RETROCESSO

Na contramão do mundo, PEC das drogas deve aumentar encarceramento, diz criminalista

Diferentemente do que pregou Rodrigo Pacheco, presidente do Senado e autor da proposta, Sérgio de Souza alerta que PEC vai resultar em aumento das prisões de usuários e da criminalização da pobreza

Marcha da Maconha em São Paulo.Créditos: Paulo Pinto/Agência Brasil
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Advogado criminalista com atuação na execução penal, Sérgio Augusto de Souza afirma que a aprovação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 45/2023, a chamada PEC das Drogas, é um grande retrocesso e coloca o Brasil na contramão do mundo, que busca formas alternativas de tratar dependentes químicos e, principalmente, agir diante do uso recreativo de substâncias como a maconha.

"Retrocesso é o termo mais adequado; na contramão do resto do mundo, essa medida é problemática e pode contribuir para um aumento no encarceramento, em vez de abordar efetivamente as questões subjacentes ao uso de drogas", afirmou em entrevista à Fórum.

Souza afirma que, diferentemente do que prega o bolsonarismo - aliado a setores conservadores da sociedade - a proposta passa longe de combater o crime organizado, que lucra com o tráfico de drogas.

"Isso recai sobre usuários, pessoas muitas vezes adoecidas pela dependência química e também o que se chama hoje de usuário recreativo, que muito se assemelha aos consumidores de drogas lícitas como o álcool e tabaco. Não é sobre o dono do avião que transporta drogas ou da fazenda servindo como pista de pouso", diz.

Membro do Núcleo Intercomissões de Inspeção a Unidades Prisionais Comissão de Direitos Humanos OAB-SP, o advogado ainda contraria a posição do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD), autor da proposta, que após a aprovação fez "a ressalva da impossibilidade da privação da liberdade do porte para uso; ou seja, o usuário não será, jamais, penalizado com o encarceramento".

"Com o advento de uma lei criminalizando toda e qualquer quantidade, o usuário pode certamente do dia para a noite, entre um trago e outro, se tornar réu em um dos ritos processuais mais injustos em vigor no Brasil. As testemunhas de acusação são os autores da prisão. A possibilidade de conseguir autorização do juiz do processo para um laudo de constatação de dependência química é muito pequena. E caso consiga, passará meses aguardando por um perito, já que o sistema não possui agentes suficientes para a demanda. E, claro, permanecerá preso provisório, já que em nome da garantia da ordem pública a maioria das pessoas processadas seguem presas até a sentença."

Souza ainda critica o real motivo da votação da PEC: uma "questão política" de uma parcela dos parlamentares contra o Supremo Tribunal Federal (STF), que busca regulamentar a posse da maconha. 

Em julgamento que ocorre desde 2015 na corte, cinco dos 11 ministros votaram em favor da descriminalização de uma quantidade mínima de maconha: Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Rosa Weber. Três votaram contra: Kássio Nunes Marques, André Mendonça e Cristiano Zanin. Ainda faltam três votos. A medida, no entanto, só precisa de mais um para garantir a maioria e pode voltar a qualquer momento à pauta.

O advogado, no entanto, critica a falta de embate de parlamentares governistas para fazer frente ao conservadorismo no Senado, que aprovou a proposta por 53 votos a 9, com a maioria da ala progressista se abstendo da votação.

"O governo federal, por sua vez, se vê em cima do muro, não assume o embate e defesa de bandeiras históricas de defesa de direitos humanos e evita rusgas com setores mais à direita que compartilham posições em outros campos, como a economia, por exemplo", diz.

Leia a entrevista na íntegra

FÓRUM: Como você vê a aprovação pelo Senado da PEC que criminaliza o porte de drogas? 
Sérgio de Souza: Retrocesso é o termo mais adequado; na contramão do resto do mundo, essa medida é problemática e pode contribuir para um aumento no encarceramento, em vez de abordar efetivamente as questões subjacentes ao uso de drogas.

Em primeiro lugar, ela trata a problemática com enfoque na repressão em detrimento de políticas públicas de tratamento. Não podemos esquecer que a natureza da PEC é criminalizar "qualquer quantidade". Não é de longe um ataque aos grupos com organização sofisticada, estrutura e divisão de tarefas dedicadas ao tráfico. Isso recai sobre usuários, pessoas muitas vezes adoecidas pela dependência química e também o que se chama hoje de usuário recreativo, que muito se assemelha aos consumidores de drogas lícitas como o álcool e tabaco. Não é sobre o dono do avião que transporta drogas ou da fazenda servindo como pista de pouso.

Criminalizar o porte de drogas é uma abordagem pautada na punição, em vez de focar na prevenção do uso problemático de drogas e na oferta de tratamento para dependentes químicos. Isso desvia recursos e atenção que poderiam ser direcionados para políticas mais eficazes de redução de danos e reabilitação.

FÓRUM: Como essa PEC deve impactar no sistema penitenciário?
Sérgio de Souza: O reflexo é certo. A criminalização do porte de drogas inevitavelmente leva ao aumento no número de indivíduos encarcerados por esse motivo. A sobrecarga de um sistema prisional, com notórios problemas e reconhecido estado de coisas inconstitucional no sistema carcerário com acentuada violação de direitos fundamentais. Dados do IBGE e DEPEN apontam para 30% da população carcerária brasileira (a terceira maior população mundial) presa pela aplicação da legislação de drogas no país. Em pesquisa de seu doutorado pela USP, o juiz Marcelo Semer aferiu que 50% dos encarcerados pela aplicação da lei de drogas, foram presos pelo porte de porção menor que 100g de maconha ou 50g de cocaína. Em outro estudo necessário, a tese de doutorado do juiz Luís Carlos Valois, também pela USP, lançada como livro, dentre outros pontos, traça, historicamente o fracasso de políticas antidrogas policialescas que custam um alto preço pago com recursos financeiros e vidas. Além disso, revela o descaso com a saúde pública, a mesma que se diz defendida por tais políticas.

FÓRUM: E para o usuário que for flagrado com droga, o que muda?
Sérgio de Souza: Na prática, a atual lei de drogas oferece à polícia a possibilidade de interpretar quem é traficante e quem é usuário. Ou seja, pessoas mais abastadas possuem mais condição de portar drogas para consumo enquanto pessoas pobres portam drogas apenas para venda. De forma muito grosseira, é assim que funciona o sistema. Notória criminalização da pobreza, já presenciei decisões judiciais que converteram a prisão em flagrante em prisão preventiva, o fundamento? A pessoa presa portando drogas não comprovou trabalho lícito, sendo isso um sinal de dedicação ao crime. Decisão mantida pelo Tribunal de Justiça Estadual e por medida de justiça derrubada pelo STJ. 

Com o advento de uma lei criminalizando toda e qualquer quantidade, o usuário pode certamente do dia para a noite, entre um trago e outro, se tornar réu em um dos ritos processuais mais injustos em vigor no Brasil. As testemunhas de acusação são os autores da prisão. A possibilidade de conseguir autorização do juiz do processo para um laudo de constatação de dependência química é muito pequena. E caso consiga, passará meses aguardando por um perito, já que o sistema não possui agentes suficientes para a demanda. E claro, permanecerá preso provisório, já que em nome da garantia da ordem pública a maioria das pessoas processadas seguem presas até a sentença.

FÓRUM: A aprovação da PEC foi uma forma da ultradireita bolsonarista medir forças com o STF, que busca descriminalizar o porte de maconha. Como você vê esse embate? Em sua opinião, o que deve prevalecer?
Sérgio de Souza: Sem dúvida alguma, trata-se de uma questão política como pano de fundo. Temos um poder legislativo majoritariamente alinhado à ultradireita e adepto do populismo penal. Por meio de duas medidas relacionadas à política criminal, cito: o fim da saída temporária e criminalização de toda e qualquer quantidade de drogas, como uma forma de enfraquecer o atual governo nesse campo polêmico.

O governo federal, por sua vez, se vê em cima do muro, não assume o embate e defesa de bandeiras históricas de defesa de direitos humanos e evita rusgas com setores mais à direita que compartilham posições em outros campos, como a economia, por exemplo. Entre sacrificar reforma tributária e direitos humanos, há uma opção clara. Tanto que o governo não articulou qualquer reação no jogo legislativo para impedir (fim da saidinha e criminalização da posse de drogas) ou mesmo destruir tais projetos no congresso.

De outro lado, temos o poder judiciário, e nesse caso o STF. A PEC é sem dúvida queda de braço entre esses poderes. E isso já vem se desenhando desde a intervenção do legislativo na limitação de decisões monocráticas dos ministros da corte.

Entretanto, deve prevalecer a regra constitucional. O STF é o guardião da CF. É do Supremo a competência para o controle concentrado de constitucionalidade de leis que violam as regras da nossa carta de direitos. E nesse ponto temos mais longos episódios dessa história já que tudo depende muito de como julga cada ministro.