A Comissão de Legislação Participativa da Câmara dos Deputados promove, na tarde desta quarta-feira (19), uma audiência pública sobre a privatização do sistema prisional. A sessão ouve 8 nomes entre representantes do Governo Lula, da sociedade civil, pesquisadores, entidades de direitos humanos e movimentos sociais.
A possibilidade de transferir a gestão de presídios para a iniciativa privada tornou-se uma realidade em abril de 2023, quando o governo federal editou o Decreto 11.498/2023. O texto atualizava alguns pontos do Decreto 8.874/2016, do Governo Temer, que já previa a privatização de presídios mas ainda não tornava a atividade atraente.
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Tanto não era atraente que um leilão para a privatização do presídio de Erechim [saiba mais abaixo], no Rio Grande do Sul, foi tentado na reta final do Governo Bolsonaro, em agosto de 2022, mas não encontrou interessados. A expectativa é que com o novo decreto a iniciativa privada passe a ver a possibilidade de investir na gestão do setor.
Entre outras coisas, o novo decreto, que atualiza a norma anterior, prevê que, assim como a educação e o saneamento básico, o sistema prisional também é considerado uma área de investimentos prioritários para o governo federal. Nesse sentido, prevê isenções fiscais autorizando a emissão das chamadas debêntures incentivadas – títulos da dívida que permitem às empresas buscar no mercado financeiro investimentos para seus empreendimentos. Incentivados pela União, esses títulos oferecem benefícios fiscais para as empresas que se aventurarem no setor.
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Os efeitos disso são uma preocupação real para a sociedade brasileira. O Brasil tem uma das maiores populações carcerárias do mundo, chegando a 833 mil pessoas presas segundo o Anuário Brasileiro da Segurança Pública – um crescimento de 257% entre 2000 e 2022. Foi por isso que os deputados federais Glauber Braga (Psol-RJ), Fernanda Melchionna (Psol-RS) e Sâmia Bomfim (Psol-SP) propuseram a presente audiência pública.
“A desestatização e a consequente mercantilização do encarceramento, sob o impulso dos incentivos governamentais recentemente propostos, configuram uma trajetória preocupante para o sistema prisional brasileiro”, dizem os parlamentares.
Entre os oito nomes convidados para o debate iniciado às 16h estão:
- Rafael Moreira da Silva de Oliveira, coordenador de projetos da Assessoria Especial de Assuntos Parlamentares e Federativos do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania;
- Lúcia Helena Silva Barros de Oliveira, defensora pública do estado do RJ e coordenadora da comissão de política criminal da Associação Nacional das Defensoras e Defensores Públicos (Anadep);
- Isadora Salomão, arquiteta e urbanista, mestra em Gestão Social, relatora de direitos humanos da Plataforma Dhesca e coordenadora de justiça e direitos humanos do Movimento Negro Unificado (MNU) da Bahia;
- Gilvandro Silva Antunes, representante do Movimento Vidas Negras Importam;
- João Marcos Buch, desembargador substituto no Tribunal de Justiça de Santa Catarina;
- Roberta Esteves, vice-presidente da Associação Nacional da Polícia Penal;
- Christiane Russomano Freire, doutora em Ciências Criminais pela PUC-RS e professora de Política Social e Direitos Humanos na Universidade Católica de Pelotas (RS);
- Thaisi Bauer, secretária executiva da Coalização Pela Socioeducação.
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Por que movimentos sociais são contra?
Para os grupos vinculados à defesa dos direitos humanos em todo o país, existe um consenso: privatizar presídios induzirá ainda mais o encarceramento em massa, levando em consideração que as empresas são remuneradas por interno, além da óbvia previsão de que os serviços pertinentes à gestão penitenciária, como alimentação, higiene e outros, podem ser comprometidos por medidas de gestão internas.
É nesse sentido que foi redigida uma nota técnica do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) enviada ao Governo Federal em setembro de 2022 e assinada por outras 86 entidades de defesa dos direitos humanos.
“A opção do Governo Federal em privilegiar as iniciativas de privatização da gestão das punições, como será visto, traz a certeza de que, ao revés do discurso manifesto, haverá o aprofundamento das violações de direitos, trazendo consequências nefastas e manifestamente contrárias ao desenvolvimento social”, diz trecho da nota técnica, que pede a revogação do decreto.
Ao Conversa Criminal Podcast, o professor de direito de execução penal e advogado criminalista, José Flávio Ferrari, e a defensora pública e coordenadora do Núcleo Especializado de Situação Carcerária (NESC), Mariana Borghese Duarte, alertam para algumas contradições.
“Estamos falando da extensão do Estado para entes privados, e todos sabemos que empresas privadas têm como principal objetivo o lucro. Isso fica ainda mais claro com a possibilidade de se pedir mais valores no mercado de capitais e com a posterior prestação de contas do negócio para quem está investindo. Ou seja, precisam mostrar que o projeto é viável, mas como vão fazer isso?”, indaga Ferrari.
Duarte, por sua vez, dá um exemplo prático dessa mercantilização dos serviços penais: o das tornozeleiras eletrônicas. Segundo a defensora, após o advento das empresas que fazem a gestão desse serviço, as tornozeleiras começaram a se multiplicar. Ela ainda alerta para o sucateamento das prisões públicas e para a possibilidade de que haja trabalho análogo à escravidão em prisões privadas, justamente na perseguição da lógica mercantil exposta acima. Segundo a defensora, países que já adotaram o modelo privatizado estão tentando reverter suas políticas.
“Temos um sucateamento do sistema prisional e isso não é por acaso. É utilizado como uma pretensa justificativa para a privatização. E se por um lado apontam uma pretensa redução de custos com a privatização, por outro, na prática, isso não significa que o Estado vai gastar menos, porque o preso vai custar mais caro. Nos EUA, por exemplo, está ocorrendo um processo de reversão dessa política”, explica a defensora.
Em entrevista ao The Intercept, outro defensor público, Bruno Shimizu, concorda e aprofunda o argumento de Duarte: "O governo está abrindo mão de arrecadação. Está tirando dinheiro de outras políticas públicas para entregar na mão dessas empresas. Com um ônus: o governo paga três vezes mais por cada preso custodiado em um presídio privado do que o valor gasto no sistema prisional público”, disse Shimizu, que também é diretor do IBCCRIM.
Além disso, os presídios privatizados não apresentaram, até aqui, soluções para os problemas já registrados nas gestões públicas penitenciárias. Como exemplo, entre 2017 e 2019, ocorreram dois massacres no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, no Amazonas. A unidade era administrada pela Umanizzare, que abandonou o “negócio” após os episódios.
A problemática de Erechim
No último dia 6 de outubro, o leilão do presídio de Erechim foi feito na Bolsa de Valores de São Paulo e a Soluções Serviços Terceirizados (SST) foi a ganhadora sem que tivesse encarado qualquer concorrente. Ali ficou decidido que a empresa construiria o presídio e faria sua gestão a um custo de R$ 233 diários por interno.
A unidade prevê um total de 1200 vagas e ficaria pronta em até 2 anos dispondo de R$ 150 milhões do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). A concessão, por sua vez, vale por 30 anos e busca substituir o atual presídio de Erechim, que abriga 444 internos no centro da cidade. O valor total estimado do contrato está na casa dos R$ 2,5 bilhões.
Mas do lado de fora da B3, partidos políticos como o Psol e o Pstu e organizações de direitos humanos como a Amparar (Associação de Amigos e Familiares de Presos e Presas), a Frente Estadual pelo Desencarceramento (SP) e a Pastoral Carcerária do RS protestavam contra a entrega do presídio.
Os manifestantes lembravam a quem passasse e aos poucos meios de comunicação que cobriram o ato que a SST já foi punida, no Rio de Janeiro, por falta de higiene na distribuição de quentinhas a presos. De equipamentos quebrados, a carne recongelada e comida estragada, tudo o que viola normas básicas de higiene foi registrado em vistoria no local.
Cinco dias depois do leilão, a SST foi desclassificada pela Justiça gaúcha por não atender a um dos itens do edital. Mas se engana o leitor de que tenha sido pelas denúncias de falta de higiene no RJ. A empresa foi tirada da gestão do futuro presídio por não ter apresentado, conforme previa o edital, a carta de uma instituição financeira declarando que analisou os planos de negócio da empresa e que atestava sua viabilidade. E ainda pode recorrer.
A primeira experiência
A primeira prisão privatizada do Brasil completou 10 anos em 2023. Inaugurada em 28 de janeiro de 2013 por Antônio Anastasia, então governador de Minas Gerais, o complexo penitenciário de Ribeirão das Neves é gerido por um consórcio entre o Estado e um grupo de empresas organizado sob a sigla GPA (Gestores Prisionais Associados). À época do seu lançamento, a Parceria Público-Privada custava a Minas Gerais R$ 2 mil mensais por interno.
“O prédio inaugurado nesta segunda dará 608 novas vagas. Além dele, mais quatro unidades, no mesmo local, estão em fase final de construção e devem ser finalizadas até o fim do ano, gerando um total de 3.040 novas vagas. As obras custaram cerca de R$ 280 milhões para a empresa GPA que venceu a licitação e em troca vai administrar o presídio pelos próximos 27 anos. O modelo é considerado uma boa saída para o Estado que não dispõe de um montante de verba como esta para construir novas unidades e tem um déficit de 10 a 15 mil vagas”, diz um trecho de matéria publicada à época no portal Terra sobre a novidade.
Em Ribeirão das Neves, o trato de monitores contratados pela GPA aos presos vem gerando problemas. Em julho desse ano, por exemplo, um homem morreu dentro da prisão por falta de atendimento médico. Em 2022, a família de um preso denunciou a morte do parente por omissão de socorro. Além disso, há uma série de denúncias de tortura supostamente praticadas no local.