A voz da gravação telefônica que no final do último mês de maio afastou o juiz Eduardo Appio da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba - e consequentemente dos processos da Operação Lava Jato – não é de Appio. A suspeita que seu afastamento teria sido armado pela chamada ‘República de Curitiba’ agora tem base científica.
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É o que diz o laudo assinado pelo professor Pablo Arantes, coordenador do Laboratório de Fonética da Universidade Federal de São Carlos (SP), e obtido pela Revista Fórum.
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“Com base nas análises técnicas realizadas e na minha experiência profissional como doutor na área de linguística, especialista na área de fonética, pesquisador na área de fonética forense e autor de diversos artigos e outras publicações na área, afirmo que o nível 0 seria o adequado para o caso, não se podendo corroborar, nem contradizer a hipótese de mesma origem para as vozes”, diz o trecho que conclui o parecer. A análise comparou a gravação enviada ao TRF-4 com gravações coletadas diretamente do juiz Appio.
O parecer entra no contexto de uma nova petição protocolada pelo escritório Warde Advogados, que faz a defesa de Appio, e pede a “imediata reintegração à condição de Juiz titularda 13ª Vara Federal de Curitiba”.
“O peticionário (Eduardo Appio) não promoveu a referida ligação telefônica a João Eduardo Barreto Malucelli. Frise-se: o peticionário, com veemência, consigna que não realizou o diálogo que lhe é imputado através da realização de uma apressada perícia que desrespeitou a cadeia de custódia. Os celulares através dos quais foram realizados os supostos diálogos sequer foram aprendidos ou periciados. Ademais, a violação à cadeia de custódia assume proporções particularmente graves quando se sabe que o Excelentíssimo Senhor Senador Sérgio Fernando Moro reconheceu, explicitamente, ao passo que, também consonante fato notório, que o Exceletíssimo Senhor Senador possui relações estreitas com João Eduardo Barreto Malucelli”, diz trecho da petição.
O afastamento de Appio
Appio foi afastado em 22 de maio (segunda-feira) da 13ª Vara da Justiça Federal de Curitiba pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) após uma investigação apontar que ele teria acessado um processo em nome do filho do desembargador Marcelo Malucelli, e telefonado para ele. Naquele momento já havia controvérsias sobre a autenticidade do áudio atribuído ao juiz.
No dia seguinte ao seu afastamento, a juíza Gabriela Hardt foi nomeada para assumir a função. O desembargador Marcelo Malucelli, que também foi afastado da operação, assinou a decisão. O próprio Marcelo Malucelli se declarou suspeito para analisar casos da Lava Jato. Ele é o mesmo desembargador que mandou prender Tacla Duran, o advogado que denunciou Moro e Dallagnol como artífices de um esquema de extorsão contra investigados pela operação.
“Ante a ocorrência de circunstâncias posteriores à data em que assumi os processos oriundos da presente operação, em trâmite junto ao Juízo Federal da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR e que se relacionam com a integridade física e moral de membros da minha família, declaro minha suspeição superveniente, por motivo de foro íntimo, para atuar neste e em todos os demais processos relacionados por prevenção, a partir desta data”, afirmou Malucelli, em decisão na qual declarou-se suspeito para julgar processos da Lava Jato.
Além disso, é pai do advogado João Eduardo Malucelli - a quem Appio supostamente teria telefonado. João Eduardo integra, como sócio, a Wolff & Moro Sociedade de Advogados, escritório de advocacia do ex-juiz e sua esposa, a deputada federal Rosângela Moro (União Brasil-SP). Também é “genro” de Moro. Ele namora a filha do ex-juiz com Rosângela, a jovem Júlia Wolff Moro, que tem 22 anos.
No mecanismo do afastamento, o TRF-4 esclareceu que Appio estaria de férias desde o último dia 20 de maio e Gabriela Hardt já atuava como titular da vara substituindo-o. Com o afastamento de Appio, e caso tal condição seja mantida, Hardt permaneceria nas funções. O afastamento de Appio tem sido muito criticado no meio jurídico.
A juíza paranaense de 48 anos é nascida em São Mateus do Sul, a aproximadamente 150 quilômetros da capital Curitiba. Nomeada juíza em 2009, dez anos depois substituiria o ex-juiz Sérgio Moro na Operação Lava Jato após sua posse como Ministro da Justiça de Bolsonaro, em 2019. No mesmo ano foi ela quem condenou o presidente Lula (PT) no caso do sítio em Atibaia.
"Afastar o juiz de sua jurisdição por um ato que, ao que tudo indica, não tenha gravidade suficiente para tal, é um abuso inominável. É o judiciário desdenhando do judiciário. É lamentável que essa discussão sobre o poder da ainda existente Lava Jato, pois essa decisão demonstra claramente que a Lava Jato ainda está viva, possa de certa forma fazer as pessoas duvidarem da seriedade do poder judiciário. Absolutamente lamentável", avaliou o advogado Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.
O parecer técnico
O professor Pablo Arantes explica no seu parecer que coletou as amostras de falas do juiz Eduardo Appio a partir de uma audiência de custódia presidida pelo mesmo e gravada em vídeo. Já a amostra questionada, ou seja, aquela da ligação para João Eduardo Barreto Malucelli, foi coletada diretamente do vídeo utilizado para afastar o juiz das suas funções. Segundo o parecer, João Eduardo teria recebido a ligação, colocado-a em viva voz e gravado a conversa em vídeo a partir de um terceiro celular. Ambas foram utilizadas pelo o TRF-4, o que para o especialista teria sido um erro.
“Não se faz nenhuma consideração em relação às diferenças de qualidade técnica e à incongruência estilística que existem entre as duas amostras e as consequências disso para a realização de diferentes exames nos materiais”, aponta o parecer que buscou “testar a hipótese segundo a qual a voz padrão e a voz questionada têm a mesma origem, isto é, que a voz do Juiz e Presidente da Audiência de Custódia registrada no material padrão é a mesma que fala na chamada feita ao portador do celular no vídeo que compõe o material questionado”.
Ao longo do parecer, Arantes vai comentando cada característica da comparação entre as duas vozes. Sobre ambas as vozes serem de homens adultos, como apontou o TRF-4, não há sombra de dúvidas. No entanto, já questiona a falta de critérios utilizada no item seguinte: de que ambos os áudios seriam de falantes do Sul do Brasil. Também em relação ao que tecnicamente chamou de “convergência prosódica”, ou seja, entonação, ritmo e acento, é possível encontrar semelhanças entre as amostras mas ainda faltam maiores elementos que apontem se tratar da mesma pessoa.
A seguir explica a importância da taxa de elocução – que mede o tempo de pronúncia de sílabas, palavras e seus hiatos – na comparação entre duas amostras de áudio como as supracitadas. De acordo com Arantes, esse é o quesito mais particular, como se fosse uma impressão digital da voz humana, e resiste até mesmo a eventuais sotaques e variações geográficas e sociais do idioma. Além de questionar a falta de exposição dos critérios adotados no afastamento de Appio, ele aponta: “a evidência relatada neste item não pode ter peso relevante a favor ou contra a hipótese de que as amostras têm a mesma origem”.
Já na análise acústica, o especialista apontou no seu parecer que a própria origem das amostras pode causar uma confusão e aproximá-las. “É possível concluir que a simples presença de instâncias de vozeamento não modal nas amostras não tem um poder evidenciário especialmente importante, uma vez que é um fenômeno prevalente na língua”, finaliza.
Já na conclusão do parecer, Arantes explica que a escala usada para comparar amostras de voz como as desse caso irá variar em 9 pontos, começando em -4, passando por 0, e chegando a +4. O índice +4 apontaria uma semelhança total entre as amostras, enquanto o índice -4 apontaria vozes completamente diferentes. De acordo como seu laudo, que deu a ‘nota 0’ para a comparação das amostras, o resultado é inconclusivo. Ou seja, não há como comprovar, a partir da suposta ligação, que João Eduardo Malucelli realmente tenha recebido o telefonema de Appio.
"Considerando todo o exposto anteriormente, avalio que o teor do que é apresentado no Laudo não justifica a atribuição do nível +3 consignado em sua seção IV. Levando em conta todos os argumentos trazidos ao longo do presente parecer, meu melhor juízo é que os resultados relatados no Laudo são mais compatíveis com a atribuição do nível 0 na escala adotada, que equivale à descrição verbal 'o resultado nem corrobora nem contradiz a hipótese'. Aa razões para essa conclusão são a inespecificidade e baixo poder discriminatório das características linguísticas identificadas e analisadas no Laudo", escreveu Arantes em trecho que concluiu seu parecer.
Confira trechos da petição
"A análise do expert na área de fonética forense é enfática no sentido de que, corroborando sua declaração, não se pode imputar ao Peticionário a autoria da ligação telefônica na medida em que, in verbis: (1) “(...) o uso de escalas qualitativas ‘dá margem à subjetividade, em particular quando se pesa e combina os resultados da análise de diversos parâmetros’”; (2) “(...) o texto do Laudo não explicita nem justifica em nenhum momento o grau de relevância atribuído a cada exame apresentado na seção III.4, tanto os de natureza perceptiva quanto acústica (...); (3) “(...) o teor do que é apresentado no Laudo não justifica a atribuição do nível +3 (...)”; (4) “(...) os resultados relatados no Laudo são mais compatíveis com a atribuição do nível 0 na escala adotada, que equivale à descrição verbal ‘o resultado nem corrobora nem contradiz a hipótese’”
"Nesses termos, na medida em que os elementos de convicção ora apresentados corroboram a irrefutável conclusão de que Corte Especial Administrativa da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região é incapaz de conferir as garantias mínimas ao Peticionário, bem como de que o elemento de prova ali constante é imprestável, reafirmamos os pedidos deduzidos nas petições datadas de 26.05.2023 e de 29.05.2023", quais sejam:
(a) Diante do dano irreparável e da flagrante violação às garantias processuais e materiais relativas à inamovibilidade no exercício da jurisdição, a imediata suspensão, por Vossa Excelência, da decisão administrativa cautelar da Corte Especial Administrativa da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região que afastou o Peticionário, determinando-se, consequentemente, sua reintegração à condição de Juiz titular da 13ª Vara Federal de Curitiba/PR,
submetendo-a, ato contínuo, à referendo do Plenário desse E. CNJ. (b) A formulação de representação, por parte de Vossa Excelência, no sentido da avocação dos expedientes disciplinares, no estado em que se encontram, em face do Peticionário na Corte Especial Administrativa da Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região, autuando-se a presente petição como pedido de providências ou qualquer outra classe processual que permita o seu pleno exame".