A Comissão de Assuntos Econômicos do Senado analisa na manhã da próxima terça-feira (11) o PL 5008/2023 que regulamenta a fiscalização e o controle sobre a produção, importação, exportação, comercialização e propaganda de cigarros eletrônicos, conhecidos como 'vapes'. O texto já foi analisado pela Comissão em março, mas o senador Eduardo Gomes (PL-TO), relator, não emitiu um parecer na ocasião.
Na próxima reunião, a Comissão de Assuntos Econômicos deve emitir seu parecer final sobre o projeto de lei de autoria da senadora Soraya Thronicke (Podemos-MS). Caso a decisão seja favorável, o texto ainda passará por outras comissões antes de ir a plenário.
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O projeto de lei praticamente promove a legalização dos cigarros eletrônicos a despeito das recomendações da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e de entidades ligadas à saúde pública. Entre outros pontos, estabelece que as empresas que queiram produzir e distribuir o item submetam um pedido à Anvisa, além de obterem laudos toxicológicos e certificações do Inmetro e da Anatel.
Além disso, também veta a publicidade do setor nos meios de comunicação e redes sociais. A exposição da mercadoria ficaria restrita às próprias lojas e a venda a maiores de 18 anos.
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No final de maio 34 entidades médicas se manifestaram contra o projeto de lei e a favor da proibição dos vapes, muitas delas sociedades e associações estaduais de pediatria e pneumologia. O texto reforça os pareceres contrários da Anvisa em relação ao uso de cigarros eletrônicos e pede que os senadores rejeitem o projeto.
“A Anvisa regula o tema desde 2009, por meio da Resolução da Diretoria Colegiada – RDC 46/2009, que proíbe a comercialização, importação e a publicidade de dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs), como cigarros eletrônicos e produtos de tabaco aquecido. Desde 2019, de forma ampla e democrática, a agência está com processo regulatório aberto para revisão das evidências científicas sem conflito de interesses sobre DEFs, que tem contado com a participação da sociedade civil, setor regulado e academia. Já foram realizadas duas audiências públicas, tomada pública de subsídios, e, em dezembro de 2023, a agência abriu consulta pública para uma proposta de regulação semelhante à atual, mais abrangente e detalhada, baseada em evidências científicas sem conflito de interesses e alinhada à recomendação da Organização Mundial de Saúde. Naquele mesmo mês, a OMS recomendou que os países que já proíbem a venda de cigarros eletrônicos devem reforçar a implementação da proibição e continuar a monitorar e fiscalizar para apoiar intervenções de saúde pública e garantir uma aplicação rigorosa”, diz a nota das entidades.
Pressão para a liberação
De acordo com levantamento da Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), o número de usuários de vapes quadruplicou entre 2018 e 2022 no Brasil. Estimativas apontam que cerca de 24% dos jovens brasileiros já experimentaram os cigarros eletrônicos.
Para a indústria do tabaco, esse apelo à juventude é estratégico pois pode cativar uma parcela de consumidores que tende, em grande medida, a se manter fiel por toda a vida. É claro que haverá aqueles cuja vida acabará mais cedo por conta do produto e outros que eventualmente deixem o vício. Mas no geral, a oportunidade de negócios é bastante atrativa para o setor. A estratégia foi desvendada pelo relatório “Hooking the next generation”, ou “fisgando a próxima geração”, da OMS.
De acordo com o relatório, em todo o mundo há 37 milhões de adolescentes entre 13 e 15 anos que usam tabaco e, no caso dos cigarros eletrônicos, a taxa de consumo é maior nessa faixa etária do que entre adultos. É um verdadeiro alerta global para a saúde da juventude. Diversos estudos da área já apontaram que o uso dos vapes aumenta em 3 vezes os efeitos do tabagismo, sobretudo em adolescentes que não eram fumantes antes do contato com os cigarros eletrônicos.
“A história repete-se, à medida que a indústria do tabaco tenta vender a mesma nicotina às nossas crianças em embalagens diferentes”, afirmou o Dr. Tedros Adhanom Ghebreyesus, Diretor-Geral da OMS.
“Essas indústrias estão intencionalmente projetando produtos e utilizando estratégias de marketing que atraem diretamente as crianças. O uso de sabores adequados para crianças, como algodão doce e chiclete, combinados com designs elegantes e coloridos que lembram brinquedos, é uma tentativa flagrante de viciar os jovens nesses produtos nocivos”, completou o Dr. Ruediger Krech, Diretor do Departamento de Promoção da Saúde da OMS .
Um projeto semelhante, de autoria do deputado Eduardo Costa (PTB-PA) foi proposto na Câmara dos Deputados em 2020 sob o registro de PL 5087/2020. Inicialmente previa a proibição dos cigarros eletrônicos em todo o país, o que incluía o comércio de acessórios e refis. Mas um forte lobby foi feito até que a atual proposta chegasse ao Senado.
Um exemplo dessa tentativa de manobrar o debate público foi vista na Folha em 20 de maio passado. O título da matéria já diz tudo o que interessa à indústria: "Governo perdeu R$ 3,4 bilhões em impostos com veto a cigarros eletrônicos, diz Fiemg (Federação das Indústrias do Estado de Minas Gerais)".
O estudo foi patrocinado pela BAT Brasill, que significa British American Tobacco do Brasil – ou ‘antiga Souza Cruz'. Além dessa defesa dos cigarros eletrônicos, o jornal também tem seu projeto de checagem patrocinado pela Philip Morris Brasil.
“Mesmo sendo proibido no Brasil, somente entre 2022 e 2023, as vendas cresceram tanto que a projeção de tributos que o governo deixou de receber chegou a R$ 3,4 bilhões —R$ 1,2 bilhão a mais do que o projetado para 2022". Fala também na até possível geração de 124,5 mil novos postos de trabalho formais e informais. Dentre os benefícios, estima-se que a demanda potencial poderia representar um mercado de R$ 10,5 bilhões ao ano, enquanto a arrecadação poderia chegar a R$ 3,4 bilhões em impostos federais", diz o economista-chefe da Fiemg, João Gabriel Pio à matéria da Folha.
Como era propaganda disfarçada de reportagem e não reportagem mesmo, a matéria não ouviu o outro lado. E nesse rol de vozes, as razões do governo para não liberar os cigarros eletrônicos e que ficam claras ao se visitar a página do SUS no site do governo.
"Brasil gasta cerca de R$ 125 bilhões/ano com tratamentos para doenças e incapacitações provocadas pelo tabagismo", diz o SUS sobre as 'vantagens' dos cigarros eletrônicos. Ou seja, os R$ 3,4 bilhões da Folha são quase nada perto das despesas, que certamente aumentariam com a liberação do produtos.
Vape e a nicotina
Principal substância presente nas folhas de tabaco, a nicotina é uma droga psicoativa, capaz de interferir no Sistema Nervoso Central (SNC), modificando o estado emocional do fumante ao provocar o aumento e a liberação de neurotransmissores relacionados a sensação de prazer, satisfação e aumento da motivação. Por esses aspectos, ela está relacionado à dependência do fumo.
Diferente dos cigarros tradicionais, no lugar do tabaco macerado, a nicotina é usada em estado líquido no vape, através das substâncias popularmente conhecidas como essências. Um estudo do Hospital das Clínicas (HC) da Universidade de São Paulo (USP) mostrou que, enquanto o cigarro tradicional, no Brasil, tem um limite de 1 mg de nicotina por cada cigarro, os eletrônicos chegam a ter até 57 mg da substância por ml do líquido.
“O cigarro eletrônico tem uma altíssima quantidade de nicotina e um alto potencial de causar dependência química, principalmente entre indivíduos mais jovens. Isso se deve muito a modificação da nicotina que é usada neste produto”, diz Agra. O pneumologista também alerta que o uso do vape já está associado ao acidente vascular cerebral, doença cardíaca, doença pulmonar e câncer.
Ainda de acordo com o estudo da USP, os usuários de vape têm 42% mais chance de sofrer um infarto, devido não só à quantidade de nicotina, mas também à mistura dessa substância com diversas outras. Além disso, os jovens também aumentam em 50% a chance de ter asma.
O perigo além da nicotina no vape
No entanto, alguns cigarros eletrônicos podem ser feitos sem o uso da substância. Ainda assim, apresentam perigo, pois a nicotina não é a única vilã. Os dispositivos são constituídos por mais de 2 mil substâncias, sendo 80 nocivas e tóxicas, como o propilenoglicol, glicerol e o formaldeído, relacionados ao câncer; a acroleína, relacionada ao aumento do risco cardiovascular, e metais pesados.
Nos Estados Unidos, em 2019, órgãos da saúde comprovaram o surgimento de uma nova doença relacionada aos cigarros eletrônicos, a EVALI, uma sigla em inglês que significa lesão pulmonar associada ao uso de produtos de cigarro eletrônico.
Em dezembro daquele ano, mais de 2 mil estadunidenses foram internados e 48 morreram devido ao vape. No Brasil, uma mulher morreu no ano passado também em decorrência dos danos do cigarro eletrônico à saúde. Crisleide Andrade, de 34 anos, teve uma grave lesão pulmonar que a levou à morte.
Uso do cigarro eletrônico no Brasil
No Brasil, o número de usuários de vape saltou de 500 mil em 2018 para 2,2 milhões de usuários em 2022, segundo o IPEC. Vale ressaltar que a comercialização desses dispositivos é proibida pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) desde 2009.
Uma pesquisa da Universidade Federal de Pelotas, no Rio Grande do Sul, apontou que de 10 mil brasileiros , quase 20% dos jovens entre 18 e 24 anos já experimentaram cigarros eletrônicos.
Já segundo o IBGE, quase 17% dos estudantes de 13 a 17 anos já experimentaram o vape.
O vape é uma opção para quem quer parar de fumar?
Agra explica que apesar do vape parecer uma alternativa para quem quer parar de fumar, o cigarro eletrônico pode acabar tendo o efeito contrário. “As pessoas que fazem uso [do vape] acabam fazendo o consumo até maior de nicotina do que quem faz uso de cigarro convencional e não conseguem se livrar da dependência em si”, ressalta o pneumologista.
"Além disso, o tabagismo também está relacionado à dependência comportamental, e o que o cigarro eletrônico reforça são os comportamentos do fumante, pois ele mantém o mesmo hábito de colocar o cigarro na boca e usar nas mesmas situações", acrescenta.
Vera Lucia também alerta que em alguns casos são constatados um uso dual, ou seja, pessoas fazendo uso do vape e do cigarro tradicional. "Quem quer parar de usar DEF deve procurar ajuda profissional para cessação, e não substituir um produto por outro de nicotina", diz.
Como parar de usar o cigarro eletrônico
Agra afirma que hoje ainda há poucos estudos sobre tratamentos específicos dos dependentes do cigarro eletrônico. Por isso, o procedimento é igual ao usuário do cigarro tradicional, através de medicações para controle da abstinência quando indicado e orientações sobre a necessidade de mudanças comportamentais. "A melhor alternativa para tratar é procurar um profissional capacitado e traçar uma estratégia para promover a cessação", diz o médico.
O Programa Nacional de Controle do Tabagismo implementado no Brasil oferece tratamento nas unidades de Saúde do SUS, e é composto de elementos cognitivos e comportamentais, além de ajuda medicamentosa quando necessário.