O Ministério Público denunciou na última segunda-feira (17) Eduardo Kawano e Andrea Carvalho Alves Moreira, donos da escola infantil Pequiá, na Zona Sul de São Paulo, por tortura contra pelo menos dez crianças matriculadas na creche. A promotora Gabriela Belloni, que avaliou o inquérito policial, ainda pediu a investigação de duas funcionárias – ambas adolescentes – como cúmplice dos crimes.
Junto com a denúncia, o MP também pediu que a prisão temporária de Eduardo e Andrea fosse convertida em preventiva, o que deve impedir a soltura dos dois no prazo de 30 dias – como previsto pela prisão temporária – e forçá-los a responder presos pelo processo. O casal está preso desde 27 de junho.
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Ainda de acordo com a denúncia oferecida pela promotora Belloni, da 4ª Promotoria de Justiça Criminal da Capital, o casal proprietário teve o apoio das duas funcionárias nos sistemáticos eventos em que puniam as crianças. Elas podem responder por omissão em relação aos crimes.
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O indiciamento do casal, ou seja, quando a Polícia Civil finaliza as investigações e entrega o inquérito policial para apreciação do MP, ocorreu no último dia 4 de julho. Agora, após a apreciação do MP com a consequente denúncia, começa a tramitar o processo contra os proprietários na Justiça. Já em relação as funcionárias, uma nova investigação policial, complementar, se inicia.
Na ocasião do indiciamento, Fábio Daré, delegado responsável pelas investigações, informou a imprensa que embasou o indiciamento a partir das evidências colhidas e dos depoimentos de pais e funcionários. E a defesa dos acusados disse que os clientes são inocentes.
“Eles não enxergam os atos ali praticados como tortura. Afirmam que nunca tiveram essa intenção. Nunca foi esse o fundamento da situação. Eles afirmam, principalmente o Eduardo, que ele não via os atos dele como violência, como tortura, como está sendo colocado pelo processo e pela mídia”, declarou a advogada Sandra Pinheiro de Freitas. Ela está na defesa do casal desde a noite em que se entregaram para as autoridades.
A escola passou a ser investigada no último dia 15 de junho quando a professora Anny Garcia Junqueira, que trabalha na instituição, denunciou as práticas aos pais e às autoridades. A polícia ouviu pelo menos 14 testemunhas ao longo das investigações. Quase todas as oitivas foram com pais de alunos, incluindo a mãe do menino amarrado ao poste em setembro de 2022, pivô de um episódio que viralizou logo da denúncia.
A denúncia da professora
A pequena escola Pequiá, localizada no tradicional bairro do Cambuci, próximo ao centro de São Paulo, parecia ser uma instituição de educação infantil segura e profissional como outra qualquer. Mas a professora Anny Garcia Junqueira notou algo estranho e então tudo mudou.
As cenas de terror, humilhação, falta de traquejo e maus-tratos contra as crianças falaram mais alto do que o medo de uma demissão ou de ser desacreditada publicamente. E assim, revoltada com o que via, a professora começou a traçar uma estratégia para registrar os maus-tratos.
Uma foto tirada às escondidas pela professora mostra um menino amarrado a um poste pela blusa que vestia. Um vídeo divulgado para a imprensa mostra uma segunda situação, em que um outro menino é humilhado na frente dos amigos porque deixou aquela gotinha de xixi escapar. Um terceiro registro mostraria a dona da pré-escola aos berros com uma menina de 1 ano de idade.
“Até em questão de xixi elas eram punidas, de ficar o inteiro com as necessidades na roupa, no caso da criança que fica sentada na caixa. Eram punidas por qualquer motivo”, disse a professora. Segundo seu relato, sempre que algo desagrava os donos, era o momento que as punições, humilhações e até agressões eram impostas às crianças.
Com os registros em mãos, a professora então os revelou a alguns pais. E a informação foi circulando ao longo da comunidade escolar. À imprensa, uma mãe declarou ter ficado “horrorizada” com as imagens: “Chorei, chorei, não podia acreditar que acontecia isso”, declarou.
Relatos dos pais
Mães, pais, responsáveis e professores começaram a fazer denúncias após o material da professora circular. Ao todo, 3 boletins de ocorrência foram registrados, o que fez com que a Polícia Civil pedisse a prisão temporária dos diretores e autorização para executar mandados de busca e apreensão.
Em um trecho do boletim de ocorrência, uma mãe relata que o filho chegou em casa contando que viu o dono da escola agredir uma outra criança na cabeça por ter urinado nas calças. O mesmo menino ainda contou que em outra data o diretor colocou o aluno em questão vestindo apenas fraldas diante dos colegas. Crianças relataram aos pais a existência de uma “sala escura” para onde eram levadas como punição.
Outra mãe, de 34 anos, do menino que foi amarrado a um poste, diz que o filho precisa de atendimento psicológico após ter sido submetido à tortura flagrada em fotografia. Ela diz que sentiu muita dor, por não poder estar ali presente, impossibilitada de protegê-lo.
A imagem do garoto amarrado foi gravada em setembro do ano passado, mas a mãe só teve acesso no dia 15 de junho de 2023, quando um dossiê com diversas imagens de maus-tratos e torturas foi encaminhado às autoridades e aberto seu acesso à comunidade de pais. A mãe ainda relatou que trocou o menino de escola neste ano e que ele apresentou mudanças no comportamento.
“Ficou agressivo com os coleguinhas e passou a desrespeitar os professores, como se esperasse ter algum tipo de punição. Eu paguei a mensalidade em uma escola para que o meu filho fosse torturado. Ele passou por algo que vai ficar marcado para sempre na vida dele”, disse.
Relato de ex-professora
Em 27 de junho foi a vez de uma professora que trabalhou na escola entre 2015 e 2016 relatar a sua experiência no local para a imprensa. Ela não teve o seu nome divulgado. Afirmou que já naquele período presenciava diversos abusos e que pediu demissão da escola por não suportar mais observar as condutas, uma vez que se sentia impotente para fazer algo a respeito.
“Costumavam bater na cabeça das crianças e apertar as mãos ou os dedos até a criança falar ou fazer o que eles queriam”, disse a professora à Band.
Ainda relatou que o próprio cardápio escolar, quando mostrado aos pais, era impecável. Recheado de verduras, frutas e alimentos de todo tipo. Mas o marketing não acompanhou o cotidiano. Segundo a professora, todos os dias eram servidos carne moída ou salsicha requentados. Mas pior ainda, nem todas as crianças teriam o direito de se alimentar.
“As crianças que tinham inadimplência na matrícula não recebiam a refeição, colocavam elas na mesa mas não davam a comida. Quando eles não estavam perto, a gente dava. São perversos, gostavam e tinham prazer em judiar das crianças”, revelou.
Os acusados e a defesa
A advogada acredita que é preciso aprofundar melhor a apuração das denúncias para que se afirme se realmente houve o crime de tortura ou não. Ela aponta é preciso coletar maiores informações sobre o contexto das imagens, sobretudo aquela em que um menino aparece amarrado a um poste, pois na visão dos acusados seriam apenas brincadeiras.
“Ele me relatou que aquele negócio de amarrar as crianças ele via como uma brincadeira. Ele brincava assim quando era criança. O grande problema também é como foi colocada cada foto. Como foi colocado cada vídeo. Tudo isso vai ter que ser analisado no processo. A tortura em si tem um contexto muito complementar. Você precisa ter um ideal muito forte para praticar a tortura. Tem que ter um contexto de redução, de humilhação e toda uma história por trás”, disse a advogada.
Kawano e Moreira, por estarem sendo acusados de um crime contra crianças, correm o risco de serem ameaçados fisicamente por outros detentos. Dessa forma ficou decidido que ambos ficarão presos em carceragens separadas, ele no 8o DP do Brás e ela no 6o DP do Cambuci.
Segundo a funcionária que os denunciou, nenhum dos dois era formado em pedagogia. O casal teria vendido uma pizzaria em 2012 para comprar a escola. Para fazê-la funcionar, usariam os nomes de outros profissionais para resolver trâmites burocráticos, enquanto seriam eles próprios, sem formação, que cuidariam das crianças no dia a dia.