POVOS INDÍGENAS

Marco Temporal é retomado no STF: entenda os próximos passos e a origem do julgamento

Debate é motivado por ação do governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng; Conheça o processo histórico de expulsão dos povos indígenas do local, em que “bugreiros” eram pagos por par de orelha arrancado das vítimas

Marco Temporal Não!.Manifestação contra o Marco Temporal em São Paulo (2021)Créditos: Elaine Campos/Publicação na Revista Fórum autorizada pela autora
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“Nossa história não começou em 1988”, dizem movimentos indígenas em todo o país nesse começo de semana que marca a retomada do julgamento da tese do Marco Temporal, na próxima quarta-feira (30), no Supremo Tribunal Federal. A tese, julgada por conta de ação movida pelo governo de Santa Catarina contra o povo Xokleng, aponta que os povos indígenas só teriam direito de reivindicar e demarcar terras as quais tenham ocupação comprovada a partir de 5 de outubro de 1988 – o “Marco Temporal” –, data de promulgação da Constituição Federal.

Se aprovada, o efeito prático da tese do Marco Temporal será o de dificultar ainda mais as possibilidades dos povos indígenas reivindicarem sua principal e mais importante pauta: o acesso às terras ancestrais subtraídas a partir da colonização portuguesa.

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De acordo com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), 226 processos que discutem disputas de terras estão suspensos em instâncias inferiores no aguardo da decisão do Supremo. Uma decisão do STF irá nortear a conclusão de todos esses processos. Por essa razão vemos já a alguns anos a mobilização dos movimentos sociais e populares de todo o país, sobretudo os próprios movimentos indígenas, contra a pauta.

Até o momento, o placar aponta 2 a 1 contra o Marco Temporal. Os ministros Alexandre de Moraes e Edson Fachin votaram contra a tese enquanto Nunes Marques, o ministro “terrivelmente evangélico” de Bolsonaro, votou a favor.

Na próxima quarta-feira (30) o julgamento deve ser retomado com o voto de André Mendonça, outro ministro indicado por Bolsonaro. Foi ele quem pediu vista em 2021, na última ocasião em que a matéria foi julgada, e a expectativa é de um voto a favor da tese, que deixe o placar empatado. Na sequência votam Cristiano Zanin, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux, Dias Toffoli, Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Rosa Weber.

Voto de Zanin

Os movimentos sociais esperam que o Marco Temporal seja finalmente desaprovado no STF. Supondo que Mendonça vota a favor da tese, restam 7 votos com um placar empatado, o que obriga mais 4 votos para a formação de maioria.

Entre os votos que causam apreensão nos povos indígenas e movimentos sociais está o Cristiano Zanin, indicado por Lula ao STF, que após uma série de decisões consideradas conservadoras vem recebendo críticas justamente das bases da sociedade e do progressismo.

Zanin já deu um voto contrário aos povos indígenas em ação proposta pela Apib (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil) que pedia o reconhecimento de violência policial contra o povo Guarani-Kayowá, no Mato Grosso do Sul. Ele votou contra o reconhecimento.

Santa Catarina versus Funai e o povo Xokleng

A discussão é movida por um recurso entreposto pelo Instituto de Meio Ambiente de Santa Catarina [equivalente a uma secretaria estadual] em ação de reintegração de posse movida contra a Funai (Fundação Nacional do Índio) e o povo Xokleng, que habita as serras catarinenses.

Em 2013 o TRF-4 aplicou a tese do Marco Temporal para conceder a posse da área disputada – que envolve a Terra Indígena Ibirama-Laklaño Kokleng e a Reserva Biológica do Sassafrás – para o IMA-SC. No entanto a Funai recorreu ao STF, pedindo a revisão da decisão do TRF-4.

“O que vemos ao longe desse tempo é uma narrativa que vem criminalizando os indígenas por parte do próprio Estado de Santa Catarina que desde 1850, quando descumpriu a Lei de Terras ao não reconhecer os aldeamentos e acobertar a ação de colonização da região, que trouxe o desmatamento e expulsou os povos de suas terras," diz Nuno Nunes, indigenista e doutor em Planejamento Territorial pela Udesc, que explicou todo esse processo histórico à Fórum.

Histórico do conflito

Segundo Nunes, o histórico dessa disputa de terras remonta a 1548, quando as primeiras regras que o Império Português foi decretando pra organizar a colonização reconheciam os direitos originários e as áreas de aldeamento, onde havia indígenas. Lá permaneceriam, e as áreas consideradas vazias, sem atividade humana, seriam destinadas à exploração colonial. De acordo com Nunes, isso era apenas teoria. Na prática, ocorria o contrário.

Cerca de três séculos depois, em 1850, já no período imperial, veio a Lei de Terras do Brasil, que então repassou às províncias as ordens de distribuição de terras, antes concentradas no imperador. De acordo com essa lei, deveriam ser feitos os Aldeamentos Indígenas, que hoje juridicamente se chamam Terras Indígenas, e, em segundo lugar, onde não havia indígenas, fariam as colônias.

"O que regia a lei de 1850 não foi cumprido, e acabou sendo escondido o direito dos indígenas. Com isso foram colocando as colônias. Em Santa Catarina havia 3 grupos Xokleng, um ficava mais ao sul do Estado, e foi dizimado; outro ficava na região de Águas Mornas e na Grande Florianópolis; e a terceira etnia fugiu para a região das montanhas de José Boiteux, que eram áreas fora da colônia alemã entregues pelo Império a empresa colonizadora Hamburgo", situa.

A Hamburgo, por sua vez, era dona de navios e ganhava com exportação de mão de obra, uma vez que na Europa ocorria a revolução industrial iniciada nos anos 1800 e, com ela, muitas pessoas eram expulsas do campo e não encontravam trabalho nas cidades. Época também da unificação alemã, que priorizou a indústria e assim vendeu a países como o Brasil e a Argentina um contingente enorme de trabalhadores do campo, em especial agricultores, que não caberiam no novo projeto de país.

“Essas pessoas iam para a cidade de Hamburgo, que é no litoral alemão, e, de lá, eram encaminhadas para os países que quisessem comprar essa mão de obra. E a compra era feita através de promessas de que eles teriam terras, ferramentas, casais de porcos, galinhas etc., um mínimo de facilidades ali que hoje chamamos de ‘cotas para brancos’, desde que dessem uma parte dessa produção ao governo. Dessa maneira, os colonos tinham de desmatar a terra e produzir para provar ao Estado que a terra era deles, e nessa corrida pelo desmatamento e produtividade os Xokleng viam suas terras sendo atacadas e então eles expulsavam esses invasores – ao mesmo tempo que o Estado pagava os assassinos bugreiros para atacar os Xokleng. Isso se transformou numa guerra de ocupação territorial - esses bugreiros eram pagos por par de orelha apresentado das vítimas dessa guerra territorial”, pontua o indigenista.

Nesse contexto, para remediar a situação, criou-se um consenso em torno de reservar uma área de 60 mil hectares pra deixar os Laklãnõ-Xokleng e a ideia era de que não se fizesse contato, assim como vinha sendo feito em outras regiões do Brasil. Mas como era temido, após o contato as promessas de mais recursos para o SPI (Serviço de Proteção do Índio) foram esvaziadas e o sistema de proteção ficou sem investimentos, somando a isso a falta da demarcação dos 60 mil hectares como Reserva Indígena.

"Depois, o secretário de estado Adolfo Konder, que havia passado pela região, tornou-se governador e publicou em 3 de abril de 1926 o Decreto Estadual n°15 para enfim criar a Reserva Indígena, desta vez com 30 mil hectares, 12 anos depois do contato com os Xokleng, criando essa reserva para que houvesse uma posição mínima para que as colônias não continuassem avançando e matando os Xokleng que estivessem fora dela", conta Nuno Nunes.

Contudo, o Decreto de 1926 nunca foi cumprido. Enquanto isso a ocupação e a invasão pelos colonos ia sendo feitas e ninguém tomava providências. Até que em 1957 demarcou-se um pedaço minúsculo, de aproximadamente 10 mil hectares, que comportava as terras ao redor de onde estavam os Xokleng, entre os rios Platê e Hercílio.

Somente na década de 2000 foi feito um Grupo de Trabalho, a pedido dos Xokleng, para então identificar qual era a área lhes era de direito. Esse GT chegou aos 37 mil hectares. Para Nuno Nunes, a concessão foi mínima.

"Com isto, não se falava mais nas áreas ocupadas pelos Xokleng no sul do Estado de SC, ou na região de Florianópolis, ou ainda no vale dos rios Itajaí e Itapocu de onde foram expulsos e assassinados pelos bugreiros pagos pelo Estado de SC. E nem falava-se nos 60 mil hectares prometidos pelo governador após o contato com SPI. O espaço Xokleng já tinha sido barbaramente reduzido e a área tradicional já tinha sido toda desmatada pelas empresas de madeireiras dos colonos", relata o indigenista.