Rearmamento da Europa: o que está em jogo no novo xadrez geopolítico
Investimento em Defesa pode reduzir a dependência do bloco em relação aos EUA e até representar um impulso econômico, mas não garante uma paz duradoura para os países do continente
A cúpula extraordinária convocada pela União Europeia (UE) e realizada nesta quinta-feira (5) definiu, entre outros pontos, "acelerar a mobilização dos instrumentos e do financiamento necessários para reforçar a segurança da UE e a proteção dos seus cidadãos". O texto final, denominado ReArm Europe, tem como principal propósito rearmar os países do bloco.
"O perigo é real e iminente", disse a presidenta da Comissão Europeia, Ursula Von der Leyen. Os líderes aprovaram 150 bilhões de euros em crédito para investimento conjunto em defesa no prazo de dez anos.
Mas não é só isso. O plano de Von der Leyen inclui outros 650 bilhões de euros que viriam dos próprios Estados-Membros, aumentando seus gastos com defesa em 1,5% do PIB. Também seria ativada a chamada cláusula de escape das regras do déficit e da dívida, para que os gastos com Defesa não sejam contabilizados dentro das regras fiscais restritivas de alguns países.
A preocupação se dá em um contexto no qual Donald Trump suspendeu temporariamente a ajuda militar e o compartilhamento de inteligência com a Ucrânia e está mais próximo da Rússia. Dependente dos EUA no âmbito da Otan, a Europa despertou para a questão da dependência em relação aos estadunidenses.
Os abalos causados por Trump
“Quero acreditar que os EUA ficarão ao nosso lado”, disse o presidente francês Emmanuel Macron nesta semana. “Mas temos que estar prontos para que isso não aconteça.”
A dúvida em relação ao antigo aliado é tanta que o líder da França anunciou, em discurso televisionado nesta quarta (5), que estava abrindo discussões sobre ampliar o "guarda-chuva nuclear" do país para os outros países da União Europeia, um papel que caberia principalmente aos EUA, como membro da Otan.
O Artigo 5 da carta fundadora da organização aponta que o país que faz um ataque a um integrante da Otan, um ataque a todos. Mas se o próprio Trump faz ameaças, incluindo sugerindo ações militares, contra a Groenlândia, território autônomo da Dinamarca, que faz parte da aliança, como confiar?
O 'negócio' da Defesa
Obviamente, toda a perspectiva de investimentos em uma área como a Defesa já movimenta bilhões de antemão. As ações do setor subiram nas últimas semanas.
O The Guardian aponta que as ações da Rheinmetall, fabricante alemã de automóveis e armas, subiram 7,2% na quarta-feira (5) e dispararam 99% neste ano. Já a britânica BAE Systems subiu 41% neste ano, enquanto a italiana Leonardo subiu 73% e a Thales, listada em Paris, subiu 78%.
Isso significou também uma mudança radical na política econômica da Alemanha, após anos de adesão a regras rígidas sobre dívida governamental, uma espécie de arcabouço fiscal do país. O futuro chanceler, Friedrich Merz, disse na terça-feira (4) que gastos com defesa acima de 1% do PIB estariam isentos da regra de dívida do país, ou seja, "furariam" o seu "arcabouço".
O plano inclui ainda a criação de um fundo de € 500 bilhões para financiar gastos com infraestrutura da Alemanha nos próximos 10 anos.
Mas o rearmamento é o caminho correto?
Ainda que, como no caso alemão, o rearmamento possa representar um impulso para sua indústria hoje decadente, num panorama econômico também complexo, a aposta não seria a melhor nem para o país, tampouco para o continente em um cenário de conflitos diplomáticos e rearranjos que trazem instabilidade a todo o mundo.
Para o ex-ministro das Finanças da Grécia, Yanis Varoufakis, o fortalecimento do continente não deve ter como o primeiro passo o rearmamento, mas sim forjar "a união democrática sem a qual a estagnação continuará a corroer as capacidades da Europa, tornando-a incapaz de reconstruir o que resta da Ucrânia quando Putin terminar com ela".
"O ReArm Europe não fará nada para vencer a guerra pela Ucrânia. No entanto, quase certamente levará a UE mais fundo em sua crise econômica pré-existente – a causa subjacente da fraqueza da Europa. Para manter os europeus seguros diante dos desafios gêmeos impostos por Trump e Putin, a UE deve embarcar em seu próprio processo multifacetado Peace Now", explica ele, neste artigo.
Ele acredita que a UE deve rejeitar completamente o esforço predatório de Trump para tomar os recursos naturais da Ucrânia e, em seguida, devolver US$ 300 bilhões em ativos congelados (que não podem ser usados ??simultaneamente como moeda de troca e para a reconstrução da Ucrânia) à Rússia. "A UE deve iniciar negociações com o Kremlin, oferecendo a perspectiva de um arranjo estratégico abrangente dentro do qual a Ucrânia se torne o que a Áustria foi durante a Guerra Fria: soberana, armada, neutra e tão integrada à Europa Ocidental quanto seus cidadãos desejam".
Uma paz duradoura passa necessariamente por um entendimento entre a União Europeia e a Rússia, para Varoufakis. "Terceiro, em vez de um impasse permanente entre dois grandes exércitos ao longo da fronteira acordada, a UE deveria propor uma zona desmilitarizada de pelo menos 500 quilômetros (310 milhas) de profundidade em cada lado, o direito de retorno de todas as pessoas deslocadas, um acordo no estilo Sexta-feira Santa para a governança de áreas disputadas e um Green New Deal para as áreas devastadas pela guerra, financiado conjuntamente pela UE e pela Rússia. Todas as questões pendentes deveriam ser abordadas em negociações realizadas sob os auspícios das Nações Unidas."
Seria uma aposta no multilateralismo que Trump tanto despreza, um investimento e quase antídoto para o que propõe o republicano. Valeria a pena.