Minimizar o sofrimento e priorizar a qualidade de vida de pacientes acometidos por uma doença grave e de seus familiares é, historicamente, um dos principais desafios dos médicos. Com este objetivo, uma área de atuação em saúde vem ganhando cada vez mais espaço entre os profissionais do setor.
Desde a década de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) vem elaborando o conceito dos cuidados paliativos. Oficialmente, desde 2002, a definição oficial é a seguinte: “Cuidados paliativos é uma abordagem que visa melhorar a qualidade de vida de pacientes e familiares no contexto de uma doença grave e ameaçadora da vida por meio da prevenção, do alívio do sofrimento, da identificação precoce e do tratamento impecável da dor e de outros sintomas físicos, sociais, psicológicos e espirituais”.
Te podría interesar
Juliana Tavares, médica oncologista (especializada no tratamento do câncer) com especialização em cuidados paliativos, em entrevista à Fórum, relata que, ainda hoje, a simples menção ao tema se torna um tabu, uma espécie de estigma.
“Há diversas instituições substituindo o termo paliativo por falta de conhecimento no tema. Estes lugares têm usado o termo de medicina integrativa no lugar de medicina paliativa por receio de associações ao abandono terapêutico ou ainda à gambiarra. Há, ainda, quem o use quando não se tem ‘mais o que fazer’. E não é isso”, afirma Juliana.
Te podría interesar
Ela explica que a palavra paliativo vem do latim pallium e, etimologicamente, quer dizer manto/cobertor e foi um termo desenvolvido por estudos canadenses. Pallium era o manto que ficava nos ombros dos cavaleiros a fim de protegê-los das tempestades. Portanto, a ideia do paliativo é que se ofereça um cuidado, uma proteção diante do abalo e sofrimento que um adoecimento possa causar.
“Esse processo de doença pode ser curto e reversível e, mesmo assim, causar sofrimento. Portanto, não é uma atuação apenas para pacientes terminais, como tantos reproduzem. Nos últimos anos há uma grande preocupação da OMS em deixar claro de que esta abordagem é indicada a ‘doenças com risco de vida’ e que os cuidados paliativos devem ser instituídos em conjunto com os tratamentos das doenças”, aponta a oncologista.
Juliana exemplifica: “Um homem de meia idade, hígido, tem uma queda de uma escada e quebra o braço. A correção da fratura pode não ser o suficiente. Possivelmente ele terá que fazer fisioterapia e terá que ter uma adaptação de suas atividades rotineiras, o que pode implicar em conflitos psicológicos, dores físicas e até um impacto financeiro negativo. Podem ter sequelas que podem fazer o paciente questionar os motivos pelos quais ocorreu esse acidente e, quem sabe, expõe conflitos espirituais. Se um acidente pode envolver todo o contexto acima, imagine doenças crônicas, degenerativas. É um viver restrito e requer muitas adaptações do paciente e do núcleo próximo de cuidados”, diz.
Como funciona a prática
Juliana revela que a prática dos cuidados paliativos funciona como uma área de atuação multiprofissional em que médicos e médicas, enfermeiros e enfermeiras, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais e profissionais religiosos trabalham juntos para fazer um plano de cuidado que envolva uma multidimensionalidade.
“Muitas vezes o sofrimento emocional é tão grande quanto o físico. Então, as propostas para melhoria da qualidade de vida serão feitas em equipe interprofissional. A assistência é focada na pessoa e não na doença. Cada uma dessas pecinhas cria um vínculo com aquele paciente e busca tratar todas as dores: a física, a emocional, a social e tudo que mais doer”, conta.
Objetivamente, o trabalho envolve vários aspectos: conhecer a biografia da pessoa que está doente: quem ela é, o que gosta, hobbies, trabalho, desenho familiar, fé; ouvir suas queixas: o que dói, o que a faz sofrer; exame físico detalhado; oferecer escuta para medos e outros sentimentos; individualmente, a depender dos sintomas que a pessoa tenha, são usadas medicações para alívio de desconfortos, como analgésicos, antieméticos (medicamentos para evitar vômitos) e outros remédios; é feito, também, um plano não medicamentoso com a equipe interdisciplinar.
“Falamos em plano de cuidados porque o processo é uma travessia. As coisas não são resolvidas em uma única consulta. O acompanhamento é a médio-longo prazo. E, se tudo caminha como esperado, os profissionais da saúde, junto com o paciente, vão traçando o que chamamos de ‘Diretivas Antecipadas de Vontade’, que é um documento que orienta sobre os cuidados que a pessoa deseja receber”, acrescenta a médica.
Juliana entende que a importância desta área de atuação é extrema. “O século XX testemunhou o extraordinário crescimento das populações idosas em todo mundo. A tecnologia moderna, desenhada para recuperar a saúde das pessoas, é importante, mas não há como reverter todos os quadros. É preciso, também, oferecer um olhar compassivo quando as chances de cura se mostram limitadas e/ou quando as sequelas do processo atravessado são persistentes. Os avanços da medicina tornaram possível a detecção precoce de várias doenças, aumentando a chance de cura. A sobrevida de pacientes com enfermidades crônicas alargou-se e vivemos mais mesmo na presença de doenças potencialmente graves. Então, é preciso gerenciar com destreza estas condições, tentando oferecer qualidade de vida. Por isso, insisto que este tema é de relevância para a sociedade e deve ser discutido em toda a formação nas graduações dos cursos de saúde. Todas as pessoas, sejam profissionais da saúde ou não, têm que entender essas definições para que erros conceituais não interfiram no processo do cuidar. Muitas vezes quando a medicina ‘curativa’ esgota seus recursos, os pacientes tendem a ser relegados. Os médicos e médicas se sentem impotentes frente a uma situação para qual ele não foi treinado a manejar. Ainda mais se a família e o próprio doente em questão também não refletem sobre isso”, avalia.
Em que situação devem ser adotados
Juliana menciona o que é preconizado pela OMS: o cuidado paliativo deve ser uma abordagem aplicada a partir do momento do diagnóstico de uma doença ameaçadora de vida, não necessariamente terminal, mas potencialmente fatal.
“É uma camada extra de conforto e deve se somar ao tratamento original logo no início. Isso vale para doenças cardiovasculares, como hipertensão, insuficiência cardíaca, acidentes vasculares encefálicos (AVC), para os cânceres, para as doenças pulmonares. E, hoje, também estamos estudando os cuidados paliativos na população psiquiátrica”, conta.
“Outra situação que gostaria de comentar é a importância dos cuidados paliativos no cenário de calamidades. Segundo a OMS, crises humanitárias são ‘eventos de grandes proporções que afetam populações ou sociedade, causando consequências difíceis e angustiantes, como a perda maciça de vidas, interrupção dos meios de subsistência, colapso da sociedade, deslocamento forçado e, ainda, graves impactos políticos, econômicos com efeitos sociais e psicológicos’”.
Portanto, aponta Juliana, nestas situações, o sofrimento e esforços são muitas vezes negligenciados em detrimento do salvar vidas. Durante uma calamidade, as organizações de assistência à saúde devem atuar em uma estratégia para reduzir o sofrimento humano, apoiando todas as linhas de frente a se comunicarem com compaixão com pacientes e familiares.
“Podemos fazer um paralelo com o que vivemos, em especial antes da imunização, em relação à crise da Covid-19. A pandemia causou sofrimento generalizado entre os pacientes e suas famílias devido à carga de sintomas físicos, mais comumente falta de ar, além de sintomas psicológicos, como medo e ansiedade, presentes em qualquer situação de doença grave, porém, mais exacerbado pela falta de compreensão por ser uma doença nova. Em momentos de falta de leito e de oxigênio foi essencial uma equipe de cuidados paliativos que auxiliasse recursos medicamentosos e não medicamentosos para o controle da falta de ar. Por isso, equipes de cuidados paliativos atuaram estrategicamente nesse cenário, aliviando o sofrimento dessas pessoas”, relembra a oncologista.
Profissionais aptos e cada caso é um caso
Juliana revela que qualquer profissional da área de saúde, que tenha a possibilidade de realizar uma especialização, está apto a praticar cuidados paliativos. Atualmente, há cursos de pós-graduação e programas de residência médica e multiprofissional em saúde.
“O sofrimento é particular de cada uma das pessoas a depender da doença de base, dos sintomas que ela desenvolve, dos recursos que ela teve acesso para tratar. Portanto, não há protocolo. Tudo é personalizado. Mesmo porque a doença é uma abstração da realidade. Quando estudamos o curso das patologias, isto é uma descrição em livros e artigos científicos. Mas, no ser humano, o que a doença gera é sofrimento, medo e angústia”, diz Juliana.
Resistência entre profissionais da medicina
A oncologista ressalta que, apesar dos benefícios, há resistência, inclusive entre os profissionais da saúde, em relação aos cuidados paliativos.
“Sim, certamente. Os médicos estão inseridos na mesma cultura da sociedade geral, que testemunhou os avanços tecnológicos dos últimos tempos e que não entende bem o conceito do cuidado paliativo. Há, ainda, as cobranças pessoais, profissionais e sociais que são muitas e geram angústia. Além disso, ainda vivemos um cenário de poucas faculdades de medicina com cuidados paliativos na sua grade curricular. Então, não há treinamento suficiente. Mas, de qualquer forma, existe um paradoxo, porque, ao se formar, o médico, geralmente, acredita que seu conhecimento técnico-científico será suficiente para sua prática. Porém, quando este profissional entra em contato com o paciente e seu sofrimento, principalmente se a condição é incurável e avançada, a crise ocorre”, completa Juliana.