que lutam por direitos humanos, em várias ditaduras, inclusive no Sudão. 

Ela permitiu a eliminação física de pessoas, porque ela localiza uma pessoa, os caras vão lá e matam a pessoa. Então, é uma empresa, que faz parte de quase duas centenas de empresas israelenses, que se beneficiam da Unidade 8200 de Israel. 

Eu queria chamar a atenção de todas e todos que estão nos ouvindo aqui. As Forças de Segurança de Israel, elas têm uma unidade de hackers e de desinformação, que se chama Unidade 8200. Essa unidade, ela fica lá com pessoas que são treinadas, na época que estão fazendo o serviço militar obrigatório, que lá tem um tempo muito grande. 

Essas pessoas, em geral jovens, quando elas saem, elas já estão treinadas ou na área de tecnologia, para fazer intrusão, para fazer proteção de dados, para utilizar dispositivos e códigos sofisticados, ou elas já estão na linha de fazer desinformação, ou seja, de atacar, de passar por outras pessoas, de criar fakes, isso aí que os bolsonaristas usaram amplamente no Brasil e a gente conhece. 

Quando esses jovens saem do exército, o que acontece? Eles são uma mão de obra qualificada, é só pegar e pôr numa empresa. Você economiza custos de formação e você utiliza, inclusive, o conhecimento dessas pessoas para criar novos dispositivos. 

Lá é o paraíso das empresas de espionagem, de spyware, de intrusão, de desinformação, de ataques. É um trabalho sujo que Israel ganha muito dinheiro e faz com a anuência do Departamento de Estado de Israel, com o Departamento de Defesa de Israel.

Tem vários relatórios no mundo, vários países são muito preocupados com isso, só que a família Bolsonaro, vocês devem se lembrar, vivia lá em Israel. Por quê? Porque é o paraíso do que eles querem, violar direitos das pessoas, invadir celulares. 

E o curioso é que ele e esses adeptos deles ficam falando que defendem a liberdade de expressão. O que o Bolsonaro fez foi instaurar a Gestapo no Brasil. 

Ele faz uma polícia que não tem regras, que faz o que quer, que são um bando de bate-paus digitais e que conta com o aval desse Netanyahu. Então, é um absurdo o que a gente está vendo. Eu não sei se eu consegui explicar, mas é mais ou menos isso. É um absurdo o que fizeram contra adversários políticos.

Felipe Pena: Sérgio, se alguém ligar para o meu celular e o número não é identificado. Mesmo que eu não atenda, ele consegue entrar? Pode ter acontecido isso?

SA: Tem um laboratório no Canadá, chama Citizen Lab. É um laboratório que trabalha em conjunto com vários grupos de direitos humanos e a Anistia Internacional. Lá, para quem está nos ouvindo e que tem interesse técnico, lá tem toda uma decodificação de alguns softwares de espionagem, principalmente o Pegasus. 

Há uma desconfiança que tem uma versão que você não precisa nem atender. Eu já fui grampeado. Na verdade, ele deve ter ficado dentro dos ramais da operadora, dos servidores, e na hora que se atende, ele já entra no seu celular com um pequeno pacote. Os pacotes que vão puxando outros. 

 

Dri Delorenzo: Não tem como você se proteger de espionagem no celular?

SA: Desse tipo de software não tem, você tem como detectar. Vocês devem ter visto já vários filmes, isso é bem antigo, pessoal. 

Vocês devem ter visto que, sei lá, esses filmes, inclusive americanos, contra, que fazem aquele estereótipo de terroristas, que aquele cara que é o personagem do mal, ele nem celular tem. Porque, de fato, por causa desse aparelho, ele é um aparelho que facilita muito a comunicação de todas e todos. 

Então, a indústria de espionagem fez de tudo para cercar esse aparelho e para poder fazer desse aparelho um elemento de localização e de ação. Tem um software dessa mesma empresa, o GI3, se eu não me engano, que permite dominar o seu celular. 

Quando você não está usando, ele manda mensagem como se fosse em seu nome. E não deixa registro para você. Então é como se eu entrasse e mandasse uma mensagem para o Rovai do Whatsapp e o próprio celular apagasse isso. Entendeu? Existem sofisticadas ações que essas empresas fazem para poder monitorar e espionar. 

Uma minha opinião com base em outras situações, em outra conjuntura, onde softwares de espionagem política são usados também para espionagem industrial. Então muitas empresas compram isso também para espionar o outro, o concorrente.

Existem versões muito brandas, no sentido de, muito distintas, muito mais rudimentares do que essas, dessas empresas de espionagem, mas que são usadas por maridos e namorados ciumentos para vigiar mulheres, não sei se vocês sabem. São verdadeiros spywares que acompanham o software da esposa, da namorada e espelha no telefone desse cara aí, desse machista, tudo que a mulher está fazendo, entendeu? 

Já foi denunciado e você vai falar, mas pô, como isso é possível? Então, olha que loucura. Isso foi pensado posteriormente, que criaram softwares para monitorar adolescentes. Vocês devem saber que tem pais que tem usam, com total ao acesso do celular da criança, do adolescente. Que você vai dizer, pô, isso é por uma boa causa, né? Ver se o adolescente está usando corretamente. Só que toda boa causa tem uma ambivalência aí, né? 

E o exército brasileiro não pode ter um? Um trabalho de espionagem daqueles que querem agredir o Brasil, potências estrangeiras?Pode, até poderia.  Só que é assim, nunca poderia ser usado internamente. Porém, se até as Forças Armadas são usadas internamente, pra vigiar o povo, pra bater o povo, pra dar golpe. Imagine... 

Tudo que é sistema de espionagem no Brasil não é usado contra os norte-americanos, que é a potência principal que nos agride. O nosso maior temor não é do Irã, gente. Não é da Venezuela. É dos Estados Unidos. 

Esses sistemas de espionagem são usados contra o povo. E não contra o verdadeiro inimigo que fez a operação de destruir empresas brasileiras, como a Lava Jato, que faz operações de impedir contratos brasileiros no exterior, que espiona a Petrobras. 

Vê esses milicos nossos aí. O que eles estão falando? Qual que é a missão deles? Apoiar os americanos. Ser o guarda-belo no quadrante sul do mundo.  E o Brasil?  Como que ele se defende? Ah, o Brasil... O spyware é para usar contra o povo, contra lideranças, contra ativistas de direitos humanos, contra lideranças indígenas, contra quilombolas. Eu fico imaginando isso nas terras indígenas, nas áreas rurais...

É uma coisa complicada o uso dessas ferramentas sem autorização judicial. Por que eu digo isso? Eu acho que o Poder Judiciário pode autorizar uma coisa dessa. Mas insisto nisso. É dentro das regras da democracia, do direito, das leis. 

E o que os sistemas de inteligência fazem é atuar fora do sistema legal. Por que? Porque, em geral, a inteligência, a espionagem, atua contra inimigos externos. E a contra inteligência atua para proteger da espionagem externa aqui. Então, ele não usaria contra brasileiros, exceto na suspeita de ser um agente estrangeiro. 

Mas não é assim que funciona no Brasil. Insisto nisso. O Brasil... Ele tem um problema aí que é que não se resolve só na espionagem. É uma questão da tutela militar e do erro da missão militar brasileira. O Brasil não quer ser o pau mandado dos Estados Unidos aqui. 

Aí está errado. Ele teria que ser uma força de defesa contra as ameaças externas e não ter autorização para agir contra o nosso povo. Porque aí seria a garantia da ordem – que é uma coisa muito difícil de discutir o que é a ordem – seria a da polícia, de forças civis e não militares. 

Mas vocês viram que isso está longe de acontecer. A gente não conseguiu mexer no artigo da Constituição que garante a tutela militar e, na minha opinião, é que isso é um erro. Mas, enfim, tem gente que diz que não é para mexer em vespeiro. O problema é que as vespas estão construindo suas novas casinhas. 

Pergunta da audiência: esses softwares podem ser usados para roubo?

SA: Claro que podem. Basta você fazer um acordo com essa empresa, comprar esse software, ou você pega essas empresas ligadas ao crime organizado, grandes empresas já existem, essas empresas certamente vão pagar, ter dinheiro para pagar as cifras milionárias desses softwares e vão comprar.

Agora, o curioso é que o Departamento de Defesa de Israel sabe de tudo isso. Eu queria só deixar claro. E ele é complacente com esse tipo de ação de espionagem a civis.