As estatísticas não são totalmente precisas - o que, aliás, já é por si só um indício do tamanho desse imbróglio. A grosso modo, as estatísticas apontam que há cerca de 840 mil pessoas cumprindo pena no Brasil - em regime fechado, semiaberto ou aberto.
Apenas os EUA (com seus 1,23 milhão de encarcerados) nos ultrapassa nesse ranking cruel - o que, aliás, diz muito sobre o nível de repressão e violência lá e aqui. Alguns levantamentos informam que haveria na China cerca de 1,7 milhão de presos. Mas é necessário considerar o viés de propaganda anticomunista na compilação e divulgação de tal estatística.
Entretanto, a tendência norte-americana é de redução do total de apenados - ao contrário do Brasil, que tem aumentado significativamente a população presa. Na última década caiu 22% o total de encarcerados nos EUA, enquanto aqui o número cresceu 44%!
Segundo a Secretaria Nacional de Políticas Penais (SENAPPEN): “o número total de custodiados no Brasil é de 644.794 em celas físicas e 190.080 em prisão domiciliar referentes a junho de 2023”. Cerca de 70% são negros - manifestação mais que eloquente do nosso racismo estrutural.
O motor do sistema é a famigerada lei de drogas: “à medida que a população brasileira é composta por 57% de pessoas negras (pretos e pardos), entre os réus processados por tráfico de drogas, 68% são negros; no que diz respeito à cor/raça branca, representa 42% da população, e apenas 31% dos réus são processados por crimes envolvendo drogas”.
Mas por qual razão um tema tão importante, que afeta a vida de milhares de pessoas, é quase ignorado pelos setores progressistas, movimentos sociais, partidos de esquerda, pelo PT e pelo governo Lula? Ou pior, por que tal pauta aparece entre nós quase sempre na mesma clave manejada pelos reacionários, pela extrema direita? Um coquetel indigesto de senso comum, populismo penal e punitivismo.
O suposto atenuante que geralmente aparece é de que a esquerda teria pouca experiência nessa área - o que não resiste ao cotejamento com os fatos. Na academia, nos movimentos sociais, em alguns governos e também nos nossos partidos há amplo acúmulo relacionado à urgência de reformas estruturais nas políticas de segurança pública, nas polícias, nas cadeias e por aí vai. Infelizmente, o campo dos direitos humanos, da racionalidade científica, dos movimentos negro, da juventude, feminista, popular etc são garbosamente ignorados em razão de uma adesão acrítica aos clichês e pseudo-consensos conservadores.
Os governos estaduais da Bahia, estado que o PT dirige ininterruptamente há quase duas décadas, são, tristemente, uma espécie de paradigma do que não fazer. Para contrastar: até mesmo o PSDB em São Paulo (de Covas a Doria) avançou bem mais do que as administrações petistas baianas nessa área.
Um mundo sem presídios?
Estabelecidos agora os prolegômenos, vamos ao grão. O professor Alípio DeSousa Filho traz a lume um libreto-manifesto - tão corajoso quanto contundente.
Sem os salamaleques e mediações costumeiras, Alípio já nos provoca no título da obra: “Pelo fim das prisões (manifesto pelo fim das penas de encarceramento)”.
De Foucault a Agamben, em rápido voo que vai de Nietzsche, Sartre, Honneth a Chauí, o autor denuncia recente escalada mundial do encarceramento. E chama atenção para um dado pouco visibilizado: em todo o mundo, a população carcerária masculina aumentou 22% enquanto o percentual de mulheres presas cresceu 60%!
Quadruplicamos em duas décadas os números. Atualmente há cerca de 40 mil mulheres presas, a grande maioria por “tráfico”. Ou seja, é óbvio que a atual política de “war on drugs” não é só anti-pobres e anti-pretos, é também totalmente particularmente nociva às mulheres trabalhadoras.
“Os cárceres são, sem dúvida, uma das mais funestas instituições já inventadas pelos seres humanos”. Alípio tem a coragem de dizer o que deve ser falado, sem floreios. É preciso, portanto, mudar toda a política de “segurança pública”, e a “política prisional” e a “política de drogas”, entre outras. Hoje são máquinas de matar e prender jovens, trabalhadores, mulheres pretas, pardas, pobres e periféricas.
Eu senti falta, confesso, de uma pitada de análise das estruturas que enfatizasse as interseccionalidades classe-raça-gênero-território, além da conjuntura mundial e do hodierno contexto político brasileiro.
A propósito, a taxa nacional é de 300 presos por 100 mil habitantes. Na Inglaterra é a metade (144). Na Suécia são 51. Será, por um acaso, talvez, quem sabe, especulando muito, que poderia supostamente existir alguma relação entre tais níveis de encarceramento e a desigualdade social aqui e lá?
Todavia, é sempre preciso saudar o que é bom, belo e justo. “Nesses dias tão estranhos” nos quais tantas vezes “a poeira fica se escondendo pelos cantos” - e com a “cadela do fascimo” sempre à espreita - o grito de Alípio DeSousa Filho é lufada de ousadia e bom senso.
Prisão pra quem mesmo, cara pálida?
“Pelo fim das prisões” - Alípio DeSousa Filho.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.