CLEBER LOURENÇO

Vídeo da Marinha escancara tensões internas e revela legado golpista da era Bolsonaro

Produção institucional da Marinha busca mobilizar tropa, mas evidencia riscos de indisciplina e ameaça à democracia brasileira

Jair Bolsonaro e Braga Netto com o almirante Almir Garnier no Rio de Janeiro.Créditos: Isac Nóbrega/PR
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A divulgação de um vídeo institucional pela Marinha do Brasil, que compara a rotina militar com a vida civil, trouxe à tona uma série de preocupações graves sobre o papel das Forças Armadas no atual momento democrático do país. A coluna apurou que internamente a avaliação é de que o material foi bem-sucedido em enviar a mensagem de que os oficiais da força estão com a tropa, o que, por si só, revela um cenário preocupante.

O objetivo declarado do vídeo, de mobilizar e exaltar a carreira militar entre oficiais, suboficiais e graduados, não apenas reflete uma tentativa de reforçar o controle interno da tropa, mas também escancara o legado de instabilidade deixado pelo governo de Jair Bolsonaro. Durante os quatro anos de sua gestão, o ex-presidente trabalhou ativamente para provocar rupturas dentro das Forças Armadas, fomentando tensões entre suboficiais, graduados e altos oficiais. Essa estratégia resultou em um ambiente de desconfiança e riscos crescentes de quebra de hierarquia, algo que, à época, já preocupava a cúpula militar.

Recentemente a coluna revelou também que suboficiais do exército brasileiro já estariam se mobilizando contra os ajustes e acusando os oficiais de que estariam manobrando para que os praças fossem “sacrificados” durante o processo. Aparentemente a Marinha busca evitar esse mesmo desgaste com a tropa.

As investigações da Polícia Federal indicam que parte do alto comando das Forças Armadas resistiu à adesão completa ao golpe planejado por Bolsonaro justamente por temer as consequências de uma ruptura definitiva na hierarquia militar. O risco de que uma adesão massiva ao golpe pudesse abrir caminho para uma indisciplina generalizada era real, e isso explica em parte a relutância de alguns oficiais em embarcar no projeto autoritário do ex-presidente. Agora, o vídeo da Marinha tenta claramente responder a essas tensões, buscando aproximar o comando das patentes inferiores e reforçar a unidade interna.

No entanto, essa estratégia também é, ironicamente, um convite à desordem que tenta evitar. O fato de a Marinha ter considerado necessário produzir um material voltado exclusivamente para agradar ao público interno expõe não apenas as fragilidades da hierarquia, mas também a persistência de uma narrativa autoritária dentro das Forças Armadas. A mensagem do vídeo, ao exaltar os militares e reforçar a percepção de uma superioridade sobre a sociedade civil, alimenta a ideia de que o Brasil deve permanecer sob tutela militar, colocando em xeque os valores democráticos.

Essa mentalidade autoritária não é nova, mas sua permanência em pleno 2024 é um sinal claro de que as Forças Armadas ainda resistem a assumir um papel subordinado à sociedade civil, conforme determina a Constituição. Mais preocupante ainda é que, enquanto esse tipo de material busca pacificar internamente a tropa, ele reforça uma cultura de ameaça velada à democracia, criando condições para futuros episódios de baderna institucional e indisciplina.

O governo Lula enfrenta um desafio complexo. Ignorar episódios como este seria repetir os erros do passado, quando faltou firmeza para lidar com ações das Forças Armadas que afrontam os preceitos democráticos. Em governos anteriores, episódios de indisciplina e subversão da ordem militar não foram devidamente punidos, criando um ambiente permissivo que abriu espaço para a escalada de tensões vistas nos últimos anos.

Agora, o governo precisa agir de forma clara e contundente para desmantelar essa cultura de autorreferência e ameaça. O silêncio ou a omissão apenas reforçam a percepção de que os militares podem testar os limites sem consequências. Além disso, a decisão de produzir um vídeo que prioriza exclusivamente o público interno é uma demonstração explícita de que as Forças Armadas continuam flertando com uma ruptura institucional.

O vídeo da Marinha não é apenas um material simbólico. Ele é a expressão de um problema estrutural dentro das Forças Armadas, que ainda não compreenderam seu papel em uma democracia consolidada. Sem uma resposta firme, episódios como esse continuarão a minar a confiança da sociedade civil no compromisso das Forças Armadas com a ordem constitucional e a democracia.

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