Em 13 de junho de 2013, a vida do fotógrafo paulistano Sérgio Silva mudaria para sempre. Era dia da quarta manifestação convocada pelo Movimento Passe Livre em São Paulo, quando os principais jornais paulistanos – Folha e Estadão – amanheceram exigindo o sangue dos manifestantes. Sérgio se viu em meio a um tiroteio dito não letal da Polícia Militar e, enquanto fotografava, acabou atingido pela bala de borracha que lhe arrancou o olho esquerdo.
Se, para qualquer pessoa, a perda de um olho é algo estarrecedor, para um fotógrafo, a situação é ainda mais trágica. E com o agravante de ocorrer por meio da violência policial.
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Em entrevista à Revista Fórum, Serginho – como é conhecido – narrou o episódio. Ele já contou a sua história no livro “Memória Ocular – Cenas de um Estado que Cega”, escrito em parceria com Tadeu Breda (editora Elefante).
13 de junho de 2013
O Movimento Passe Livre já havia feito outras três manifestações em São Paulo. As duas primeiras, um pouco mais esvaziadas, lembravam os atos que o movimento costumava fazer contra aumentos na tarifa do transporte público paulistano. Essas duas primeiras manifestações até tiveram alguns episódios pontuais de violência policial, mas nada comparado à terceira, em 11 de junho, quando, ao tentarem ocupar o Terminal Parque Dom Pedro II, os manifestantes enfrentaram uma duríssima repressão dos policiais.
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Nesse contexto, na manhã de 13 de junho, a Folha de S.Paulo chegou às bancas com um editorial intitulado “Retomar a Paulista”, que defendia que os manifestantes eram “vândalos” com o objetivo de destruir patrimônio público e privado. Também dizia que as manifestações atrapalhavam a vida dos paulistanos.
“É hora de pôr um ponto final nisso. Prefeitura e Polícia Militar precisam fazer valer as restrições já existentes para protestos na Avenida Paulista, em cujas mediações estão sete grandes hospitais”, defendia o jornal.
No mesmo tom, o Estadão publicou “A Hora do Basta”: “De Paris, onde se encontra para defender a candidatura de São Paulo à sede da Exposição Universal de 2020, o governador disse que ‘é intolerável a ação de baderneiros e vândalos. Isso extrapola o direito de expressão, é absoluta violência, inaceitável’. Espera-se que ele passe dessas palavras aos atos e determine que a PM aja com o máximo rigor para conter a fúria dos manifestantes, antes que ela tome conta da cidade”.
O sinal estava dado para a realização da carnificina policial militar que se deu horas mais tarde na região da Avenida Paulista e Rua da Consolação.
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Naquele período, Sérgio Silva não tinha um emprego fixo como fotógrafo, trabalhava como freelancer, cobrindo eventos institucionais, festas e outros. “Entre esses trabalhos estava também o fotojornalismo”, explica. À época vendia suas coberturas de mobilizações de rua para a Agência Futura Press. E foi com esse espírito, de trabalho e sobrevivência, que ele foi às ruas naquela noite.
“Pensei em desistir, parecia um sinal. Só que o lado profissional pesou mais e quando cheguei lá tive a impressão de ter tomado a decisão correta. O que vi no início da manifestação foram pessoas empenhadas para que tudo ocorresse na maior tranquilidade”, relata o fotógrafo no seu livro.
Serginho estava na Rua da Consolação quando diz ter sido “escolhido” pela bala. “Eu não estava na linha de frente, estava atrás de algumas pessoas. O projétil passou por um corredor de gente antes de me acertar. Poderia ter sido com qualquer outra pessoa.”
No livro, ele explica que a bala atravessou duas pistas da Consolação e “se esgueirou pela estreiteza que separa uma parede e uma banca de jornais na esquina com a Rua Caio Prado”. Os atiradores estariam distantes mais de 20 metros dele, e a repressão na Rua da Consolação buscava evitar que a manifestação chegasse à Paulista.
“Eu tenho um metro e oitenta de altura. Para me atingir no olho, ainda que não tenha mirado em mim, o policial estava com a arma apontada para a cabeça das pessoas. Isso é inaceitável.”
Ele diz que viu, no sentido oposto da avenida, a polícia lançando bombas contra um grupo de jornalistas. Diante desse absurdo, posicionou-se para fotografar a cena. “Fiz três fotos num só clique e, quando tirei a câmera, senti o impacto da bala. Na hora é quase imperceptível, talvez pela velocidade do projétil”, conta.
Desesperado e com sangue nos olhos, literalmente, teve de caminhar por alguns quilômetros, um verdadeiro calvário, até conseguir atendimento médico. No dia seguinte, recebeu a péssima notícia.
Ele relata que, também no dia seguinte, a pessoa que o socorreu no momento em que foi baleado voltou àquela esquina e recolheu dezenas de cápsulas de balas de borracha. Na noite em que Sérgio Silva foi atingido, a Polícia Militar disparou oficialmente 178 tiros de bala de borracha.
O dia seguinte que já dura uma década
Sérgio Silva vive desde então uma longa luta para se adaptar à inadaptável nova realidade e demorou alguns anos para voltar a fotografar. “Primeiro tive que entender essa nova forma de enxergar o mundo, uma vez que eu seria, para sempre, uma pessoa com visão monocular. É muito difícil. Tente tapar um dos olhos e fazer as suas atividades comuns. É realmente muito mais complicado. Então fazer atividades corriqueiras como lavar louça, cozinhar, limpar a casa, sentar num sofá para assistir TV ou trabalhar no computador se tornou uma verdadeira luta interna. Tive que reaprender a fazer as coisas mais simples e cotidianas que sempre havia feito ao longo da vida. O problema é que esse reaprendizado vem junto com uma memória traumática.”
Ao ver-se com uma visão monocular, ele sentiu a perda da profundidade do campo de visão, o que afetou atividades como acertar uma colher de açúcar dentro de uma xícara de café ou andar na rua sem tropeçar em coisas em que geralmente não tropeçaria. Além disso, a experiência com a violência estatal dificultou a forma de lidar com o reaprendizado.
“Tudo me remetia àquela violência. Por várias vezes, tropecei em degraus que estavam do meu lado esquerdo e eu não enxergava. Junto com isso, tinha que, de alguma maneira, superar esse trauma e essa dor em algum lugar dentro da minha cabeça. É muito difícil conviver com ambas as questões cotidianamente. Mas isso o Estado não contabilizou, ele não reconhece. Tive que cuidar sozinho dessa recuperação física, psicológica e cotidiana. Não exatamente sozinho, porque recebi o apoio de uma incrível rede de apoio, sem a qual eu jamais voltaria a fotografar. Mas do Estado não veio nada. Nem tratamento médico, psicológico ou sequer um pedido de desculpas.”
Serginho conta que chegou a pensar em desistir da vida, mas tem vergonha em verbalizar isso. “Passou pela minha cabeça que já não fazia mais sentido viver, uma vez que eu não podia enxergar. Foi muito difícil deixar essas violências para trás e, aos poucos, ir retomando a consciência de que a vida é possível mesmo sem um olho. No fim das contas, só tinha dois caminhos: ou eu desistia de tudo ou saía desse buraco.”
Sérgio Silva conta que após dez anos consegue lidar com o trauma e já desenvolveu seus próprios métodos para ir tocando a vida, o trabalho e as pequenas ações do cotidiano. “Redescobri um modo de viver e tento levar essa vida da melhor forma possível. Tudo isso pra mim hoje é combustível. Cada trabalho que eu vou fazer, cada fotografia que eu vou fazer de alguém, é sempre muito importante, porque estão ali fazendo eu me distanciar da história do trauma, da própria deficiência visual, e me colocando no lugar de uma pessoa comum.”
Além do trabalho, sua filha, que à época tinha 7 anos e hoje está com 17, também foi a grande força que o ajudou a superar a adversidade. “Entendi que precisava abraçar a vida, e não era apenas por mim mesmo.”
O Estado tira o corpo fora
Desde a perda do olho, Sérgio Silva, hoje com 42 anos, processa o estado de São Paulo pela mutilação sofrida e pede uma indenização de R$ 1,2 milhão, além do pagamento de pensão mensal de R$ 2,3 mil pelos danos causados. No último dia 26 de abril, a Justiça paulista negou-lhe, pela quarta vez, esse direito.
Para o desembargador Rebouças de Carvalho, relator do julgamento, as provas apresentadas pela defesa do profissional não foram suficientes para provar que a lesão tenha sido causada pela PM. Na decisão, o desembargador se apoiou nos laudos do Hospital de Olhos e do Hospital 9 de Julho, que apontaram a lesão, mas não citaram o impacto de uma bala de borracha como sua causa. O relator ainda colocou que a lesão poderia ter sido causada até mesmo por uma bola de futebol. Um verdadeiro desaforo para Serginho e todas as pessoas que acompanharam o seu caso.
Já o desembargador Décio Notarangeli, mesmo citando decisão do Supremo Tribunal Federal de que é responsabilidade do Estado quando profissionais da imprensa são feridos durante coberturas jornalísticas, não viu “provas do nexo de causalidade” entre a lesão ocular de Sérgio e a ação da PM paulista. Além disso, também disse que o caso não requer retratação da decisão inicial, de 2017, que alega que o fotógrafo “assumiu riscos do ofício ao se colocar entre manifestantes e polícia”. Rebouças de Carvalho e Notarangeli foram acompanhados por Oswaldo Luiz Palu, o terceiro juiz.
“A decisão daquela manhã foi mais violenta do que o próprio tiro”, desabafa Sérgio, que promete recorrer até a última instância. Ele também aponta que sobram provas sobre a culpabilidade da PM no seu caso.
“O que o sistema judiciário faz é simplesmente a perpetuação do processo de violência que aconteceu nas manifestações de junho. Quando desembargadores reforçam a tese de que não há indícios ou provas de que foi um agente do Estado que me atingiu, só reforçam uma tese pela qual eu luto desde o início: de que o que aconteceu naquela noite sequer foi investigado. Em segundo lugar, estou acusando o Estado por ter me arrancado um olho e o mínimo que o Estado deveria fazer é investigar a acusação”, declara.
Sérgio aponta que há provas da atuação violenta da polícia naquela noite e que, ao entrar com o processo, estava seguro de que a indenização viria uma hora ou outra. Ele diz que o Estado mantém uma postura negacionista em relação àqueles abusos policiais e cobram, para dar-lhe ganho de causa, uma específica e impossível produção de provas, como um vídeo, quase que imaginado para o cinema, que mostre o PM atirando a 20 metros dele, e a bala percorrendo todo o caminho até atingi-lo.
“O único ponto de vista que eles estão levando em consideração é o da defesa do Estado, e não o da vítima. Não tem um vídeo ou fotografia que seria capaz de dar a prova que eles idealizam sobre o que aconteceu ali. Em compensação, sobram fotos e vídeos que evidenciam a violência, mas isso não serve. Ou seja, os vídeos e as fotos daquele 13 de junho evidenciam a violência que a polícia fez, mas mesmo assim ainda não teriam o poder de se tornarem provas do que me aconteceu. Por outro lado, é questionável a investigação da Promotoria da Polícia”, diz.
Serginho se refere a uma “investigação coletiva” que ocorreu em 2013, na qual a Polícia Militar ouviu uma série de vítimas de violência – ele não foi o único atingido nos olhos naquela época. “Eu fui uma das pessoas ouvidas e não sei quais foram as outras pessoas. A investigação não era especificamente sobre o meu caso. Eles demoraram dois anos. Lembro que foi em 2015 que saiu o resultado dessa investigação da Promotoria da Polícia, dizendo que eles foram incapazes de identificar os policiais responsáveis por abusos”, recorda.
“Seria humano se o sistema judiciário questionasse a PM, mas, até agora, nada. Como assim não é possível descobrir quem foi? O Estado não tem capacidade de dar essa satisfação? Como é que eu vou provar? Eu, como vítima, eu perdi um olho, e poderia ter acontecido algo pior com a minha vida. Como é que eu vou ficar indo produzir prova sendo que isso é obrigação do Estado que me cegou? Sou eu que tenho que criar provas? Mas eu sou vítima ou investigador? Provas existem, é o que eu estou falando, só que eles não foram buscar.”
Sérgio Silva relembra o caso do fotógrafo Alex Silveira, que trabalhava para uma sucursal da Folha de S.Paulo em 2000 quando também levou um tiro de bala de borracha da polícia e só 23 anos depois – neste ano de 2023 – teve o seu direito à indenização concedido pelo sistema judiciário.
“É uma situação idêntica com a diferença que, no meu caso, por conta das redes sociais, acabei tendo mais visibilidade. No caso do Alex também em primeira instância o juiz disse que faltavam provas. E agora, mais de 20 anos depois, o STF deu uma jurisprudência. Julgou essa decisão dizendo que não é a vítima que tem que provar se foi uma bala de borracha, se foi uma bomba ou se foi um policial. O Supremo decidiu que, se o profissional estava no seu exercício de trabalho, não infringindo uma ordem expressa de um agente da lei que aponte para perigos dessa natureza, a responsabilidade pela integridade física desse profissional é do próprio Estado”, explica.
Sérgio Silva tem esperanças de que o precedente aberto pelo STF ajude em seu caso. “Torna-se uma jurisprudência determinada pela instância maior do nosso sistema judiciário no país, que é o STF. O que me surpreende é o Tribunal de Justiça de São Paulo, uma instância menor, não ter respeitado essa decisão no momento de julgar o meu caso.”
Para o fotógrafo, “2013 evidenciou para fora das periferias, que já sabem disso desde sempre, o quão violenta é a polícia e o próprio Estado. Essa violência transbordou os territórios onde geralmente ocorre para atingir setores da classe média que aderiram aos protestos e as próprias páginas da imprensa. Evidenciou uma polícia que age de forma completamente equivocada contra a população civil. Não consigo pensar em junho de 2013 sem que esse seja o seu ponto central”.