GOLPISMO

Almirante Garnier e o naufrágio da fragata golpista de Bolsonaro

Delação de Mauro Cid provocou um rombo nas ambições de golpe de Bolsonaro, que tentou cooptar a cúpula das Forças Armadas com minuta entregue por figura caricata e burlesca doutrinada por Olavo de Carvalho

Créditos: Foto: Divulgação/Palácio do Planalto
Escrito en POLÍTICA el

O acordo de delação premiada firmado pelo tenente-coronel Mauro Cid causou um rombo no casco da fragata golpista colocada em curso por Jair Bolsonaro (PL) após a derrota para Lula nas eleições presidenciais de 30 de outubro passado.

Vazadas a conta-gotas nas últimas semanas, a divulgação nesta quinta-feira (21) de novas informações reveladas por Cid à Polícia Federal (PF) causou verdadeiro tsunami na cúpula das Forças Armadas. E asfixiou principalmente o ex-comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier Santos.

LEIA TAMBÉM: 
Almirante Garnier: veia golpista e mamatas do militar que pôs tropas à disposição de golpe de Bolsonaro
Quem é Filipe Martins, extremista que teria levado a minuta do golpe a Bolsonaro

Segundo Cid, Garnier teria embarcado prontamente na tramoia golpista proposta por Jair Bolsonaro em reunião secreta com os comandantes das Forças Armadas.

Servil ao ex-presidente, a quem devia favores, o marinheiro teria colocado a tropa à disposição do golpe, cobiçando surfar no mesmo enredo do vice-almirante Augusto Rademaker, que, juntamente com o general Costa e Silva e o tenente-brigadeiro Correia de Melo, compôs a tríade que decretou o Ato Institucional nº 1 em 9 de abril de 1964.

O golpe só não foi adiante pelo silêncio do tenente-brigadeiro do ar Carlos de Almeida Baptista Junior – que nas redes e em entrevistas nunca disfarçou seu apreço pelo presidente fascista. E, principalmente, pela pronta reação do general Marco Antônio Freire Gomes, então comandante do Exército.

“Se o senhor for em frente com isso, serei obrigado a prendê-lo”, teria dito, segundo Cid, Freire Gomes, que foi pressionado e, por fim, considerado um general "melancia" – verde por fora e vermelho por dentro – pela horda bolsonarista.

A negativa e a reprimenda, que causaram o naufrágio do golpe, deram-se porque o general sabia que os comandantes do Sul (Fernando Soares), do Sudeste (Thomaz Paiva), do Leste (André Novaes) e do Nordeste (Richard Nunes) não apoiariam quaisquer aventuras golpistas de Bolsonaro. 

Além disso, Freire Gomes estaria ciente de que um golpe dado por Bolsonaro não teria apoio dos Estados Unidos de Joe Biden, tanto de militares quanto de civis. Seis comitivas estadunidenses já teriam vindo ao Brasil em 2022 para dar esse recado a Bolsonaro e às Forças Armadas.

Olavismo e a obsessão por prender Moraes

Na delação à PF, Cid deu detalhes que ainda não vieram a público – e que irão inundar ainda mais as investigações que sufocam Bolsonaro, civis e militares golpistas. 

O que se sabe é que, enquanto fazia cena nas raras aparições públicas, Bolsonaro tramava nos porões do Alvorada um plano para perpetuação no poder em conluio com figuras que ascenderam das trevas fascistas durante sua ascensão ao Planalto.

Na reunião com a cúpula militar, Bolsonaro teria apresentado uma minuta golpista recebida das mãos de Filipe Martins, então assessor especial para Assuntos Internacionais da Presidência. A ideia era testar a receptividade do golpe na cúpula militar.

Figura prepotente e burlesca, cunhada nas teorias da conspiração de Olavo de Carvalho, Martins teria entregado o documento Bolsonaro acompanhado de um advogado e de um padre.

A minuta, segundo Cid, sugeria a convocação de novas eleições e autorizava o governo a prender adversários, entre eles Lula e o ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral.

A PF investiga se se trata do mesmo documento encontrado na busca e apreensão em endereço do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, que previa ainda a formação de uma junta, composta majoritariamente por militares, para realizar uma intervenção na Justiça Federal.

Segundo depoimento anterior de Cid, em março deste ano, a prisão de Moraes era uma obsessão para Bolsonaro. Em meio às diversas consultas sobre propostas para tentar reverter o resultado das eleições, o ex-presidente teria falado abertamente sobre seu desejo de prender o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

"Os próprios generais falavam: 'presidente, isso aqui é golpe militar; se a gente fizer qualquer coisa, é golpe militar'", relatou Cid, afirmando que os militares explicavam detalhadamente a Bolsonaro as consequências da incitação golpista.

"O STF vai dar uma ordem anulando o decreto do senhor e mandando prender o senhor, e o Congresso duas semanas depois vai aprovar uma PEC emergencial tirando o 142 da Constituição, e aí, qual o papel que a gente vai cumprir? Quem tiver força. Então, é golpe militar", alertaram os fardados.

Braga Netto e o estudo golpista

Antes de ser levada para apreciação da cúpula das Forças Armadas, a trama golpista de Jair Bolsonaro envolveu dois de seus principais aliados na caserna.

No dia 14 de novembro, o ex-presidente recebeu em agenda secreta no Palácio da Alvorada os generais Walter Braga Netto, candidato a vice em sua chapa, e Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, então ministro da Defesa.

Dois dias após o encontro, Mauro Cid confirma ter solicitado ao tenente-coronel Marcelino Haddad um artigo científico apresentado à Escola de Comando e Estado-Maior do Exército, em 2017, sobre o "poder moderador das Forças Armadas", tese encampada por Bolsonaro e seus aliados para uma "intervenção militar", que desencadearia um golpe de Estado.

O estudo afirma que, "em situações de não normalidade, caracterizada pela intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal, ou pela decretação do estado de defesa ou do estado de sítio", seria possível "enquadramento no texto constitucional, e o emprego das Forças Armadas seria regulado a partir de um decreto presidencial (legalidade)".

"Essas possibilidades são as apontadas pela doutrina majoritária como sendo o emprego da FA [Forças Armadas] em GPC [Garantia dos Poderes Constitucionais]”, conclui o texto, usando a mesma interpretação lunática do jurista Ives Gandra Martins, propagada em grupos bolsonaristas, sobre o artigo 142 da Constituição Federal para justificar uma "intervenção militar" – amplamente rechaçada no mundo jurídico.

Na ativa, Haddad (o tenente-coronel) atualmente é comandante do Centro de Preparação de Oficiais da Reserva do Rio de Janeiro, principal celeiro do golpismo militar no Brasil.

Ele já sabia

Sócio de Eduardo Bolsonaro (PL-SP) na Braz Global Holding, empresa criada em maio do ano passado em Arlington, no Texas, Paulo Generoso antecipou pela rede X (antigo Twitter) o encontro entre Bolsonaro e a cúpula das Forças Armadas, revelado em delação premiada pelo tenente-coronel Mauro Cid.

Em sequência de tuítes publicados no dia 20 de dezembro de 2022, Generoso confirma que, "em reunião esta semana com o alto comando das Forças Armadas, Bolsonaro pediu apoio para barrar o avanço do judiciário sobre os outros poderes e pediu para que a posse de Lula fosse adiada por 6 meses, até que equipe de juristas fizesse uma investigação sobre favorecimento à (sic) Lula".

Em seguida, o sócio de Eduardo Bolsonaro faz menção a uma resistência do então comandante do Exército, o general Marco Antônio Freire Gomes, que vinha sendo pressionado pela horda bolsonarista a apoiar a tentativa de golpe.

"Freire Gomes foi contra [o apoio ao golpe de Bolsonaro] e disse que não valia a pena ter 20 anos de problemas por 20 dias de glória e falou que não apoiaria ou atenderia o chamado do presidente para moderar a situação mesmo após Bolsonaro apresentar vários indícios de parcialidade em favor de Lula pelo TSE e STF", escreveu Generoso.

Atitudes isoladas

Atuando como porta-voz das Forças Armadas, o ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, comemorou as informações reveladas por Cid e trazidas à tona. 

Buscando blindar a alta cúpula a todo custo, Múcio encontrou na delação de Cid amparo à sua tese de que o golpe não foi levado adiante justamente por oposição das Forças Armadas.

"Devemos ao Exército, à Marinha e à Aeronáutica a manutenção da nossa democracia. A aura de suspeição coletiva nos incomoda, mas as informações que saíram hoje são relativas a comandantes passados. Não mexe com ninguém que está na ativa. Ficamos sempre torcendo que essas coisas tenham fim, é ruim trabalhar num manto de suspeição. Quem não tem nada a ver com isso se sente incomodado. De uma coisa tenho certeza cristalina: o golpe não interessou em momento nenhum às Forças Armadas. São atitudes isoladas”, declarou.

A "certeza cristalina" do ministro de Lula, no entanto, não transparece quais tampouco quantas "atitudes isoladas" marcharam no plano golpista de Bolsonaro.

Considerada pela Marinha um "navio-escolta" para situações de conflitos, a fragata do almirante Garnier naufragou com a delação de Mauro Cid. Mas ainda resta saber quantos militares embarcaram na armada golpista ao lado de Jair Bolsonaro.