“Enquanto isso, no Marajó, o João desapareceu esperando os ceifeiros da grande seara”, diz um trecho da música “Evangelho dos Fariseus”, da jovem cantora gospel Aymée Rocha, que a senadora Damares Alves (Republicanos-DF) e outros bolsonaristas tentam emplacar como aquela que irá tocar na final do Dom Reality, um show de talentos da música evangélica organizado em parceria com a plataforma Deezer.
Um vídeo da cantora no programa viralizou nos últimos dias no YouTube e foi compartilhado, além de Damares, por celebridades como Rafa Kalimann, Juliette e Virgínia Fonseca. Como a letra trata da Ilha do Marajó, um enorme arquipélago na foz do Rio Amazonas, e denuncia suposto abuso sexual de crianças, as buscas no Google pelo local dispararam e uma antiga denúncia de Damares voltou à tona.
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Ainda como ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos de Jair Bolsonaro (PL), Damares Alves disse em 8 de outubro de 2022, durante culto evangélico em Goiânia (GO), que teria tomado conhecimento das práticas de exploração sexual em Marajó. Seu discurso acusa a população local de ser conivente com as organizações criminosas e, entre os detalhes da narrativa de Damares, estaria um “fato” escabroso: o de que muitas dessas crianças abusadas teriam tido os dentes arrancados para facilitar o sexo oral nos criminosos abusadores.
Se trata de uma fake news do tamanho da Floresta Amazônia. E em setembro do ano passado o Ministério Público Federal pediu, mediante ação civil pública, que a bolsonarista indenize a população de Marajó pelas mentiras propagadas. O caso ainda tramita, mas a campanha para alavancar a música de Aymeé Rocha reacendeu as discussões em torno da suposta denúncia.
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Com o debate em pé novamente, Damares publicou um vídeo nas redes sociais em que crianças aparecem dentro de um caminhão. Ela insinuou que as imagens foram gravadas no Marajó durante o translado de supostas vítimas de abuso. Mas, na realidade, o vídeo foi gravado bem longe dali. No Uzbequistão.
Missões evangélicas
Nas redes sociais, Aymée Rocha apareceu em postagem do pastor Lucas Hayashi, da Zion Church, em campanha para que a música “Evangelho dos Fariseus” toque na final do show de talentos do Deezer. E, a partir daí, surgem as suspeitas de que todo o esquema narrativo e midiático serve para abrir o caminho das missões evangélicas no Marajó.
Hayashi é justamente o pastor que, em setembro de 2023, após viagem ao Marajó, voltou alertando em alto e bom som que a ilha amazônica estava infestada de casos de abuso sexual de crianças.
De acordo com o seu próprio site, a igreja Zion Church de Hayashi tem como um dos principais objetivos o de reunir doações para financiar as chamadas “missões de evangelização”. E, convenhamos, uma denúncia de que a população inteira de um enorme arquipélago nos rincões do Brasil seria conivente com um esquema hediondo de abuso infantil pode ser um combustível e tanto para agregar tais doações.
A Zion Church é liderada por Junio e Teófilo Hayashi – irmão do pastor Lucas Hayashi. Nos últimos anos, a Zion Church se transformou numa verdadeira franquia gospel milionária. E o sucesso durante os anos de Bolsonaro foi coroado em 2022 com a Medalha da Ordem do Mérito Princesa Isabel, criada pelo ex-presidente inelegível como uma das maiores honrarias da República (e devidamente extinta pelo ministro Silvio Almeida em 2023).
Mas as relações não param por aí. A Zion Church é também organizadora do The Send, um evento que mistura o ideário de extrema direita com esse evangelismo típico dos EUA professado pela instituição. Foi num The Send que Bolsonaro teria “se convertido” a Jesus Cristo.
O The Send também tem relações com o grupo Jocum, que reúne missionários evangélicos que foram expulsos da região amazônica pelo Ministério Público Federal em 2016. A razão da expulsão: um documentário mentiroso e amplamente repercutido por Damares ao longo dos anos que denuncia uma suposta cultura de infanticídio entre os povos indígenas da região.
Por fim, o tal programa “Abrace o Marajó” divulgado por Damares tem fortes ligações com as missões da Zion Church. Em publicação no Facebook de março de 2022, a própria Damares Alves deixa isso bem claro: “Jovens voluntários da Zion Church de São Paulo mais uma vez estão na Ilha do Marajó cuidando do nosso povo”, escreveu.
Marajó contra-ataca
Nas redes sociais, o Observatório do Marajó, que monitora violações de direitos humanos no arquipélago, soltou uma nota em que acusa Damares e seus asseclas de recolocarem as denúncias no debate público a fim de facilitar a entrada das chamadas “missões de evangelização” na região.
A entidade começa sua nota dizendo o óbvio, que redes criminosas de exploração sexual de crianças e de tráfico internacional de pessoas, órgãos, animais, madeira, biotecnologia/pirataria e substâncias ilícitas operam no Marajó, na Amazônia e em todas as regiões do país. Diz ainda que essas sabem se disfarçar ocupando instituições, cargos públicos, redes sociais, igrejas, veículos de comunicação e outros espaços “onde possam manipular a atenção das pessoas enquanto continuam agindo e operando seus crimes”.
“A propaganda que associa o Marajó à exploração e o abuso sexual não é verdadeira: a população marajoara não normaliza violências contra crianças e adolescentes. Insiste nessa narrativa quem quer propagá-la e desonrar o povo marajoara”, diz a nota.
Para o Observatório do Marajó, a forma mais eficaz de garantir a proteção das crianças e adolescentes é fortalecendo as escolas e conselhos tutelares.
“Enquanto ministra, Damares Alves não destinou os recursos milionários que por diversas vezes prometeu para a região, para fortalecer as comunidades escolares. Ao invés disso, atentou contra a honra da população diversas vezes, espalhando mentiras, e abriu tais políticas públicas para grupos privados de São Paulo que defendem a privatização da educação pública (…) Redes criminosas de exploração sexual de crianças e adolescentes impulsionam mobilizações que chamam atenção para regiões com precariedades institucionais, como um apito para chamar criminosos para esses espaços”, diz a nota da entidade.