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Lógica neoliberal não permite que escola seja espaço para combater a barbárie, diz especialista

A Fórum entrevistou a pedagoga e doutora em educação pela USP, Catarina de Almeida Santos, para compreender a recente escalada de ataques a escolas no Brasil a partir dos diversos elementos que estão em jogo

Catarina de Almeida Santos, pedagoga e doutora em educação pela USP.Lógica neoliberal não permite que escola seja espaço para combater a barbárie, diz especialistaCréditos: NinaQuintana/Flickr
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A recente escalada de ataques a escolas só neste ano de 2023 já chocou o Brasil com uma série de casos amplamente divulgados na imprensa. Contando apenas os últimos dois meses tivemos um atentado na Escola Estadual Thomázia Montoro, em São Paulo, onde um adolescente de 13 anos vitimou uma professora de 71 anos, e outro em creche de Blumenau (SC), onde um homem de 25 anos invadiu o local e com requintes de crueldade assassinou 4 crianças pequenas com uma machadinha. Mas além deles, também houve ataques e tentativas de ataques no Rio Grande do Sul, Bahia, Paraíba, Goiás e Rio de Janeiro.

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Há uma série de aspectos que envolvem o importante debate a respeito desta nova e triste realidade. Desde a escalada de um ideário truculento na sociedade que invariavelmente atingirá as escolas, passando pelas comunidades virtuais que impunemente acolhem e incentivam condutas de ódio, até as supostas respostas que envolvem a entrada de armas e mais vigilância dentro das instituições escolares. Para a pedagoga e doutora em educação pela USP, Catarina de Almeida Santos, todos esses aspectos vão se encontrar no que define como a “lógica neoliberal” que, aplicada às escolas, diminuiu as possibilidades do desenvolvimento da cidadania e da inclusão para formar alunos que se apresentem como “empresários de si mesmos”. Na sua opinião, há um desvio da razão de ser das escolas, que seria oferecer um freio e um contraponto à barbárie que se registra fora dela.

“A escola é parte dessa sociedade. E a gente vive em um contexto de incentivo a um individualismo exacerbado. Qual é a lógica do mercado e do neoliberalismo? É cada um ser responsável direto pelo seu sucesso e pelo seu fracasso, cada um é o empreendedor de si mesmo. Então, estamos na era em que se vende o império dos desejos individuais, e há um incentivo à busca desenfreada para a realização desses desejos, quando sabemos que na realidade não há como ter todos os desejos atendidos. E essa demanda chega nas escolas a partir dos adolescentes, que vivem uma fase da vida de muitas mudanças, incertezas e instabilidades. Essa escola, nessa lógica cada vez mais individualizada, não dá conta, por diversos motivos, de acolher esses sujeitos e muito menos essa multiplicidade de desejos individuais. É uma escola que não está sendo feita para eles e em parceria com eles. Não está sendo pensada pelo conjunto dos seus atores. Veja a lógica dos currículos impostos de cima para baixo, das plataformizações da vida escolar, das soluções fáceis e mágicas, pensadas por ‘especialistas’, nos escritórios dos metros quadrados mais caros das grandes capitais, e vendidas aos sistemas de ensino para serem executadas pelas instituições escolares, de ponta a ponta do país. Quando digo que a escola cada vez menos se parece com uma escola, é disso que estamos falando. As coisas vêm cada vez mais prontas e hierarquizadas, apenas para serem executadas”, analisou.

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Ao longo da entrevista dada com exclusividade à Revista Fórum, Catarina de Almeida Santos explica cada pormenor do seu ponto de vista e defende que as soluções para a escalada de ataques devem passar longe das escolas. Por um lado, o Estado deve mostrar competência em monitorar possíveis ataques e fazer com que as redes sociais atuem em prol da paz e do desenvolvimento social, não como promotoras da sociopatia coletiva. Por outro lado, a escola deveria, na sua opinião, ser o espaço descolado da chamada “lógica neoliberal”, e ter tempo e recursos não apenas para lecionar, mas para formar cidadãos que entendam a importância de uma sociedade democrática que combata discursos e práticas odiosas.

Leia a entrevista na íntegra a seguir.

Como uma educadora e pesquisadora com longa trajetória na área, de que maneira você tem recebido e lidado internamente com essa escalada de ataques e ameaças a escolas? Que reflexões essa nova realidade te desperta?

Nós apontamos, no relatório 'O extremismo de direita entre adolescentes e jovens no Brasil: ataques às escolas e alternativas para a ação governamental', que isso poderia acontecer nesse ano. A ocorrência dos ataques aumentaria, não por exercício de tautologia ou adivinhação, mas pela observação do que vinha acontecendo nos últimos anos. Tudo apontava que esse cenário poderia se intensificar, o que vimos acontecer.

Quando a gente olha os desdobramentos dos ataques e o que foi sendo fomentado na sociedade como um todo no decorrer dos anos, começamos a entender esses ataques. E veja, estamos falando, aqui e agora, dessa onda de violência, de ataques a escolas, a partir de estudantes que se planejam para isso. São ataques com o intuito de ferir e matar pessoas dentro da escola. Isso é um dado da atualidade. Mas olhando mais fundo, a escola vem sofrendo ataques nos últimos anos que atingem a própria ideia de escola, a própria concepção de escola e daquilo que ela precisa ser.

Então se pegarmos a instituição escolar quando começa, por exemplo, o olhar dos grupos conservadores contra as escolas, que visam interferir no que ela vai trabalhar, perseguir as professoras e professores, tudo a partir de determinada agenda - e em paralelo a isso com discursos de ódio sendo fomentados na sociedade como um todo – esse caldo se torna a base e o caldeirão onde vai sendo preparado e gestado o que ocorre agora.

A escola, inclusive as não públicas, é por si só um espaço público. Mesmo as particulares funcionam como uma espécie de espaço público para a sua comunidade escolar. Ou seja, é o lugar onde os diferentes vão se encontrar. A escola é o único equipamento público nesse país em que praticamente todas as pessoas passam por ela. Ela é esse espaço de troca e experimentação, de educar pelas diferenças, de problematizar a ordem estabelecida. Em uma sociedade conservadora, a qual os detentores dos privilégios querem controlar e conservar a todo custo essa estrutura social discriminatória, desigual, patriarcal e racista, invariavelmente, para mantê-la, será necessário 'enquadrar' as escolas.

Como fica a própria ideia de escola?

A nossa ideia de escola é a do lugar da proteção, em que pese sabermos que a escola não é uma instituição isolada e aquilo que acontece de bom e de ruim na sociedade também vai acontecer dentro da escola. De antemão, as escolas brasileiras não eram alvo desse tipo de violência, de alguém invadir querendo matar membros da sua comunidade. Nenhuma escola deveria ser. Ela é tida no nosso imaginário, na nossa sociedade, como o local da proteção e não como local da ameaça. Então quando vemos grupos planejando, cooptando crianças, adolescente e jovens, pensando um ataque a essas instituições, recebemos a situação com imensa tristeza e com muita preocupação, mas também com muita consciência do que está acontecendo.

E eu acho que ter essa consciência do que fomenta esses ataques às escolas, sejam os ataques diretos e violentos, como também aqueles que são feitos por quem não está na mira da Justiça - por exemplo, parlamentares e pessoas públicas que expõem as escolas e seus profissionais, inclusive jogando-os nas redes (que por sua vez se tornam ‘tribunais’ desses espaços e seus sujeitos), ou mandando filmar o que é feito nas escolas pelos docentes, é fundamental para a nossa luta que poderá reverter essa realidade. Essas ações fazem com que parte da sociedade crie uma resistência a essas instituições e olhem para a escola com esse olhar hostil, dessa forma hostil.

Inevitavelmente recebemos tudo isso com muita tristeza porque trabalhamos todos os dias para a escola ser o lugar da proteção e da formação. Ou seja, da desnaturalização dos aspectos tóxicos que se produz na sociedade. Exatamente porque ela é o lugar que foi criado para isso, de construção e produção de múltiplos saberes, de forma sistematizada, as suas e os seus profissionais precisam ser permanentemente formados para desnaturalizar a barbárie produzida cotidianamente. Precisamos pensar nela como espaço de desmonte e desnaturalização das múltiplas violências.

Não estou aqui dizendo que a escola será a instituição capaz de resolver essa questão sozinha, mas posso te afirmar que sem a participação da educação e da escola isso tampouco será resolvido.

Falamos em ataques políticos e institucionais, como o antigo ‘escola sem partido’ ou os recentes cortes de orçamento, mas também uma maior presença do imaginário neonazista entre adolescentes, as facilidades que encontram em compartilhar ideais semelhantes, entre outros elementos. Pensando que ataques dessa natureza não exigem apenas o desejo do autor, mas todo um contexto e um ecossistema favorável, quais os principais elementos que contribuem com esse tipo de tragédia?

Como você bem falou, é um ecossistema. Há uma composição ampla desse processo. Quando observamos a questão da escola e tudo isso o que você cita, a escola se torna cada vez menos escola, e cada vez mais outra coisa. Torna-se o local do controle, não apenas dos corpos, mas dos currículos, dos conteúdos, dos programas e assim por diante. Vemos a escola sendo transformada cada vez menos em espaço da criação, da criatividade, e cada vez mais parecida com os espaços das prisões. A partir daí podemos olhar para os demais elementos.

Quando esse conjunto de fatores vai se exacerbar na sociedade, fora da escola, e vemos que há espaços de proliferação daquilo que sempre aconteceu mas que não se mostrava tanto, ou não tinha como circular. Temos diversos meios e redes, onde figuras públicas ditas importantes são permitidas a dizer o indizível, a defender o indefensável, e assim vamos normalizando e encorajando muita gente a falar o que jamais deveria ser pronunciado, mas mais que isso, a fazer o inadmissível.

No Brasil o primeiro ataque ocorreu no início dos anos 2000 e depois isso vem em uma crescente. Mas cresce junto com isso essa incapacidade do país responder da forma adequada a todos esses crimes de ódio que vemos acontecer na sociedade. E cresce nesse contexto uma sociedade que defende o armamento, a criação de clubes de tiro, com crianças e adolescentes frequentando junto com os adultos; cresce o número de grupos extremistas atuando na internet aberta, e com isso, o acesso de crianças e adolescentes a esses grupos e seus conteúdos.

Veja, na sua época de aluno, se você ficasse revoltado e dissesse que iria explodir a escola, funcionava mais como um escape retórico, uma figura de linguagem. Hoje, se o aluno diz isso, em uma dessas subcomunidades digitais, tais pensamentos serão acolhidos e estimulados, ou seja, esse estudante é incentivado a fazer isso. Ele é acolhido na subcomunidade, não para dissuadido de tais pensamentos, mas para ser encorajado a cometer tais atos.

Os incentivos são de diversas ordens e motivos. Quando um aluno leva um fora de uma menina, ele pode ser “zoado” pelos colegas, sofrer algum bullying, ficar bravo ou chateado. É preciso aprender a lidar com isso dentro da escola, do ponto de vista da resolução de conflitos. No entanto, hoje, quando um menino toma um fora e leva isso para essas subcomunidades, fora do âmbito escolar e alimentadas pela lógica da machosfera, ele será acolhido e incentivado a odiar e se vingar não apenas da menina em questão, mas do conjunto das mulheres.

Ao invés do acolhimento para trabalhar com esse adolescente a raiva que está passando, e a frustração, mostrando que elas existem e fazem parte da vida, ou seja, tentar cuidar disso de uma outra forma, ele vai ter alguém que vai dizer está certo e o incentiva a cometer esses crimes de ódio.

Se queremos reverter esse quadro precisamos olhar para isso. E precisamos da ampliação da estrutura das escolas, como um todo, para poder receber todos os alunos e conseguir observá-los. Como faremos um acompanhamento individual com 50 alunos por sala de aula e professoras e professores tendo de lecionar em uma série de instituições para se manter? Precisamos de condições objetivas para que as escolas sejam escolas. É fundamental ampliar o acesso à escola, mas essa ampliação precisa se dar com a infraestrutura adequada, com condições de olhar para cada sujeito da escola, a partir de suas especificidades e necessidades, sobretudo em uma sociedade tão desigual.

Ainda nessa perspectiva, o que há na organização das escolas, especialmente no Ensino Médio, que faz tantos alunos sentirem-se excluídos ou mesmo derrotados durante sua passagem pela escola? Como isso vai “formar” futuros atiradores em paralelo com outras questões que estamos abordando?

A escola é parte dessa sociedade. E a gente vive em um contexto de incentivo a um individualismo exacerbado. Qual é a lógica do mercado e do neoliberalismo? É cada um ser responsável direto pelo seu sucesso e pelo seu fracasso, cada um é o empreendedor de si mesmo.

Então, estamos na era em que se vende o império dos desejos individuais, e há um incentivo à busca desenfreada para a realização desses desejos, quando sabemos que na realidade não há como ter todos os desejos atendidos. E essa demanda chega nas escolas a partir dos adolescentes, que vivem uma fase da vida de muitas mudanças, incertezas e instabilidades. Essa escola, nessa lógica cada vez mais individualizada não dá conta, por diversos motivos, de acolher esses sujeitos e, muito menos, essa multiplicidade de desejos individuais. É uma escola que não está sendo feita para eles e em parceria com eles. Não está sendo pensada pelo conjunto dos seus atores.

Veja a lógica dos currículos impostos de cima para baixo, das plataformizações da vida escolar, das soluções fáceis e mágicas, pensadas por “especialistas”, nos escritórios dos metros quadrados mais caros das grandes capitais, e vendidas aos sistemas de ensino para serem executadas pelas instituições escolares de ponta a ponta do país.

Quando digo que a escola cada vez menos se parece com uma escola, é disso que estamos falando. As coisas vêm cada vez mais prontas e hierarquizadas, apenas para serem executadas. Docentes recebem apostilas prontas para serem aplicadas, e os alunos têm aprender e decorar para responder avaliações, também prontas. Não há espaço para debater o que deveriam e o que estão aprendendo. O espaço para reflexão está se perdendo.

Sempre me pergunto: Por que nosso currículo não fala dos sujeitos a que se destina? Por que não está no nosso currículo a realidade do adolescente? Desde as questões sociais até as que são próprias de cada etapa da vida de cada sujeito. Que horas a escola tem tempo para olhar para cada estudante, cada pessoa, cada sujeito? A demanda que vai para a escola é para que ela não tenha tempo para pensar.

Ou seja, esse tempo não está dado fora da escola e o que se desenha na escola é para que também não haja. Em alguns sistemas de ensino, a plataformização é tão grande que o trabalho docente é controlado a tal ponto que recebem o que têm de aplicar, o PowerPoint do que será ensinado, até que página tem que ser trabalhada em cada aula. Mas a escola não tem que ser feita pelos sujeitos que estão lá? Os professores não definem o que vai pra escola, as coisas apenas chegam lá para eles aplicarem e de um forma que sequer podem ou têm tempo e condições de pensar sobre aquilo para propor o diferente, o contraponto.

A escola era pra ser exatamente o lugar de frear isso. De construir o pensamento crítico. Mas os pacotes vão chegando. Os tais “especialistas” têm sempre o que dizer sobre o que a escola tem que fazer, enquanto educadores e educadoras só precisam executar. Apesar disso, na hora que dá o problema, quem é cobrada? A escola.

Polícia e segurança armados, dentro das escolas, resolvem?

Temo que o que muito do que estamos vendo ser desenhado não altera a realidade que estamos vivendo. Para melhorarmos é preciso quebrar essa lógica da competitividade e individualismo. Na pandemia tivemos uma grande oportunidade de repensar a escola, elaborar propostas pedagógicas e curriculares novas, pautadas nos sujeitos, partido das suas realidades para transformá-las.

A pandemia desnudou para a sociedade aquilo que nós educadoras e educadores já sabíamos: a absoluta dependência que a maioria dos estudantes têm das escolas. Qualquer pessoa que entende de educação sabe que o passo primeiro na volta as atividades presenciais era fazer uma séria e rigorosa avaliação das condições em que cada sujeito do processo educativo estava voltando para a escola. E falo das condições de saúde física e psíquica, das múltiplas vulnerabilidades e das condições de aprendizagem dos estudantes. O projeto pedagógico-curricular partiria daí, para buscar as condições de avançar.

Deveríamos ter garantido equipes multidisciplinares para pensar em um retorno, que incluísse os alunos, que pudesse se esforçar em entender como cada membro da comunidade escolar – aluno, professor e funcionário – retornava e em como fazer uma escola mais inclusiva. Mas não fizemos isso e agora pagamos o preço.

Você pode ver que grande parte das soluções apontadas continua não sendo para que a escola seja esse espaço da criatividade, da expressão, do aprendizado, e para muito além dos conteúdos escritos, ou que esses conteúdos sejam repletos de significados para essa reconstrução de uma sociedade em que as diferenças possam florescer, se desenvolver, fazer com que o mundo seja mais respeitoso, diverso e haja convívio pacífico com as diferenças.

Como eu vinha falando, as escolas estão cada vez menos parecidas com escolas e cada vez mais parecidas com cárceres, com prisões. Desde os currículos, até o não respeito com as diferenças que obrigatoriamente estão dentro da escola. Então esse espaço público e comum vai ficando cada vez mais controlado, mas apagador das diferencias e disseminador da uniformização, ou seja, cada vez mais um espaço de apagamento dos sujeitos e não de sua formação

Nas propostas governamentais vimos a ideia de colocar equipamentos de identificação facial, de catracas eletrônicas, de aumentos de muros e grandes, de arames farpados. Aqui do Distrito Federal, o Regimento da Rede decretado pelo governo, em 2019, prevê que a direção da unidade escolar poderá fazer verificação de segurança de rotina, com a escolha aleatória de estudante, uma atitude policialesca. Propõe-se ampliar a militarização das escolas, colocar detector de metal, câmeras nas salas de aula e segurança armada nas instituições educativas. Impõe-se a exacerbação da vigilância, como se já não estivéssemos permanentemente vigiados.

Será que estaremos muito longe ou diferentes das prisões? Na nossa vigiada sociedade, não temos nenhum espaço mais vigiado do que as prisões. Desde arames farpados, cerca elétrica, câmeras por todos os lados, até a vigilância armada. E as nossas prisões jamais foram espaços de ressocialização, pelo contrário, funcionam como espaço de muito mais criminalização, de formação da criminalidade e de muito mais produção de violência. É isso que estão empurrando para as escolas.

Aí você pega a escola, que foi criada para ser o inverso da prisão, e transforma essa escola numa prisão. Espaços de repressão são espaços de produção da violência e não de combate a ela. Se a escola fica cada vez mais vigiada, cada vez mais presa, cada vez mais aprisionada, ela se torna um espaço de produção de mais violência e não de acolhimento, como ela precisa ser. Agora, é tão absurdo que além de tudo isso, a lógica da vigilância armada ou da polícia na escola, torna a escola alvo.

Sobretudo se a gente pensar que esses adolescentes que atacam as escolas querem confronto com a polícia. E eles querem confronto com a arma. E aí você imagina o que é alguém numa escola cercada ou com segurança armada. Apenas lugares que estão sob tensão precisam de segurança armada. Como é que essa escola vai virar espaço de produção de não violência nesse contexto? Como essas instituições poderão ser espaços de criatividade, de desenvolvimento de sujeitos plenos?

Quando estamos em estado de guerra, em cada esquina, em cada rua, em cada prédio, em cada lugar, vai ter gente com artefatos, com bombas, com armas etc. Eu não posso acreditar que alguém ache que tornar a escola alvo, dessa maneira, vá resolver as questões de violência

Inclusive porque você aprisiona a escola, que é o lugar que sofre as consequências, e deixa livre quem continua produzindo a violência, quem ameaça a escola. Ao ser aprisionada a escola vai retroalimentando a própria lógica da da violência. Como ficarão os estudantes que nessa escola, ao invés de serem acolhidos, estão o tempo inteiro sob tensão?

Nos EUA, as escolas que têm polícia ou segurança armada têm tido mais problemas em relação inclusive a processos de ensino aprendizagem. Há a criminalização dos estudantes com deficiência, das meninas negras e hispânicas, dos meninos negros. As armas estão, majoritariamente, nas comunidades afro-americanas e o número de ataques não diminuiu. Os dados estão aí para comprovar. Essas escolas apresentam mais problemas que as escolas que não têm segurança armada. O exemplo está aí. Mas é o que muitos apontam para ser feito aqui.

A saída dessa crise precisa ser longe da escola. O Estado precisa ter capacidade de monitorar quem está ameaçando a escola, prender e banir das redes quem coordena, fomenta e financia. E isso pode esbarrar inclusive nas próprias redes. Quem monetiza a violência? Por que o conteúdo engaja? Quem entrega?

Apoia algum tipo de regulação das redes sociais?

Sou favorável. Não tenho a menor dúvida de que a gente precisa regular as redes e plataformas digitais. Essa coisa de que ‘o mercado regula as coisas’, nós já conhecemos as consequências.

Os estados precisam ter uma rede de proteção das suas crianças e seus adolescentes. O Estatuto da Criança e do Adolescente, inclusive, prevê essa proteção por parte do Estado. Não é possível que se permita que as redes deixem circular livremente conteúdos que violam todos os preceitos e direitos fundamentais.

Para além de todas as violações de dados, de vigilância etc., se elas são incapazes de coibir e proibir que essas violências se proliferem, precisa ter regulação e serem punidas por isso. Porque veja, as redes sociais são importantes e elas podem ser utilizadas para reverter essas violências e violações que nós temos na sociedade.

Elas precisam dar voz a debates que desnaturalizam e que combatam as violências. Tudo aquilo que fere a dignidade humana, a vida humana. É a vida no planeta. E não é possível que a gente deixe que esse tipo de coisa fique circulando livremente, enquanto uma foto de um nu artístico é bloqueada pela mesma rede.

Por que diabos isso monetiza? Porque isso faz parte do capitalismo e de sua concorrência desenfreada. Então é a inteligência artificial que vai decidir os destinos da nossa sociedade? É a lógica do algoritmo que vai definir o que temos acesso? Isso vai dar errado. Então é preciso ter regulação, fiscalização, cobrança e punição. Não estou dizendo que é para acabar com as redes. Elas precisam ser redes sociais e não sociopatas. Espaços de construção de uma sociabilidade, não de destruição das nossas possibilidades de existência enquanto sociedade.

Em 20 de abril completaram-se 24 anos do Massacre de Columbine, nos EUA. Qual era a avaliação dos riscos na data?

Tivemos ataques no ano passado e, no relatório e debate público que fizemos, cantamos a bola que eles aumentariam. Agora, os dias vinculados a essas datas de ataques passados, como o 20 de abril, fazem com que esses grupos se articulem. Não tínhamos a menor dúvida que poderíamos registrar tentativas de ataques. Mas aí entra o papel do Estado que é exatamente impedir que esses ataques se concretizem, como aconteceu.

Fechar a escola, como muita gente propôs, é a glorificação máxima desses grupos. Você fechar a escola no dia 20 é o mesmo que mandar o recado que eles venceram esse processo e depois, nos dias 21, 22, ou qualquer outro dia, podem eleger outras datas para futuros ataques.

Só atividades contrárias a essa lógica do ódio podem combatê-lo em um dia como esse. Ou seja, debates e outras coisas que tratem sobre diversidade e respeito, sobre o inverso do que esses grupos pregam, sobre a importância do o outro, na nossa formação e existência, de como nos educamos nas e com as diferenças. Atividades contra as bandeiras fascistas, neofascistas, neonazistas. A escola devia ser o caldeirão cultural do inverso de tudo o que nós estamos vivendo. A resposta do Estado em relação àqueles que querem dizimar a vida deve ser exatamente a promoção da vida. As escolas no dia 20, e não só nessa data, deveriam estar mais vivas do que nunca.

O aparato do estado não pode ser menor, não pode se render ou ser vencido por grupos neofascistas, por grupos extremistas. O estado não pode dar esse recado. Não pode ser possível que o aparato do estado não seja capaz de fazer com que todas as escolas desse país estejam funcionando sem serem ameaçadas. Quem está querendo colocar uma segurança armada em cada uma das escolas não é capaz de designar inteligência para monitorar a situação e desenvolver atividades que tornem a escola um lugar onde nem se cogite a ocorrência de ataques?