O Fórum Onze e Meia desta terça-feira (22) recebeu o jurista Pedro Serrano para analisar o julgamento de Jair Bolsonaro (PL), réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe de Estado. Durante a entrevista, o advogado rebateu as afirmações de que o processo contra o ex-presidente seria similar ao de Lula (PT) na época da Lava Jato.
O jurista afirmou que é "absolutamente incomparável uma situação com a outra". Serrano destacou que, primeiro, o ex-juiz Sergio Moro adotou uma postura "litigante" durante o processo, o que ficou evidente na mídia da época. Ele citou, por exemplo, a manchete da Veja de 2017 que mostrou uma ilustração de Moro e Lula se enfrentando em um ringue.
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"Depois houve várias decisões que não se trataram de interpretação da lei, mas de um afastamento da lei para uma decisão absolutamente tirânica do juiz e dos procuradores que estavam ali envolvidos. E, pior, isso foi feito explicitamente. Eu não estou usando aqui figura de linguagem", declarou Serrano.
O jurista explicou que, na época, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região chegou a declarar que a Lava Jato não precisaria seguir "regras de casos comuns". "Quando o TRF-4 recebeu a denúncia de que o Moro teria grampeado advogados de defesa, de que o Moro teria gravado ilicitamente a presidente da República e o ex-presidente e divulgado essa fita em vez de queimar como determina a lei, e uma série de outras acusações, a resposta do TRF foi: Moro tem poderes de exceção", comentou Serrano.
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Desse modo, o TRF deu poderes de "imperador" a Sergio Moro ao decidir que ele não era obrigado a seguir as leis e a Constituição, afirmou o jurista. "Não foi uma questão de interpretação da lei, de qual interpretação era mais correta. Foi afastada a lei, ele [Moro] teve poderes de imperador, um poder de soberano absoluto".
"Eu não estou usando aqui a expressão 'estado de exceção' como figura de linguagem. A expressão 'estado de exceção' foi usada explicitamente nessa decisão. Ou seja, nós tivemos, no caso da Lava Jato, uma explícita instauração de um estado de exceção judicial. Uma outra forma mais simples de falar: uma ditadura judicial. Isso foi instaurado", acrescentou Serrano.
O jurista destacou que o processo contra os golpistas de 8 de janeiro, "nem de perto" se compara com o que houve na Lava Jato. Serrano afirmou que é possível ter diferenças de interpretação jurídica no julgamento da trama golpista, mas que isso não tem relação com o que ocorreu com o presidente Lula.
"Você pode ter diferenças de interpretação jurídica. O ministro Alexandre interpreta uma coisa, o ministro Fux interpreta outra, o advogado interpreta outra. Isso é normal no Direito. O Direito é feito disso. Não há nenhum julgamento na história do planeta que não tenha havido isso", disse. "Isso é uma coisa que não tem nada a ver com você dizer: 'o juiz não está obrigado a obedecer a lei e a Constituição'. Ou seja, um afastamento da lei da Constituição", acrescentou.
"E eu na época falei 'isso aqui nunca houve na história do Ocidente, um Judiciário que declare estado de exceção'. Na história do Ocidente houve estados de exceção decretados pelo chefe do Executivo. Nunca ouvi falar nas minhas pesquisas de um estado de exceção decretado pelo Judiciário. Portanto, é absolutamente incomparável uma situação com a outra. Tanto que depois vieram as gravações e ficou claro: se combinava o processo", analisou Serrano. "Era uma fraude, não era um processo", destacou.
Serrano ainda explicou que o julgamento de Bolsonaro está "ocorrendo normalmente, as regras têm sido observadas, os princípios também". No entanto, ele ressaltou que "o erro humano vai acontecer sempre". "Se você quiser pegar um julgamento sem erro humano, não vai haver julgamento. Julgar é um ato humano. É um ser humano julgando outro ser humano. Então, tem erro, tem contradição, tem tudo que tem. É diferente de exceção. A exceção é um não julgamento. É você afastar a regra e cair sobre a pessoa o poder bruto do Estado", declarou Serrano.
"É o que aconteceu com Lula. E posso dizer isso claramente, vejam a situação prática: Bolsonaro está preso? Bolsonaro encarou esse processo preso? Lula encarou o processo preso. Ficou dois anos preso. Bolsonaro não ficou meia hora preso. Se ele levar prisão vai ser depois da decisão transitada em julgado, que é o que é civilizado fazer", explicou Serrano.
O jurista disse, também, que Lula foi "tratado como inimigo, e não como um ser humano", enquanto Bolsonaro está sendo tratado humanamente durante o processo. "Lula foi tratado como inimigo, como um corpo desprovido de direitos. E quem fala não sou eu, é o Comitê de Direitos Humanos da ONU, que observou isso e julgou de forma unânime, 17 juristas de diversos países do mundo, nenhum brasileiro, nenhum tipo de interesse", relembrou Serrano.
"Então, são situações radicalmente diferentes", destacou novamente o jurista. Ele também afirmou, mais uma vez, que o processo contra Lula foi "fraudulento". "O procurador combinava com o juiz o que fazer, o que declarar, o que escrever, como tomar depoimentos. Quer dizer, havia uma combinação, o processo era uma farsa. A defesa participava como uma pantomima, só para dizer que tinha defesa", ressaltou.
Já no processo de Bolsonaro, o jurista explicou que não há sequer injustiça, muito menos injustiças graves. "As provas da Polícia Federal são contundentes: houve uma organização criminosa no Brasil que tentou dar um golpe de Estado. O que significa um golpe de Estado no pós-Segunda Guerra Mundial? Não é só acabar com o direito ao voto, não é só estabelecer um governo autoritário no sentido de não ser eleito pelo povo. É acabar com os direitos. Os direitos são o que nos humanizam no plano do Direito e da política. Só há ser humano no plano do Direito e da política se for um corpo protegido por direitos", analisou.
Serrano completou afirmando que os golpistas queriam "desumanizar a todos nós e a cada um de nós". "É muito grave o que eles tentaram fazer. Tentaram colocar a gente na condição de corpo não humano, todos nós. É muito grave isso. Isso está mais do que comprovado na investigação da Polícia Federal, o próprio New York Times reconheceu e fez uma matéria elogiosa em relação a isso", afirmou o jurista.
Para Serrano, o que essas pessoas que fizeram parte da trama golpista querem é "liberdade para cometer crimes graves contra os outros".
Matéria da revista The Economist sobre julgamento de Bolsonaro
Serrano também comentou sobre a matéria veiculada na revista The Economist na última quinta-feira (17) em que o veículo afirmou que o STF pode gerar uma crise de confiança ao julgar Bolsonaro na Primeira Turma e não no plenário. Para o jurista, a matéria é "relativamente equilibrada" do ponto de vista jornalístico, e que sua essência está em estabelecer uma crítica a uma tradição brasileira que, para Serrano, é verdadeira, que é o Direito brasileiro "flutuar entre o abuso e a impunidade".
No entanto, o jurista defendeu que há coisas na matéria que são equivocadas. "Primeiro, equivocadas no plano jurídico, quem escreveu não conhece Direito brasileiro. Segundo no plano fático, quem escreveu não tem conhecimento dos detalhes, por exemplo, não tem conhecimento dessas coisas que eu acabei de falar que houve na Lava Jato e que não houve agora", afirmou.
Ele ainda acrescentou que, em terceiro lugar, quem escreveu a matéria "não tem conhecimento da lei brasileira" e "pouco conhecimento da lei em geral". "Porque se houvesse algo semelhante em qualquer outro país do mundo, você estaria tendo processos até mais graves do que você está tendo no Brasil. Ou seja, tem um certo déficit cognitivo em relação ao Direito", disse o jurista.
Serrano avaliou que a crítica feita pela matéria referente a um "excesso de poder no Judiciário" revelou o déficit cognitivo, pois essa seria muito mais ampla que o Brasil. "Ela diz respeito à forma de organização do Estado pós Segunda Guerra Mundial", explicou.
"A Segunda Guerra Mundial mostrou para o mundo que maiorias podem gerir sistemas terríveis. O nazismo e o fascismo ascenderam ao poder pela mão de maiorias. Então, a resposta que o Direito deu na Europa foram Constituições rígidas. Estipulam direitos e normas que estão acima das outras normas e que não podem ser objeto de deliberação de maiorias ocasionais. Então, por exemplo, direitos de minoria é algo que se impõe independentemente da maioria. Mesmo que a maioria seja a favor, a Constituição proíbe isso", explicou Serrano.
"Ou seja, na realidade, a matéria pega uma crítica que existe na teoria do Direito quanto a excessos de poder do judiciário, tanto no mundo anglo-saxão, quanto no mundo europeu continental e traz como se fosse um fenômeno brasileiro", afirmou o jurista.
Para ele, nesse ponto de vista, há uma certa "falta de honestidade intelectual da matéria", pois enquanto ela apontou o problema de excesso de poder do Judiciário, ela também deveria falar sobre os Estados Unidos prenderem jornalistas que não apresentam suas fontes.
"Não me pareceu uma matéria tão desequilibrada, mas é evidente que ela tem um déficit cognitivo em relação ao Direito e uma certa desonestidade intelectual ao trazer o problema como se fosse só um problema brasileiro, como se todo o resto do mundo estivesse imune. Isso no momento em que a jurisdição americana prendeu gente que executou a tentativa lá de atentado ao Capitólio e deixou Trump solto", destacou Serrano.
Por fim, o jurista defendeu que enquanto alguns afirmam que o STF é punitivista, a "jurisdição brasileira é muito pior que o Supremo" e que a Corte é o "melhor lugar para Bolsonaro ser julgado". "Se for pelo Direito e pela tradição dos tribunais, os outros tribunais são muito mais punitivistas. Mas, assim, coloca o foco no Supremo como se o problema fosse dele, não do sistema de Justiça. E agora essa matéria trouxe uma questão como se fosse um problema brasileiro, não uma questão debatida na teoria do Direito constitucional", completou.
Confira a entrevista completa do jurista Pedro Serrano ao Fórum Onze e Meia
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