RETROCESSO

Como o PL da Gravidez Infantil, projeto que equipara aborto a homicídio, chegou à pauta da Câmara

Proposta foi apresentada no mesmo dia em que o ministro Alexandre de Moraes suspendeu resolução do Conselho Federal de Medicina que restringia o direito ao aborto legal

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A Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (12) o regime de urgência para o Projeto de Lei 1904/24, apelidado de PL da Gravidez Infantil e PL dos Estupradores pelo fato de equiparar a interrupção de gestação acima de 22 semanas ao crime de homicídio. Com a aprovação, o texto pode ser votado diretamente no plenário da Casa, sem precisar passar pelas comissões.

Elaborado sem discussão e de forma rápida, o projeto tem causado perplexidade e reações tanto de figuras do mundo político quanto da sociedade civil em geral. A deputada Sâmia Bomfim (PSOL-SP) aponta que o projeto criminaliza crianças e adolescentes vítimas de estupro, ressaltando que mais de 60% das vítimas de violência sexual têm menos de 14 anos. "Criança não é mãe, e estuprador não é pai", afirma a deputada. "As baterias dos parlamentares estão voltadas para essa menina, retirá-la da condição de vítima para colocá-la no banco dos réus."

O ministro dos Direitos Humanos Silvio Almeida também repudiou a proposta em postagem nas redes sociais. "O Projeto de Lei que propõe equiparar o aborto legal acima de 22 semanas de gestação ao crime de homicídio é uma imoralidade, uma inversão dos valores civilizatórios mais básicos", pontua. "É difícil acreditar que sociedade brasileira, com os inúmeros problemas que tem, está neste momento discutindo se uma mulher estuprada e um estuprador tem o mesmo valor para o direito. Ou pior: se um estuprador pode ser considerado menos criminoso que uma mulher estuprada. Isso é um descalabro, um acinte."

Também nas redes sociais, o ex-defensor público e coordenador dos cursos de pós-graduação em Direitos Humanos e Direito Processual Penal do CEI, Caio Paiva, atestou a inconstitucionalidade do projeto. "O PL 1904/2024 é obsceno, irracional, inconstitucional e inconvencional. A prática do aborto com a gestação avançada - principalmente nos casos de estupro da gestante - somente existe num contexto de absoluta desproteção estatal, em que a vítima não confia no Estado para denunciar rapidamente a violação e buscar o abortamento. Equiparar a conduta ao crime de homicídio é absolutamente desproporcional", explica.

Antes de entrar no Theatro Municipal do Rio de Janeiro na noite desta quarta-feira para participar do 31ª edição do Prêmio da Música Brasileira, a cantora Daniela Mercury manifestou indignação em relação ao PL. "Quer dizer que os estupradores, pelo Congresso, têm mais direito que as crianças e mulheres que são estupradas ou violentadas? A gente não pode deixar um Congresso como esse, machista e desrespeitoso com direitos conquistados desde os anos 40, fazer isso, questionando os direitos das mulheres. Numa democracia, quando as mulheres perdem direito, é porque a democracia tá enfraquecida", diz a artista.

A história do PL da Gravidez Infantil

O Projeto de Lei foi apresentado na Câmara pelo deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), com a assinatura de outros parlamentares. A proposição aconteceu no mesmo dia em que o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), suspendeu uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM), que restringia o acesso ao aborto legal em casos de estupro.

"Verifico, portanto, a existência de indícios de abuso do poder regulamentar por parte do Conselho Federal de Medicina ao expedir a Resolução 2.378/2024, por meio da qual fixou condicionante aparentemente ultra legem para a realização do procedimento de assistolia fetal na hipótese de aborto decorrente de gravidez resultante de estupro", afirmou o ministro, em um trecho da decisão publicada em março.

A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) relatava à época que havia recebido relatos de mulheres e crianças vítimas de estupro que não tinham conseguido realizar a interrupção da gravidez por conta da resolução do CFM. Entre os casos descritos estava o de uma menina de 12 anos, grávida de 27 semanas, que mesmo com permissão judicial para a realização do aborto, não havia conseguido realizar o procedimento pelo medo que os médicos tinham de sofrer represálias.

O coordenador da Frente Parlamentar Evangélica, deputado Eli Borges (PL-TO), foi o autor do requerimento de regime de urgência, votado ontem. O presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), comandou a votação que aprovou a urgência em 24 segundos, sem anunciar o número do requerimento a ser aprovado e por voto simbólico, deixando confusos os próprios parlamentares, já que muitos sequer sabiam o que estava sendo votado.

Além de caracterizar mais um episódio de avanço da pauta de retrocessos promovidos pela extrema direita, com um enfrentamento ao STF, a proposta também busca emparedar o governo Lula, como destacou o deputado Sóstenes, em entrevista a Andréia Sadi. "O presidente mandou uma carta aos evangélicos na campanha dizendo ser contra o aborto. Queremos ver se ele vai vetar. Vamos testar Lula", declarou o parlamentar.