ARAPONGAGEM

Entenda o que é a Abin, órgão envolvido em espionagem ilegal de Bolsonaro

Agência monitorou criminosamente celulares de adversários políticos. Criada para realizar serviço de inteligência, a Abin acabou realizando funções como na Ditadura Militar sob comando do clã Bolsonaro

Abin foi chefiada por Ramagem entre 2019 e 2022, e era subordinada ao GSI de Augusto Heleno.Créditos: Reprodução/Casa Civil/Abin
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A Polícia Federal cumpriu mandados de busca e apreensão, nesta segunda-feira (29), pela Operação Vigilância Aproximada, que investiga a formação de uma organização criminosa que estabeleceu uma estrutura paralela na Agência Brasileira de Inteligência (Abin). 

Centro das apurações policiais, a Abin teria monitorado, de forma ilegal, autoridades públicas e outras pessoas, utilizando ferramentas de geolocalização de dispositivos móveis sem a devida autorização judicial. 

O software israelense FirstMile foi usado cerca de 30 mil vezes em alvos, como os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes e Gilmar Mendes. A Agência adquiriu o sistema por R$ 5,8 milhões, com dispensa de licitação, em dezembro de 2018, pouco antes da posse de Jair Bolsonaro (PL), com uso previsto até maio de 2021.

O uso indevido do órgão teria ocorrido durante chefia do deputado federal e ex-diretor, Alexandre Ramagem (PL-RJ), alvo de operação da PF na última quinta-feira (25). O bolsonarista ocupou a diretoria geral da Abin entre julho de 2019 e março de 2022, durante a gestão do ex-presidente Bolsonaro.

O que é a Abin

A Abin foi criada pela Lei nº 9.883/1999, no segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, com a finalidade de fornecer subsídios ao Presidente da República nos assuntos de interesse nacional. A agência substituiu o Sistema Nacional de Informação (SNI), instituído nos primeiros meses da ditadura militar no Brasil, em 1964.

Conforme a legislação, junto da criação da Abin, também foi implementado o Sistema Brasileiro de Inteligência (SBI), cujos fundamentos resumem-se na preservação da soberania nacional, na defesa do Estado Democrático de Direito e na dignidade da pessoa humana.

A agência de inteligência integra o SBI, bem como o Gabinete de Segurança Institucional (GSI), os departamentos de inteligência da Polícia Federal (PF) e da Polícia Rodoviária Federal (PRF), departamentos do Ministério da Defesa e centros de inteligência das Forças Armadas – Aeronáutica, Exército e Marinha.

A Abin é o órgão central do SBI, com as responsabilidades de "planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência" do Brasil. Os demais órgãos integrantes do sistema fornecem à Abin "dados e conhecimentos específicos relacionados com a defesa das instituições e dos interesses nacionais".

Entre as funções da Abin, destacam-se:

  • Planejar e executar ações para obter e analisar dados para a produção de conhecimentos destinados a assessorar o Presidente da República;
  • Planejar e executar a proteção de conhecimentos de interesse à segurança do Estado e da sociedade;
  • Avaliar as ameaças, internas e externas, à ordem constitucional; e
  • Realizar estudos e pesquisas para o exercício e aprimoramento da atividade de inteligência.

A Abin é supervisionada por órgãos com a competência de controle e fiscalização externos da atividade de inteligência: os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, e os presidentes das Comissões de Relações Exteriores e Defesa Nacional do Conselho de Governo e do Senado.

A direção-geral é selecionada e nomeada pelo Presidente da República, e em seguida, passa por aprovação no Senado Federal. Até abril de 2023, a Abin estava subordinada ao GSI, órgão com status de ministério cuja atribuição é de segurança de assuntos associados à Presidência da República. 

Após os ataques golpistas às sedes dos Três Poderes do 8 de janeiro, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) transferiu a Abin para o Ministério da Casa Civil.

"No entanto, a partir de 2019, já no governo de Jair Bolsonaro, a Abin, então dirigida pelo policial federal Alexandre Ramagem, subordinado ao ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, passou a utilizar, prioritariamente, de uma estratégia mais 'informal' para a difusão de informações: grupos de WhatsApp, em que eram difundidos 'alertas'", exemplifica o relatório da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) dos Atos Golpistas.

Relação com o bolsonarismo

No primeiro dia do mandato, o então presidente Jair Bolsonaro assinou a Medida Provisória (MP) nº 870, que atribuía à Secretaria de Governo – chefiada pelo general Santos Cruz– a responsabilidade de “supervisionar, coordenar, monitorar e acompanhar as atividades e ações dos organismos internacionais e das organizações não governamentais no território nacional".

Conforme o relatório da CPMI dos Atos Golpistas, entre janeiro de 2019 a novembro de 2020, pelo menos 15 agentes da Abin foram deslocados para ministérios, onde "identificavam servidores não alinhados ao bolsonarismo e recomendavam a sua exoneração ou remoção".

"Segundo depoimentos de integrantes da própria Agência, a ideia seria instalar, em cada órgão, assessorias semelhantes à Comissão Geral de Investigação (CGI), estrutura de inteligência que alimentava o Serviço Nacional de Informações (SNI) no período militar", diz o relatório.

O aparelhamento da Abin pela família Bolsonaro foi mencionado pela primeira vez em dezembro de 2019, durante depoimento da ex-deputada federal Joice Hasselmann à CPI das Fake News. Na ocasião, Joice sustentou-se numa informação interna comunicada pelo ex-ministro do governo bolsonarista, Gustavo Bebianno.

"Inclusive, ele me deu uma informação [...] de que houve uma tentativa no início, que o Carlos tentou montar uma Abin paralela para que houvesse grampo de celular, dossiês feitos, e isso teria causado um atrito [entre Carlos e Bebianno]", relatou Joice.

Em seguida, a relatora, a deputada federa Lídice da Mata (PSB-BA) descreveu a estrutura como "uma agência de informação sobre pessoas do País, algo absolutamente inconstitucional, ilegal e criminoso, um grampo, o que é também uma atividade criminosa".

O filho 02,o vereador Carlos Bolsonaro (PL), teria montado um serviço de informação próprio no Palácio do Planalto, operante dentro da Abin, para investigar a vida de adversários políticos do governo em atuação. Carlos, inclusive, teria indicado o então delegado federal, Alexandre Ramagem para a direção do órgão, com o compromisso de criação desta estrutura paralela com o auxílio de policiais federais de sua confiança.

Em reunião ministerial de abril de 2020, o então presidente Jair Bolsonaro mostrou-se descontente com a resistência de aparelhamento e de uso político da Abin: "Sistemas de informações: o meu particular funciona. Os que tem oficialmente, desinforma. E voltando ao tema: prefiro não ter informação do que ser desinformado por sistema de informações que eu tenho".

"Eu não vou esperar f**** a minha família toda, de sacanagem, ou amigos meu, porque eu não posso trocar alguém da segurança na ponta da linha que pertence a estrutura nossa. Vai trocar! Se não puder trocar, troca o chefe dele! Não pode trocar o chefe dele? Troca o ministro! E ponto final! Não estamos aqui pra brincadeira."

Em outubro de 2021, o STF decidiu, por unanimidade, que a Abin não pode requisitar informações aos órgãos governamentais para atender a interesses pessoais ou privados, limitando-se somente às funções institucionais. Para o Supremo, os órgãos do SBI têm a permissão de fornecer dados e conhecimentos específicos à Abin somente quando comprovado interesse público do pedido, sob aprovação do Judiciário.

 A decisão se deu em resposta ao Decreto nº 10.445/2020, assinado por Bolsonaro, que permitia a ampliação dos serviços da agência, ao liberar a necessidade de justificativas "republicanamente aferíveis".

No seu voto, a ministra Rosa Weber criticou o uso da agência para o que definiu como "abuso da máquina estatal para atendimento de objetivos pessoais", a exemplo da atuação da Abin na produção de dois relatórios para Flávio Bolsonaro (PL-RJ), com o objetivo de colaborar no pedido de anulação no inquérito das rachadinhas, protagonizado pelo filho 01 e Fabrício Queiroz.

"O abuso da máquina estatal para atendimento de objetivos pessoais, mais ainda quando sejam criminosos como são os que se voltam a obter dados sobre pessoas para impor-lhes restrições inconstitucionais, agressões ilícitas, medos e exposição de imagem, é atitude ditatorial, em contraste com o Estado Democrático de Direito".

"Inteligência é atividade sensível e grave do Estado. 'Arapongagem' não é direito, é crime. Praticado pelo Estado é ilícito gravíssimo. O agente que adotar prática de solicitação e obtenção de dados e conhecimentos específicos sobre quem quer que seja fora dos estritos limites da legalidade comete crime", declarou a ministra.

 O STF declarou que o fornecimento de dados e informações à Abin deveriam ocorrer mediante procedimento formalmente instaurado e existência de sistemas eletrônicos de segurança e registro de acesso. O não cumprimento destas exigências poderia acarretar na responsabilização em caso de eventual omissão, desvio ou abuso.

Em novembro de 2021, o Tribunal de Contas da União (TCU) suspendeu a licitação da compra do sistema de espionagem israelense Pegasus, voltada para o hackeamento de telefones celulares. O sistema teria sido usado para espionar diplomatas, militares, chefes de Estado, e governos de 34 países.

De acordo com o relatório da CPMI dos Atos Golpistas, o processo foi autuado pelo TCU em decorrência de denúncia e representações acerca de possível interferência, por parte de Carlos Bolsonaro, em compras de ferramentas tecnológicas, com o objetivo de aparelhar estruturas de inteligência no Ministério da Justiça e na Polícia Federal.

Em 2022, a Abin abriu procedimento de investigação interna para investigar a regularidade da utilização das tecnologias da SunTech S.A.,  do conglomerado israelense Verint Systems, hoje intitulado Cognyte Technologies – desenvolvedora do FirstMile.

"Todos esses fatos reforçam a tese de que o governo Bolsonaro pretendia, e em vários momentos conseguiu, instrumentalizar a Abin para seu projeto particular de poder", conclui o documento.