DENÚNCIA

Mais de 98% dos territórios quilombolas estão ameaçados no Brasil, aponta estudo

Obras de infraestrutura, mineração e imóveis particulares são as principais ameaças aos quilombos

Mais de 98% dos territórios quilombolas estão ameaçados.Créditos: Samira Neves/Terra de Direitos
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Mais de 98% dos territórios quilombolas do país estão ameaçados por empreendimentos minerários, obras de infraestrutura ou sobreposições de imóveis particulares, aponta o novo levantamento do Instituto Socioambiental (ISA) em parceria com a Coordenação Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq).

Territórios importantes não só para a preservação da cultura e dos costumes de povos quilombolas, os quilombos também estão entre as áreas mais preservadas ambientalmente, se colocando como fundamentais para a mitigação dos efeitos da crise climática.

Hoje, de acordo com dados do IBGE, há cerca de 1,3 milhão de pessoas que se identificam como quilombolas no país. Ao todo, são 485 quilombos, dos quais 347 ainda passam pelo processo de titulação

"Os resultados mostram que praticamente todos os quilombos no Brasil estão impactados por algum vetor de pressão, evidenciando a violação dos direitos territoriais das comunidades quilombolas”, avalia Antonio Oviedo, pesquisador do ISA. Para ele, "é urgente o cancelamento de cadastros de imóveis rurais e de requerimentos minerários que incidem sobre os quilombos, bem como consulta prévia da comunidade sobre qualquer obra de infraestrutura ou projeto que possa degradar o território ou comprometer os modos de vida dos moradores".

Os três fatores de ameaça citados acima representam as maiores pressões sobre os territórios quilombolas, que causam impactos como desmatamento, degradação florestal e incêndios, além de perda de biodiversidade e degradação de recursos hídricos devido à exploração mineral e atividades de agricultura e pecuária no entorno dos territórios - facilitadas por obras de infraestrutura como a abertura de estradas e rodovias.

De acordo com o levantamento, estudos mostram que obras de infraestrutura e outros projetos agropecuários e de mineração são planejados, implementados e medidos conforme expectativas setoriais e segundo metas macroeconômicas, mas desconectados das reais demandas sociais locais. “O resultado tende a violações de direitos, perda de oportunidades socioeconômicas e estrangulamento de modos de vida e usos dos recursos naturais", pontuam os pesquisadores.

As maiores ameaças

Obras de infraestrutura

O levantamento aponta que as obras de infraestrutura impactam 48% da área total dos territórios quilombolas. A Região Centro-Oeste é a que concentra a maior incidência dessas ameaças. No local,  57% dos territórios estão sendo afetados.

Entre os quilombos mais afetados, se destacam Alto Trombetas II, Trombetas, Gurupá Mirim, Jocojo, Flexinha, Carrazedo , Abui, Parana do Abui, Tapagem e Sagrado Coração, no Pará; e Barra do Aroeira e Kalunga do Mimoso em Tocantis.

Requerimentos minerários

Cerca de 781 mil hectares de terras quilombolas estão ameaçados por um total de 1.385 requerimentos minerários. Novamente, a Região Centro-Oeste se destaca e é a que mais concentra quilombos pressionados por requerimentos minerários (35%). O território Kalunga também se constitui como o mais ameaçado, com 180 requerimentos em sobreposição a 66% de sua área.

Em seguida, aparecem as regiões  Sul (25%), Sudeste (21%), Norte (16%) e Nordeste (14%). 

Cadastro Ambiental Rural  (CAR)

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é outra ameaça aos quilombos. O levantamento identificou mais de 15 mil cadastros de imóveis rurais em sobreposição aos territórios quilombolas. As regiões Sul e Centro-Oeste são as mais impactadas, com 73% e 71% da área dos territórios quilombolas pressionadas, respectivamente.

O Cadastro Ambiental Rural (CAR) é um instrumento nacional de registro de imóveis rurais que tem como finalidade integrar informações ambientais de todas as propriedades e posses rurais do país.

A inscrição ocorre junto aos órgãos estaduais de meio ambiente, que devem prover assistência técnica e sistemas eletrônicos adequados para o cadastro em três segmentos: imóveis rurais (CAR-IRU), assentamentos (CAR-AST) e de povos e comunidades tradicionais (CAR-PCT), que é a categoria em que se enquadram os quilombos. 

No entanto, Francisco Chagas, membro da Conaq, explica que essa última categoria tem recebido orientações incorretas de empresas terceirizadas ou mesmo dos órgãos estaduais, que têm orientado a inscrição em categorias distintas: de imóvel rural ou assentamentos. Ainda, alguns estados não disponibilizam o sistema para inscrição do CAR de povos e comunidades tradicionais, excluindo as comunidades quilombolas dessa política pública.

“É fundamental promover um amplo debate nacional envolvendo todos os níveis de governo e os povos quilombolas para discutir as práticas de racismo estrutural no Brasil. Os governos precisam reconhecer essa questão e pedir desculpas, pois somente assim será possível resolver os problemas enfrentados pelas comunidades quilombolas no país”, enfatiza Chagas.

Diante da omissão do Estado, os próprios quilombolas têm se organizado para remediar a situação. No Maranhão, desde 2018, o registro do CAR-PCT em territórios quilombolas é realizado através de articulações entre Organizações Não Governamentais, sindicatos rurais e as comunidades quilombolas.

No Pará, o governo estadual criou a mesa de negociação quilombola, institucionalizando um espaço de diálogo no tema. No Tocantins, as próprias lideranças quilombolas, com apoio da Coordenação Estadual Quilombola (COEQTO), têm realizado trabalhos de sensibilização nas comunidades para a inscrição no CAR-PCT. 

“Em estados que não possuem um módulo de cadastro próprio, é importante que utilizem o sistema nacional para que quilombos e outras comunidades tradicionais possam cadastrar seus territórios”, orienta Chagas.

Os quilombos e a preservação ambiental

De acordo com dados do MapBiomas, os territórios quilombolas perderam apenas 4,7% de vegetação nativa em 38 anos. Enquanto isso, as áreas privadas perderam 17% no mesmo período. 

“As florestas, a água, os animais e toda forma de vida são cuidados meticulosamente pelos quilombolas, seguindo os ensinamentos ancestrais, pois todas as vidas importam em um quilombo”, explica Chagas.

Ele ainda acrescenta que, para as comunidades quilombolas, tais elementos são essenciais para a subsistência e a continuidade da vida no planeta

"Os micro-organismos naturais do solo cuidam do que a terra necessita, por isso, evitamos a introdução de componentes estranhos ou sintéticos nos territórios, como os agrotóxicos. Como resultado desse compromisso com a preservação ambiental, os territórios sob domínio quilombola são mantidos em estado de conservação”, diz.