DIÁRIO DA CHINA

Visitei o primeiro restaurante privado da República Popular da China

Localizado em um hutong a poucas quadras da Cidade Proibida, o Yuebin é a prova viva do impacto da abertura e reforma de 1978 na vida do cidadão comum

Créditos: Reprodução internet - Restaurante Yuebin, o primeiro estabelecimento privado da República Popular da China
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Neste sábado (10), dia de celebrar o Festival do Meio do Outono por toda a China, também chamado de Festival da Lua, senhora que está lindamente cheia e brilhante sobre o céu da capital chinesa, eu desfrutei da companhia maravilhosa de Shi Xiaomiao e do colega da Guiana, Samuel Sukhnandan.

A Isabela - o nome ocidental dessa chinesa que tem o borogodó brasileiro - é jornalista, fala português e ama o Brasil. Ela morou na minha terra por dois anos, na Cidade Maravilhosa de São Sebastião, o Rio de Janeiro (RJ), como correspondente da Rádio China Internacional (CRI, da sigla em inglês), veículo de comunicação do Grupo de Mídia da China (CMG, da sigla em inglês). Ela e o Alessandro Golombiewski Teixeira têm sido meus elos com a comunidade brasileira na China. 

Depois do meu Barbie Day no meu dia de folga, quando fiz pé e mão, Isa buscou a mim e Samuel no complexo onde moramos e nos levou a um hutong em Beijing. Hutong é um tipo de rua estreita ou beco formados por fileiras de siheyuan, residências tradicionais com pátio.

Nosso destino foi o Restaurante Yuebin, o primeiro restaurante privado e familiar na República Popular da China. O estabelecimento abriu as portas em 1980 e agora está sob o comando da terceira geração de donos. Fica localizado no número 43 do Cuihua Hutong, distrito de Dongcheng e a poucos quarteirões da Cidade Proibida, em um local diagonalmente oposto ao Museu Nacional de Arte da China. 

Reprodução internet - Placa vermelha na fachada do Restaurante Yuebin

A história desse restaurante se funde à da Abertura e Reforma de Deng Xiaoping, em 1978, quando uma nova etapa da grande marcha rumo ao desenvolvimento e prosperidade teve início na China. 

Os fundadores do estabelecimento, o casal Guo Peiji e Liu Guixian, no final da década de 1970, estava na meia-idade e passava por aperto financeiro. Com cinco filhos, três deles desempregados e os dois caçulas adolescentes, comiam um dobrado para arcar com as despesas de alimentação e vestuário da prole. 

Naquela época, Guo trabalhava como chef na cozinha da Fábrica de Motores de Combustão Interna de Beijing. Os dotes culinários ele aprendeu ainda jovem com a esposa Liu, uma cozinheira de mão cheia. Ela, inclusive, cozinhava para uma líder local para ajudar a complementar a renda familiar. Foi a patroa que deu a dica para a matriarca e sugeriu que aproveitasse o dom para preparar acepipes deliciosos para abrir um restaurante. 

A dica foi a deixa para o casal compreender que a China iniciava uma nova fase de empreendedorismo e não foi desperdiçada. Naquele período não havia restaurantes individuais ou privados, apenas estatais e coletivos. O casal precisou desbravar um novo caminho para abrir o negócio. 

Movida pelo entusiasmo, Liu escreveu uma carta para o escritório local do órgão do governo responsável por restaurantes para pedir orientação. O casal foi pioneiro nesse tipo de empreendimento, pois para os autônomos era permitido apenas o autoemprego nas indústrias de reparação e artesanato. Ainda não havia políticas relevantes em outras indústrias, o que era difícil para empreendedores do setor de comércio e serviços como eles. 

No final da década de 1980 e início da década de 1970, itens como grãos, óleo, carne, ovos e alimentos não básicos eram fornecidos por meio de bilhetes ou cupons. Esse sistema era um obstáculo para a abertura de um restaurante como o que o casal planejava e precisava ser superado. 

O pedido para a abertura do restaurante foi recusado várias vezes. Mas a persistência de Liu falou mais alto. Teimosa, ela caminhava regularmente por mais de uma hora até o Departamento Industrial e Comercial e abordava todo e qualquer funcionário que avistasse. Ela praticamente cumpria expediente no órgão. 

A tática deu resultado e os camaradas do departamento resolveram fazer uma visita à casa dela para conhecer melhor a realidade da família. Ela foi orientada a não ir até o órgão todos os dias, pois ainda não havia políticas para tratar do seu caso, mas que ficasse preparada para colocar o restaurante em funcionamento. 

Reprodução internet - Casal Guo Peiji e Liu Guixian

Missão dada é tarefa cumprida e o casal transformou a casa própria em restaurante com quatro mesas para entrar em funcionamento no Dia Nacional da China, celebrado no dia 1o de outubro de 1980. Na véspera, no dia 30 de setembro, Liu pegou todo o dinheiro que tinha na ocasião, 36 yuans, e comprou quatro patos (item que poderia ser adquirido sem os bilhetes) e vegetais da estação.

Como forma de testar o cardápio, ela preparou sete pratos, quatro deles de pato, e fez uma inauguração não oficial para a vizinhança. Foi um sucesso e o beco ficou lotado de pessoas interessadas em provar as delícias de Liu. O saldo do dia: clientela satisfeita e um caixa de 50 yuans. 

No dia do "soft open", um repórter da Beijing Evening News, veículo de imprensa da capital chinesa, buscava histórias pelas redondezas e se deparou com a movimentação no Yuebin. A publicação da  reportagem com o título "Abertura do primeiro restaurante individual da China'' consagrou o estabelecimento e transformou a operação experimental em formal. 

Reprodução internet - A vizinhança lotou o hutong para provar as delícias do novo restaurante.

Só que havia mais uma exigência que o casal precisava cumprir: o departamento de saúde de Beijing determinava que restaurantes tivessem uma geladeira. Era um item caro a que poucas pessoas tinham acesso. Eles conseguiram um empréstimo de 500 yuans, mas o refrigerador custava mais que o dobro na loja estatal: 1.400 yuans. 

A história chegou ao conhecimento de uma liderança local, um ex-soldado da Guerra da Coreia, que se solidarizou com o casal e baixou o preço da geladeira para 400 yuans. Exigência sanitária resolvida. Era hora de colocar a mão na massa e abrir as portas do restaurante, o que ocorreu no dia 7 de outubro de 1980. 

Uma multidão já aguardava ansiosa para provar os quitutes de Liu. A inauguração foi um estrondoso sucesso de público e de crítica. A abertura do Yuebin atraiu atenção da mídia, dos estrangeiros das embaixadas e das lideranças do governo chinês e se transformou em uma sensação em Beijing.

O restaurante era a prova viva de que a China entrava em uma nova era e passava a adotar um novo modelo econômico. Atualmente, a nação chinesa vive um momento de prosperidade graças a pioneiros como Gio e Liu.

Neste ano de 2022, o Restaurante Yuebin celebra 42 anos de funcionamento e os negócios crescem de vento e popa. Guo Peiji, ao lado do neto Guo Cheng e da neta Guo Hua, seguem no comando do estabelecimento. Liu Guixian morreu em 2015.

A loja tem cerca de 30 metros quadrados, onze mesas na parte interior e outras três na área externa. O ambiente é simples e acolhedor e com um ar vintage. O cardápio cresceu e os sete pratos dos tempos de inauguração viraram dezenas. 

Reprodução internet - O Restaurante Yuebin e seu estilo vintage 42 anos depois de inaugurado.

Na minha visita a esse lugar cheio de história, minha anfitriã, Isabela, foi a responsável por fazer os pedidos: batata inglesa cortada em fatias bem finas, como um macarrão, temperadas com pimenta; costelinha de porco agridoce; camarão com pepino; refogado de alho artemísia (uma espécie de Panc - planta alimentícia não convencional - cada vez mais popular na China) e uma sopa com almôndegas de carne de porco, macarrão de arroz e repolho. Até eu que não gosto de sopa aprovei todos os pratos. Simplesmente divinos!

Acervo pessoal - Comidinhas deliciosas.

Depois do bate-papo, da comilança e da cervejinha gelada, caminhamos pelas ruas de Beijing. O povo nas ruas celebrava o Festival da Lua. Câmeras fotográficas e celulares a postos para registrar a senhora bela, redonda, amarela e brilhante no céu. Achei até uma turma animadíssima que dançava sob o luar. Não resisti e também dancei a minha coreografia brasileira: "Faz o L, faz o coração grandão, desenrola, o Brasil tem jeito".  Espia aqui

 

Até amanhã!