O Movimento Passe Livre (MPL), para além de ser um movimento social voltado ao transporte público, também aglutinava setores da chamada esquerda radical. A pauta do transporte público, um problema real da vida dos trabalhadores brasileiros, mobilizou muita gente e, nos seus primeiros dias, foi brutalmente reprimida.
Após essa repressão inicial, que contou com centenas de manifestantes presos e feridos, além dos registros de jornalistas e socorristas também brutalizados pela Polícia Militar paulista, houve uma virada na cobertura da imprensa, que passou a apoiar as manifestações numa operação que separaria na opinião pública o que seria um “manifestante legítimo” de um “vândalo”. O Brasil foi vendo manifestantes pela tarifa zero sendo substituídos por uma horda de gente vestida de verde e amarelo.
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Em 2015, após Aécio Neves questionar o resultado eleitoral do ano anterior, as ruas das principais capitais foram tomadas por “novos” movimentos “anticorrupção” e antipetistas que pediam o impeachment da então presidente Dilma Rousseff (PT).
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Muitas análises, principalmente da imprensa liberal, ignoram que o MPL tem uma história pregressa que o levou até as mobilizações de 2013. Há também uma ideia de que o movimento seria o responsável por a direita tomar as ruas. Não é verdade. A direita já se organizava desde 2006, quando eclodiu o chamado “escândalo do mensalão”. E foi impulsionada em 2013 por uma imprensa neoliberal que tem partido, na época o PSDB, e que queria desgastar o então governo Dilma a qualquer custo.
O chamado “mensalão” era repetido inúmeras vezes nos hegemônicos meios de comunicação e entrou nas mentes de uma parcela considerável da população. E é justamente este o papel que a mídia liberal brasileira cumpriu: o de mobilizar afetos antipetistas. E desde muito antes de 2013.
Primeiros registros da “nova” direita na rua
No bojo da divulgação do chamado “escândalo do mensalão”, a dita “alta sociedade” paulistana criou entre 2006 e 2007 o movimento Cansei, com a liderança do ex-prefeito de São Paulo João Doria. Não era apenas o “cansaço” em relação à corrupção que levou empresários, artistas, senhoras católicas oriundas da Marcha da Família com Deus pela Liberdade e militares da reserva em fraldas geriátricas para a Avenida Paulista em 7 de setembro de 2007. Eles também se incomodavam com a ideia fantasiosa de que empregadas domésticas estariam invadindo aeroportos e viajando diariamente para a Disney ao lado dos filhos da elite. Figuras como a falecida Hebe Camargo, Ivete Sangalo e Carlos Alberto de Nóbrega se juntaram a Doria naquele que seria o primeiro movimento “anticorrupção” e antipetista a sair nas ruas. Houve demonstrações na Praça da Sé e na Avenida Paulista.
Mas essa gente cheirosa não estava sozinha. Já nesses primeiros atos era possível ver a presença, ainda que marginal, de antigos grupos integralistas e neonazistas oriundos da subcultura skinhead. Grupos que até há pouco eram negligenciados pelas autoridades, mas que já barbarizavam a cidade de São Paulo, sobretudo agredindo e matando moradores de rua e pessoas da comunidade LGBTQIA+, como o adestrador de cães Edson Néris, assassinado em fevereiro de 2000 na Praça da República.
Foram os skinheads que, anos mais tarde, fizeram a primeira manifestação a favor de Jair Bolsonaro. A data exata é 21 de maio de 2011. Na época, Jair era frequentemente entrevistado pelo CQC. Em uma dessas entrevistas, em que fazia um “debate” de costumes com Preta Gil, fez uma ofensa racista a ela. De norte a sul do país, Bolsonaro era repudiado pela declaração.
Os carecas juntaram seu apoio às declarações racistas de Bolsonaro e às ideias que têm em comum com ele para irem protestar na Marcha da Maconha. É claro que não eram favoráveis à legalização das drogas. Eles eram contra a legalização e a favor da repressão à manifestação. Por outro lado, os grupos que aderiram à Marcha da Maconha, incluindo setores do movimento negro e o próprio MPL, bateram de frente com os neonazistas, que se identificavam como Ultra Defesa, nome fantasia do grupo que aglutinava diferentes gangues sob um manto pseudopolítico.
De um lado do cordão policial que separava dois universos se escutava “fora kit gay”; do outro, “fascistas e nazistas não passarão”. O showzinho dos carecas terminou quando policiais civis identificaram elementos que já haviam participado de ações violentas na cidade – entre eles o homem que atirou uma bomba na Parada Gay do ano anterior. Mais tarde, a PM reprimiria violentamente a Marcha da Maconha.
Mas não eram só os carecas e o já desaparecido movimento Cansei que representavam a direita nas ruas. 2011 era um ano em que movimentos de rua, à direita e à esquerda, viviam uma efervescência em São Paulo, e uma série de outros começavam a dar as caras.
Dia do Basta, Revoltados Online, Nas Ruas e a cooptação de jovens
Vitor Lorente, graduado em ciências sociais pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP), deu aula por alguns anos e acabou mudando de área, para programação de software. Hoje, na faixa dos 30 anos, é uma pessoa crítica a tudo o que viveu. Mas, aos 18, ainda despolitizado, caiu nas garras da serpente. Ele contou sua experiência à Fórum.
“Uma parte da esquerda considera que o Brasil é só mais um país nessa onda conservadora que atravessa o planeta, mas eu acredito que o papel do nosso país é ainda mais grave. A rede social apropriada pela direita no Brasil é muito mais sofisticada do que no resto do mundo – talvez só tenha correlatos nos Estados Unidos. Já faz mais de sete ou oito anos que o [Jair] Bolsonaro começou a bombar nas redes, e ainda não fazemos a menor ideia de como isso vem acontecendo. Ficamos sem ter uma contraestratégia para enfrentar isso”, afirma.
O ano de 2011 marca um período com muita gente na rua, desde o MPL e diversos movimentos e setores de esquerda até os grupos que iremos descrever a seguir. Foi nessa época que Vitor conheceu o Dia do Basta.
“2011 foi meu primeiro ano nas ciências sociais, e eu saí para abraçar a política. Minha família é bastante conservadora. Eu não tinha uma tradição política. Cheguei nas ruas naqueles anos ainda muito inexperiente. O Dia do Basta era um movimento bem pequeno em 2011, e me lembro direitinho de tudo. Fui com um amigo à Paulista em uma dessas manifestações anticorrupção e a coisa ainda parecia muito amadora. Ainda não se faziam presentes grupos como o Revoltados Online, o Vem Pra Rua ou o Nas Ruas, da Carla Zambelli, que eram mais organizados. Na época, tinha os Anonymous, que me parecia ser uma célula mais amadora do Anonymous global, ao menos os que conheci que não eram hackers, e usavam a máscara do Guy Fawkes para protestar contra a corrupção.”
Ele conta que nessa manifestação havia cerca de 700 pessoas no vão do Masp, em São Paulo, e o ato não saía. E já estava começando a dispersar, quando Vitor e seu amigo foram até os Anonymous, pegaram o megafone que eles usavam e começaram a agitar as pessoas a saírem em marcha.
“Um cara do Dia do Basta que estava lá, chamado Renato, viu nossa ação e nos convidou para entrar no grupo. Entramos no grupo. O Dia do Basta tinha gente em todo o Brasil, mas uma estrutura que não era das mais organizadas que já vi. Entre as lideranças, que conversavam por e-mail, havia lideranças estaduais, que organizavam os atos, e as nacionais, que discutiam e impunham as pautas do movimento”, explica.
Vitor diz que o Dia do Basta tinha pautas variadas. Ao mesmo tempo que pegava carona com o antipetismo derivado dos movimentos anticorrupção, que, como o Cansei, foram surgindo após o mensalão, também traria algumas pautas mais “jovens”, como a preservação das florestas brasileiras.
“Após nossa entrada no Dia do Basta, no inverno de 2011, fizemos algumas manifestações, acho que umas três, antes de sermos cooptados. Nenhuma foi muito grande, no máximo com mil pessoas. Isso antes de aparecerem os movimentos maiores. Após a chegada deles, as coisas começaram a crescer. E é digno de nota que quem mais se aproximou do Dia do Basta foi o Marcelo Reis, do Revoltados Online. Inclusive, o Dia do Basta acabou por conta dele”, relata Lorente.
“Cheguei a ir para manifestações com a Carla Zambelli, em atos que o Dia do Basta participou com o Nas Ruas, que era o movimento dela. O próprio Marcelo Reis, que após 2013 ficou famoso, também era um desconhecido.
“Um belo dia, eu, esse amigo que entrou no Dia do Basta comigo e algumas meninas que também participavam estávamos no Centro Cultural da Vergueiro, e o Marcelo Reis apareceu. Sempre tentando parecer muito jovem, afinal o mais velho entre nós tinha 19 anos, daí vinha o tiozão sentar de perninha cruzada diante de nós e fazer uma proposta. Ele já tinha o Revoltados Online e queria criar um partido para o seu grupo. Chamaria PROL: Partido da Restauração da Ordem e da Liberdade. Depois da reunião, meu amigo chegou para mim e disse: ‘Você viu o que é isso, né? Chama fascismo’.”
Vitor conta que o Dia do Basta não era necessariamente um movimento da direita, mas um agrupamento de jovens que, como ele, tinham muita vontade de ter participação política e nenhuma formação nesse sentido. O grupo atraía muita gente com esse perfil ainda em 2011. Segundo o entrevistado, foi justamente a fim de cooptar essa garotada que Marcelo Reis e Carla Zambelli começaram a se aproximar do Dia do Basta.
“Não tínhamos estrutura de panfletagem, bandeira, nada disso. O Dia do Basta era bastante voluntarioso e não tinha um projeto determinado. Nós chamávamos as manifestações por meio de eventos do Facebook, divulgávamos e íamos. Quando o Revoltados Online chegou, veio junto uma estrutura muito grande. Nossas pautas eram inocentes, como fim da violência nas ruas, fim do desmatamento, por uma saúde digna, coisa de molecada. Quando chega o Marcelo Reis, a pauta é sequestrada e se foca inteiramente na questão da corrupção, com o PT como alvo”, pontua.
Ao perceberem isso, os jovens do Dia do Basta se reuniram e decidiram não se associar ao Revoltados Online. A ideia era aproveitar o caldo que eles levariam às ruas e tocar o movimento. “Foi aí que o Dia do Basta rachou. Os dois fundadores, como que por passe de mágica, redigiram um inédito estatuto [a que a reportagem teve acesso] no qual a decisão sobre se associar ou não ao Revoltados Online, e outros de mesmo tipo, deveria ser votada entre eles e eu. Ou seja, me deram o direito ao voto vencido. Veja só. E foi aí que o Dia do Basta praticamente acabou. Quem concordava comigo saiu e quem concordava com eles se juntou ao Revoltados Online e a outros grupos. Esvaziou o movimento, e esses dois líderes desapareceram em seguida. Isso foi em 2012”, explica.
Vitor acredita que, no final das contas, todos os pequenos movimentos oriundos da despolitizada pauta anticorrupção acabaram fagocitados pelo Nas Ruas, Revoltados Online e Vem pra Rua. Já o Movimento Brasil Livre (MBL), apesar da autodeclaração de fundação em 2011, não estaria presente nesse cenário. “Não vi o Kim Kataguiri ou outras figuras naquela época, só depois.”
O Revoltados Online não era um movimento, era o Marcelo Reis querendo montar um partido restaurador da ordem e da liberdade. Segundo o relato de Vitor Lorente, Reis estava o tempo todo disponível para o movimento, por exemplo, numa quarta-feira às 15h, fazendo reuniões com jovens anticorrupção em algum bar na região central de São Paulo. Ao contrário de outros movimentos que mostravam sua estrutura de imprimir cartazes, panfletos, bandeiras etc., o Revoltados Online já chegava com tudo pronto e era composto sempre e apenas por Marcelo Reis.
Já o Nas Ruas era um movimento maior, já tinha seus representantes, entre eles Carla Zambelli, que já mirava uma carreira política. Seu movimento também apresentava uma ampla estrutura para convocar manifestações nas redes e fornecer material a elas.
Após as Jornadas de Junho de 2013
Vitor viveu os dois mundos. Após essa quebra de confiança no Dia do Basta, em 2012, começou a se associar – sobretudo conforme seus estudos de ciências sociais iam avançando – com os movimentos de esquerda que estavam nas ruas, como o MPL. Ele aponta que, no começo das Jornadas de Junho, havia um determinado público nas mobilizações e que, após a capitulação dos meios de comunicação, era outro o público, completamente diferente, tomando as ruas.
“Consigo enxergar bem essa virada de chave quando a mídia começou a apoiar e as manifestações deram lugar a festas, com camisa da CBF e tudo o mais, mas não gosto da associação de que foi junho de 2013 que abriu as portas para o fascismo, porque avalio que essa porta já estava aberta. E, mais do que isso, os públicos de um e de outro eram completamente diferentes”, analisa.
“Em manifestações anticorrupção já era comum o uso da camisa da seleção e o clima amistoso com a polícia, enquanto que no MPL víamos as pessoas predominantemente usando preto e apanhando da PM. Eram dois universos muito diferentes, por isso que tomo cuidado com esse tipo de associação que as pessoas fazem”, explica.
Para ele, é muito evidente que o MPL não era um movimento antipetista, assim como as pessoas que iam para as ruas nas primeiras manifestações não eram antipetistas. “Poderiam ser críticas ao PT, mas não queriam ver o partido destruído e extinto.”
“Mas aí entra a pauta do movimento, que era o transporte público, e quem estava na cadeira de prefeito era o Haddad. E, mesmo sendo de esquerda, o MPL não poderia se isentar de criticá-lo. Nesse sentido, tanto a imprensa, que já queria impor sua pauta de desgaste do governo, como os movimentos anticorrupção, que mais tarde deram uma suposta legitimidade ao movimento pelo impeachment da Dilma e ao circo em torno da Operação Lava Jato, surfaram nessa sinuca de bico em que o MPL se encontrava. Então, ao mesmo tempo que o PT se consolidava como uma caricatura do poder, esses setores despolitizados de classe média, que tratam a política apenas como algo que ‘tem ou não tem corrupção’, invariavelmente miravam o partido. E a mídia, junto com o seu partido, o PSDB, que queria retornar ao poder, também se aproveitou disso. Mesmo que o PT não fosse a pauta, a coisa sempre esbarraria neles a partir de então.”