ENTREVISTA

“Insistência na anistia é sintoma de que há expectativa de condenação”, observa cientista político

Após denúncia por tentativa de golpe, bolsonarismo aposta em vitimização e tenta desqualificar processo jurídico, que se tornou um dos mais importantes dos últimos 50 anos

Bolsonaro na delegacia antes de denúncia da PGR.Créditos: Gabriela Biló / Folhapress
Escrito en POLÍTICA el

Bolsonaristas têm adotado uma postura de vitimização desde a formalização da denúncia contra Bolsonaro e outros 34 militares pela Procuradoria-Geral da República (PGR) por tentativa de golpe. O relatório divulgado essa semana traz a linha do tempo completa dessa empreitada, que começou em março de 2021, quando Lula se tornou elegível, e se consumaria em dezembro de 2022, no final do governo Bolsonaro, quando bolsonaristas começaram a atacar Brasília e fechar rodovias federais. Leia na íntegra.

Segundo Paulo Roberto, cientista político e professor na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a estratégia do bolsonarismo é manter a narrativa de politização das instituições para desqualificar a denúncia, sem focar nos pontos destacados pelo relatório, que contém as provas dos crimes em detalhes.

“As falas das principais lideranças da extrema direita têm sido no sentido de desqualificar o trabalho tanto da Polícia Federal quanto da Procuradoria-Geral da República, assim como já se antecipar a ideia de ‘politização’ do Supremo. Esse processo todo é uma pantomima destinada meramente a culpabilizar e criminalizar uma força política”, analisa. 

“Há muito mais do que uma tentativa de ir nos pontos da denúncia, mas sim de desqualificá-la como um todo, acusando de ser politizada”

Extrema direita segue sendo risco para 2026 apesar de condenação

No entanto, o professor alerta que apesar das investigações e das possíveis condenações, a extrema direita segue sendo um ator político para as eleições de 2026. “Não é absolutamente impossível que se possa ter uma condenação do Bolsonaro e dessas pessoas que façam parte desse processo e ainda assim a extrema direita apresentar uma candidatura competitiva com chance de vitória dependendo do cenário em 2026. Com exceção do lulismo”, destaca. 

“Mesmo nesse momento de uma avaliação negativa do governo, com pesquisas que apontam a ‘pior avaliação histórica do Lula como presidente’, ainda assim Lula aparece na frente das pesquisas que mostram o cenário eleitoral de 2026”, comenta sobre o peso eleitoral e popular do petista, que ainda assusta os candidatos que tentam ocupar o posto de Bolsonaro.

Nesta quinta-feira (20), em entrevista à Rádio Tupi, o presidente destacou que "só há uma saída" para Jair Bolsonaro (PL) caso sejam comprovadas as denúncias feitas pelo Procurador-Geral da República, Paulo Gonet, com base na investigação da Polícia Federal (PF). 

Lula se referiu especialmente à operação Punhal Verde e Amarelo, tramada pelo general e candidato a vice, Walter Braga Netto, com a anuência de Bolsonaro, segundo a PGR, que tinha como objetivo matar ele, o vice, Geraldo Alckmin (PSB), e o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).

"Se for provada a denuncia feita pelo procurador-geral de tentativa de golpe, da participação do ex-presidente, do primeiro escalão dele, da tentativa de morte de um ministro da Suprema Corte Eleitoral, do assassinato de um Presidente da República e do vice-presidente, é uma coisa extremamente grave. E eu tenho certeza que se for provado, ele só tem uma saída: ser preso", afirmou o presidente, que ainda destacou:

"Eles nem foram julgados e já estão pedindo anistia. Ou seja, eles estão dizendo que são culpados. Só pelo fato de pedirem anistia antes de serem julgados eles já devem ser condenados. Se o cidadão está sendo julgado, ele não pode pedir perdão antes de ser julgado. Ele tem que primeiro provar que é inocente"

Para Paulo Roberto, essa última fala do presidente é muito assertiva. “A insistência do tema de anistia é um sintoma de que há uma forte expectativa de condenação [por parte dos bolsonaristas]. Se houvesse uma esperança mais sólida de desmontar a denúncia, esse seria o tópico enfatizado, tanto com as falas do Bolsonaro quanto seus aliados. Então tomarem como muito provável a condenação, o foco se desvia para outra dimensão. Portanto, eles mostram que há um sintoma de uma expectativa de algo que está para acontecer”, diz.

Primeira responsabilização a militares desde histórico de golpes 

A denúncia contra Bolsonaro e outros 34 militares é considerada uma das mais importantes dos últimos 50 anos. O cientista político Paulo explica que essa é a primeira vez que o país se aproxima de uma responsabilização efetiva em relação a uma tentativa de golpe de Estado, depois de vários golpes militares sofridos pela democracia brasileira, que nunca foram levados a julgamento.

“O Brasil tem um longo histórico de golpes militares bem-sucedidos ou não, em que, em seguida, essas tentativas ou realizações do golpe ou ao fim dos ciclos de governos que nasceram de golpes, não houve punição a ninguém. Ao contrário dos nossos vizinhos do Cone Sul – Argentina, Uruguai e Chile –, nós nunca punimos os militares que conduziram o golpe militar e que efetivamente naquele período de 20 anos cometeram infrações seríssimas contra os direitos humanos”, destaca o professor.

“Há aqui uma novidade que é levar a cabo julgamentos e punições a quem atentou contra a ordem democrática. Algo que não aconteceu nas décadas anteriores, que sempre se seguiam de algum tipo de anistia, de pacificação, que não levou a cabo a responsabilização política de quem cometeu crimes”

O professor Lenio Streck, pós-doutor em Direito e considerado um dos maiores juristas do país, também falou à Fórum sobre isso.

 "Os fatos de 7 de setembro marcam a largada. Uma sucessão de atos e atores. E tudo encadeado, culminando no 8 de janeiro, não sem antes passar pelo plano de assassinato. O ponto central da denúncia: em toda a peça, o valor da democracia fica apontado como o bem jurídico atingido. Tecnicamente, quando se furta, o bem jurídico é a propriedade. Na tentativa de golpe, o bem jurídico é a democracia. E isso Gonet colocou sempre como ponto central. Importante nos atermos ao conjunto de provas que os 'atores' produziram contra si. Até plano impresso teve"

LEIA TAMBÉM: Bolsonaro denunciado: "Mais importante processo jurídico dos últimos 50 anos", diz Lenio Streck

Quando Bolsonaro será julgado pelo STF?

O STF pretende concluir o julgamento de Jair Bolsonaro antes do ano de 2026 para evitar influência no processo eleitoral. Parte do gabinete do ministro Alexandre de Moraes será dedicada à análise da denúncia, e a Primeira Turma terá uma mudança de pauta para priorizar o caso.

A instrução das ações penais enfrenta prazos apertados. De acordo com quatro ministros, o ideal seria que o julgamento do ex-presidente fosse realizado até o início do segundo semestre de 2025, garantindo tempo hábil para análise de recursos até o encerramento do ano. 

Após o oferecimento da denúncia, uma série de atos processuais, listados no Código de Processo Penal (CPP), tem início. Primeiro, ocorre a análise para verificar se a peça judicial atende aos requisitos legais. Em seguida, o acusado é citado para apresentar sua defesa prévia.

Nessa fase, ele pode alegar nulidades no processo, apresentar documentos ou provas relativas às acusações e pedir a absolvição sumária. Trata-se de uma defesa mais técnica. A partir disso, os ministros da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) vão decidir se aceitam ou não a denúncia.

Fazem parte desta turma da Corte o relator, Alexandre de Moraes, que dá primeiro o voto pela abertura ou não da ação penal, e os ministros Cristiano Zanin, Cármen Lúcia, Luiz Fux e Flávio Dino. Caso aceitem a denúncia, Bolsonaro se torna formalmente réu.

Os pontos da denúncia 

O Ministério Público Federal (MPF) apresentou a denúncia formal contra Jair Bolsonaro e diversos membros de seu governo, acusando-os de integrar uma organização criminosa que tentou impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva após as eleições de 2022. O documento, assinado por Paulo Gonet, foi encaminhado ao STF e está sob relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

  • Liderança de uma organização criminosa

A acusação sustenta que Bolsonaro, ao lado de seu vice na chapa de 2022, General Braga Netto, coordenou e incentivou ações para impedir a transição de governo. A denúncia descreve a organização como estruturada, hierarquizada e com divisão de tarefas entre seus integrantes. Entre os envolvidos, figuram ministros, militares e assessores diretos, todos supostamente alinhados ao projeto de manter Bolsonaro no poder, independentemente do resultado eleitoral. Documentos apreendidos indicam que reuniões foram realizadas para articular as estratégias do grupo.

  • Deslegitimação das eleições

Desde 2021, Bolsonaro teria promovido um discurso de desconfiança contra as urnas eletrônicas e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), preparando terreno para questionar os resultados do pleito de 2022. A estratégia incluía declarações públicas, transmissões ao vivo e reuniões com autoridades nacionais e internacionais para difundir suspeitas infundadas sobre a lisura do processo eleitoral. Segundo a denúncia, esse discurso foi meticulosamente planejado como parte da narrativa que sustentaria um golpe de Estado.

  • Uso da estrutura do governo

O ex-presidente teria utilizado órgãos do governo, como a Polícia Rodoviária Federal (PRF) e o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), para dificultar a eleição do adversário e criar instabilidade institucional. Durante o segundo turno das eleições, a PRF realizou operações em regiões onde Lula obteve votação expressiva no primeiro turno, dificultando o acesso dos eleitores às seções eleitorais. Além disso, investigações apontam que Bolsonaro e seus aliados discutiram estratégias para instrumentalizar as Forças Armadas e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência) em favor do plano golpista.

  • Tentativa de golpe

A denúncia afirma que Bolsonaro e seus aliados cogitaram medidas como decretar estado de sítio, prender ministros do STF e do TSE e anular as eleições com base em pretextos fraudulentos. A Polícia Federal identificou minutas de decretos que previam a intervenção militar e a suspensão das instituições democráticas, além da possível prisão de opositores políticos e membros do Judiciário. Documentos apreendidos demonstram que reuniões ocorreram para discutir esses planos, com participação de militares da ativa e da reserva.

  • Plano de violência e intimidação

Um dos aspectos mais graves da acusação menciona a existência de planos que incluíam a possibilidade de assassinato de autoridades, como o ministro Alexandre de Moraes e o próprio presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva. Entre os documentos apreendidos, há anotações que mencionam uma operação chamada "Punhal Verde e Amarelo", que previa ataques a figuras-chave do Judiciário e do Executivo. A denúncia descreve que Bolsonaro foi informado sobre essas conspirações e não apenas consentiu, como também teria incentivado a adesão de grupos extremistas.

  • Mobilização militar e desobediência ao STF

A organização teria tentado cooptar militares para aderirem a um golpe, pressionando o Alto Comando do Exército e usando redes sociais para atacar generais que não apoiaram a ruptura democrática. De acordo com as investigações, Bolsonaro e seus aliados buscaram o apoio de oficiais de alta patente, enquanto figuras militares alinhadas ao governo fomentavam um ambiente de desobediência dentro das Forças Armadas. Apesar da resistência de parte do Alto Comando, setores das Forças Especiais teriam se articulado para viabilizar a tentativa de golpe.

  • Conexão com atos de 8 de janeiro

A denúncia aponta que Bolsonaro e seus aliados incentivaram e facilitaram a mobilização de apoiadores, que culminou na invasão e depredação das sedes dos Três Poderes. Mensagens interceptadas revelam que membros da organização criminosa mantiveram contato direto com os manifestantes acampados em frente a quartéis do Exército, encorajando-os a pressionar os militares a agir. No dia 8 de janeiro, a facilitação da ação violenta ocorreu com a conivência de setores da segurança pública do Distrito Federal. Registros de mensagens revelam que os organizadores esperavam um sinal verde de militares para agir de forma mais incisiva.

  • Evidências documentais

Foram encontrados manuscritos, mensagens e arquivos digitais que detalham o plano para manter Bolsonaro no poder, além de instruções para desacreditar as urnas e criar um ambiente de instabilidade. Entre os documentos apreendidos, estão minutas de decretos golpistas, registros de reuniões conspiratórias e anotações que demonstram o planejamento meticuloso para invalidar a eleição de 2022. As provas reunidas pela Polícia Federal e pelo MPF reforçam a tese de que os atos criminosos não foram improvisados, mas sim resultado de uma conspiração de longo prazo para minar a democracia brasileira.

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar