RESENHA

Holocausto Brasileiro: Filme narra horror de antigo hospital psiquiátrico e alerta para perigos atuais

Foram cerca de 60 mil pacientes mortos nas dependências do Hospital Colônia de Barbacena (MG) durante oito décadas; para profissionais da área, é preciso “estar vigilante” para a não repetição das práticas em comunidades terapêuticas

Cartaz do documentário Holocausto Brasileiro, dirigido por Armando Mendz e Daniela Arbex.Créditos: Reprodução/X Netflix
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O documentário “Holocausto Brasileiro”, disponível na Netflix desde o fim de fevereiro, narra os horrores do Hospital Colônia, antiga instituição psiquiátrica localizada em Barbacena, Minas Gerais, onde se estima que mais de 60 mil pacientes morreram vítimas de maus-tratos e da precariedade e desumanização inerentes ao “tratamento" oferecido. Mais do que isso, o filme inspirado em livro de mesmo nome da jornalista Daniela Arbex faz um grave alerta para a possível repetição de tais práticas na atualidade, sobretudo a partir das chamadas “comunidades terapêuticas”.

O Hospital Colônia foi fundado em 1903, mas sua história começa na última década do século 19. Naquele momento era difundido um tipo de discurso que apontava as regiões serranas do Rio de Janeiro e Minas Gerais como zonas de clima mais ameno e próprias para práticas de cura e fortalecimento da saúde em oposição à capital, a cidade do Rio, que vivia época de intensas epidemias e insalubridade. Dessa maneira, tanto Barbacena como outras localidades correlatas eram o destino de “spas de luxo”, conforme expressão usada por historiador entrevistado para o documentário.

Em 1903 o governo de Minas Gerais então compra o imóvel, outrora destinado às terapias das elites, e o transforma no Hospital Colônia. O título, tanto do documentário dirigido por Armando Mendz e Daniela Arbex como do livro escrito pela jornalista, faz referência à chegada de trem, todas as terças e quintas-feiras, dos assim demarcados “vagões para loucos” a Barbacena. A analogia com o Holocausto judeu ocorrido na Alemanha décadas após a fundação do hospital é visível, uma vez que também naquele contexto as vítimas eram levadas em trens aos campos de concentração.

“Muitos nem loucos eram, mas as famílias ou a polícia os empurravam como loucos. A PM recolhia pessoas nas ruas de Belo Horizonte, levava para o Hospital Raul Soares e, de lá, eles eram trazidos pra cá”, diz um já idoso morador de Barbacena que presenciou a história ao longo da sua vida. O local foi considerado um verdadeiro “depósito de gente”, de pessoas “indesejáveis”, para usar mais duas expressões recorrentes na obra.

A precariedade e a desumanização do tratamento dos “pacientes” foram uma marca do Hospital Colônia durante suas mais de oito décadas de existência. Era comum que houvesse apenas um médico para atender aos três pavilhões da instituição, e que funcionários completamente despreparados dessem quaisquer remédios aos internos. Há, inclusive, o relato de um policial que atuava lá dentro nas horas vagas e que costumava ameaçar pacientes e enfermeiras com sua arma. Eletrochoques eram rotina.

Nos anos 1930, a instituição ficou a cargo de freiras católicas, mas a desumanização não arrefeceu apesar do "amor cristão". O filme traz relatos de que as religiosas utilizavam os internos, sobretudo as internas, como mão de obra para a produção de produtos artesanais e de crochê. Obviamente o trabalho não era remunerado.

Na década de 1970 foi a vez da chegada em massa de crianças à instituição. Em Oliveira (MG), havia o chamado Hospital Colônia de Oliveira, para onde eram levadas crianças tidas como loucas. O local é apontado como um “depósito de crianças indesejadas”, geralmente internadas pela própria família. Com o fechamento da instituição, essas crianças foram automaticamente levadas ao Hospital Colônia de Barbacena.

“Meu pai me internou e ninguém nunca veio me visitar. Tenho saudades do meu pai até hoje”, diz uma das "crianças de Oliveira", hoje um idoso. O depoimento é de marejar os olhos. Ao ser transferido para Barbacena, ele foi destacado para fazer a limpeza da instituição.

Outro detalhe chocante do Hospital Colônia é que um cemitério foi construído em Barbacena para atender exclusivamente aos mortos do local – que em tese deveria recuperar os pacientes. Aparentemente, valia a máxima que recentemente vimos na CPI da covid-19 de que “óbito também é alta”. Após algumas décadas, o cheiro que emanava do local chamou a atenção da população, chegou-se à conclusão de que o terreno estava sobrecarregado, e as atividades do cemitério foram suspensas. O filme ainda mostra que muitas famílias não tinham interesse em reaver corpos e que, após o desativamento do cemitério, muitos corpos das vítimas fatais eram vendidos a universidades.

Alerta para os dias atuais

O documentário conta com um rico leque de depoimentos: ex-pacientes, parentes de vítimas, ex-funcionários, jornalistas e cineastas que denunciaram os maus-tratos em 1979 e funcionários do atual Centro Hospitalar Psiquiátrico de Barbacena, que funciona na cidade após o fechamento do Hospital Colônia.

Para todos eles há um consenso. As culpas pelas mortes em massa e maus-tratos são coletivas. Vão desde a própria medicina e psiquiatria, que à época previam tamanha desumanidade, passam pelo Judiciário e pela polícia, que endossavam as práticas, até chegarem às próprias famílias dos pacientes, que, não desejando o seu convívio, os despejavam no "depósito humano".

Após as denúncias feitas em 1979, a partir de um filme, de ensaios fotográficos e matérias de jornal, começou a mudança. O processo de encerramento das práticas aqui descritas só foi completado em 2001 com a aprovação de lei que instituía o chamado “tratamento humanizado”. Mas, apesar da nova lei e do novo consenso psiquiátrico e médico, os profissionais entrevistados alertam que é necessário "seguirmos vigilantes" para que tais práticas não voltem a se repetir.

“A sociedade ainda é muito higienista e o discurso da periculosidade ainda sustenta esse tipo de prática”, disse uma funcionária da instituição contemporânea. Um médico completa: “Hoje a principal questão gira em torno dos dependentes químicos”.

A reflexão vem a calhar num momento de avanço conservador em que diversas entidades supostamente religiosas começam a fundar suas comunidades terapêuticas e, em muitos casos, a pleitear dinheiro público para manter seu funcionamento.

Sobram relatos de novas violações de direitos, semelhantes àquelas. Aqui na Revista Fórum já denunciamos alguns casos. Em setembro do ano passado, por exemplo, a Polícia Civil de Goiás resgatou 50 pacientes usuários de drogas da Amparo Centro Terapêutico, uma clínica gerida por um casal de pastores evangélicos em Anápolis. As vítimas tinham um amplo leque etário: de 14 a 96 anos.

À época, o portal Metrópoles teve acesso aos testemunhos que algumas das vítimas deram aos investigadores. Cinco delas relataram pesadas rotinas de tortura e humilhação – segundo as mesmas, os principais alvos eram as pessoas com deficiência. Os pastores teriam o costume de amarrá-las, deixá-las nuas e dar banhos compulsórios com água gelada. Todas essas práticas seriam formas de punir os pacientes considerados problemáticos.

Um dos pacientes, conhecido pelo apelido de ‘Gasolina’ e deficiente intelectual, era uma das vítimas preferenciais dos baldes de água fria. “Sempre que pedia cigarro faziam isso. Chegou ao extremo de a roupa dele ser tirada na frente de todo mundo e a cueca ser puxada para cima”, relatou um dos resgatados.

Dependentes químicos que ganhavam a confiança da gestão eram promovidos a ‘monitores’ e realmente ‘monitoravam’, ou vigiavam, os demais internos. Eram eles que, segundo as vítimas, xingavam e ameaçavam outros pacientes. Os relatos apontam que o local funcionava como uma espécie de depósito dessas pessoas, que sequer recebiam atendimento médico e eram assistidas por poucos funcionários. Angelo e Suelen Klaus, casados e pastores da Igreja Batista Vida Nova, eram os coordenadores da instituição. A empresa estava registrada no nome de Angelo.

Suelen foi presa, negou aos policiais a prática de tortura e alegou ser apenas uma funcionária da gestão da instituição. Por sua vez, Angelo estava foragido quando o caso foi noticiado. Logo que viu a chegada da polícia, fugiu por uma mata vizinha.

Em 27 de fevereiro passado, apenas dois dias depois do documentário estrear na Netflix, a Polícia Federal fez uma operação contra trabalho análogo à escravidão em semelhante instituto, dessa vez em Itacoatiara no Amazonas. Segundo a PF, os responsáveis pela comunidade terapêutica submetiam os internos a condições degradantes de higiene e a trabalhos forçados, além de não receberem alimentação adequada. A imagem dos dependentes também era explorada em lives nas redes sociais para gerar engajamento e dinheiro de doações.

Além disso, pipocam debates e leis que visam promover a internação compulsória de dependentes químicos em situação de rua em Santa Catarina, Rio de Janeiro e outros estados. Retomando frase do filme: “Precisamos estar em alerta". O curioso [que não é tão curioso assim, mas uma obviedade] é que no passado, assim como no presente, o perfil preferencial dessas "pessoas indesejáveis" jogadas nos "depósitos humanos", é de pessoas negras, pobres e periféricas.

“Por que prendiam os loucos?”

Um dos depoimentos mais emocionantes do documentário é de um homem, já idoso, que viu sua mãe definhar no Hospital Colônia em Barbacena. Acompanhado do filho, um homem adulto, ele descobre que foi seu próprio pai quem enviou a mãe ao local e desaba em lágrimas.

O filho desse senhor, por sua vez, narra um diálogo com seu próprio filho (neto do senhor retratado e bisneto da senhora que foi paciente) para a equipe do documentário.

- Pai, por que a ‘bisa’ está lá?

- Porque prendiam os loucos.

- E por que prendiam os loucos?

- Porque viam o mundo de forma diferente. Entendeu?

- Não.

- Nem eu.