Para além dos inúmeros processos judiciais de que é alvo, Jair Bolsonaro, ainda que esteja vivendo desde o final de dezembro de 2022 nos Estados Unidos, enfrentará nos próximos dias e meses investigações no Brasil daquele que já é considerado um dos casos mais emblemáticos de seu governo: o escândalo das joias.
Desde o dia 3 de março, quando foi publicada a primeira reportagem sobre o tema, o assunto tem pautado a imprensa brasileira, as discussões políticas no Congresso Nacional e já é alvo de apuração de diferentes órgãos.
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Não à toa. O caso soa escandaloso desde o princípio. Em outubro de 2021, logo após uma visita oficial de Bolsonaro e sua comitiva à Arábia Saudita, o então ministro de Minas e Energia, Bento Albuquerque, tentou fazer entrar ilegalmente no Brasil, por intermédio de um assessor, um conjunto de joias avaliado em R$ 16,5 milhões dado pela ditadura do Oriente Médio como “presente” ao Estado brasileiro. As peças - um colar, um anel, um relógio e um par de brincos, todos feitos com diamantes, da grife Chopard - estavam escondidas na mala do ministro e seriam destinadas, segundo o próprio, à ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro.
O tesouro árabe, entretanto, foi apreendido pela Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos, em São Paulo, pois o portador das peças, Bento Albuquerque, não as declarou ao fisco e nem mesmo seguiu os trâmites legais para que as joias milionárias fossem incorporadas ao acervo da Presidência da República, como manda a lei.
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A legislação prevê que itens com valor superior a US$ 1 mil estão sujeitos à tributação no ingresso ao território nacional. No caso das joias que não foram declaradas por Bento Albuquerque, além do pagamento de 50% em impostos pelo valor dos bens, seria cobrada multa de 25% pela tentativa de entrada ilegal no país.
Tanto Bolsonaro, que a princípio disse que “não sabia” do “presente”, como o ex-ministro agora alegam que o conjunto de peças com diamantes seria incorporado ao acervo da Presidência da República. Seja como for, em qualquer cenário há ilegalidade. Se os itens fossem destinados ao Estado brasileiro, bastaria Albuquerque cumprir os trâmites legais que as joias entrariam no país sem nenhum problema. Se o objetivo era incorporá-las ao acervo pessoal de Bolsonaro, poderia tratar-se de tentativa de roubo, já que não é permitido a um presidente se apropriar de presentes dados por autoridades de outro país com esse valor — isso sem falar na tentativa de burlar os protocolos da Receita Federal ao não declarar as joias para que elas não fossem tributadas.
Prova de que o objetivo de Bolsonaro era mesmo ficar com as peças milionárias em caráter pessoal é o fato de que o ex-presidente mobilizou diferentes setores do governo para tentar reaver o conjunto com a Receita, enviando ministro e assessores e se utilizando da estrutura do Estado e “carteiradas” para recuperar os itens. Toda essa mobilização foi confirmada por documentos da Presidência e registrada em vídeo, sendo que a última tentativa ocorreu em 29 de dezembro de 2022, exatamente um dia antes de Bolsonaro “fugir” para os EUA, quando Jairo Moreira da Silva, um sargento da Marinha que era ajudante de ordem do ex-presidente, foi pessoalmente à Receita Federal no Aeroporto de Guarulhos, indicando que o ex-mandatário pretendia levar as peças consigo em sua viagem ao país da América do Norte. O “roubo” das peças só não teve sucesso devido à resistência de servidores da Receita, que seguiram a lei.
Bolsonaro se apropriou de outras joias
Na mesma viagem em que o governo saudita deu à comitiva de Bolsonaro as joias que foram apreendidas pela Receita Federal, as autoridades do país árabe presentearam o ex-presidente com um segundo conjunto de peças de luxo milionárias, composto por relógio (de R$ 223 mil), abotoaduras, caneta, anel e uma espécie de rosário.
Este segundo estojo entrou no Brasil de forma ilegal por intermédio de Bento Albuquerque, que, ao contrário de seu assessor, não foi pego pela Receita Federal chegando ao país com as peças não declaradas.
Albuquerque passou um ano com o estojo valioso mantido sob sua posse — e sem ser declarado — no Ministério de Minas e Energia e, somente em novembro de 2022, isto é, um mês antes de Bolsonaro deixar o país, entregou o pequeno tesouro ao então mandatário no Palácio da Alvorada, conforme mostra um recibo da Presidência da República.
O próprio Bolsonaro chegou a admitir, em entrevista já após o escândalo ser revelado, que incorporou o segundo estojo árabe ao seu “acervo pessoal”, sob a alegação de que trata-se de um presente “personalíssimo”.
Ao jornalista Miguel do Rosário, da Fórum, no entanto, uma fonte do Tribunal de Contas da União (TCU) disse que a chance de o órgão considerar a apropriação pessoal do presente como algo legal é “zero”. Um acórdão da Corte escrito, inclusive, por um dos ministros mais bolsonaristas, Walton Alencar Rodrigues, menciona uma situação hipotética em que um presidente receberia, de outro país, uma joia de “valor inestimável”. Segundo esse ministro, não seria "razoável", num caso deste, incorporar tal patrimônio ao acervo privado do presidente da República.
A tese da propina e possível CPI
Em vídeo publicado nas redes sociais, o ministro-chefe da Secretaria de Comunicação (Secom) da Presidência, Paulo Pimenta, sinalizou que os cerca de R$ 16,5 milhões em joias que teriam como destino a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro podem ser fruto de "propina" sobre a privatização da refinaria Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, que pertencia à Petrobrás e foi vendida ao fundo árabe Mubadala Capital pouco mais de uma semana após Jair Bolsonaro voltar de um giro pelo Oriente Médio.
"Jair, Michelle e seus apoiadores mais próximos tentaram de todas as maneiras que uma propina de R$ 16,5 milhões em diamantes ficasse com a família. Na hora que o governo estava negociando a venda de uma grande refinaria para o mundo árabe apareceu esse presente. Joias, diamantes, que deveriam ser do Estado brasileiro", afirma Pimenta.
A data da viagem de Bolsonaro e a tentativa de fazer as joias entrarem ilegalmente no Brasil coincidem com a venda da Refinaria Landulpho Alves (Rlam) para a Mubadala Capital, fundo soberano de Abu Dhabi, nos Emirados Árabes. A venda foi efetuada em novembro de 2021, isto é, menos de um mês após o encontro de Bolsonaro com os árabes, por US$ 1,8 bilhão (algo em torno de R$ 10,1 bilhões na época). Na ocasião, o Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (Ineep) calculou que a refinaria foi vendida pela metade de seu valor de mercado — ela valia entre US$ 3 bilhões e US$ 4 bilhões.
Diante da "coincidência", a Federação Única dos Petroleiros (FUP) ajuizou junto ao Ministério Público Federal (MPF) uma representação para que a possível relação entre o caso das joias milionárias dadas pela Arábia Saudita ao Brasil — e de que Bolsonaro tentou se apossar de maneira ilegal — e a venda da refinaria ao fundo árabe seja investigada.
Na representação, a FUP pondera que o "presente" ao governo brasileiro foi dado pela Arábia Saudita, e não pelos Emirados Árabes, país do fundo que comprou a refinaria, mas chama a atenção para o fato de que o próprio Bolsonaro, ao falar sobre as joias, disse que o presente "foi acertado lá nos Emirados Árabes".
Segundo os petroleiros, "há de se ressaltar a proximidade geográfica e a aliança estratégica entre os dois países".
A tese de que as joias seriam, na verdade, propina do governo saudita a Bolsonaro motivou, inclusive, a apresentação de um requerimento para a criação de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na Câmara dos Deputados com o objetivo de investigar o caso. A iniciativa é encabeçada por Rogério Correia (PT-MG) e Túlio Gadêlha (Rede-PE).
“Existem indícios suficientes para desconfiarmos que o que o ex-presidente Bolsonaro chama de 'presente' seja, na verdade, propina numa relação internacional promíscua entre as nações que favoreceu a venda da refinaria Landulpho Alves por menos da metade do preço de mercado. É um escracho e precisamos investigar”, disse Rogério Correia à Fórum.
Investigações
A partir de ofício do ministro da Justiça, Flávio Dino, a Polícia Federal abriu inquérito para investigar o caso das joias na última segunda-feira (6). A apuração, que está em segredo de Justiça, terá prazo inicial de 30 dias para conclusão, com possibilidade de prorrogação caso seja necessário. Nesse período, os envolvidos com o escândalo, incluindo Bento Albuquerque e Jair Bolsonaro, devem ser convocados para depor.
Segundo Dino, a tentativa de fazer chegar de maneira ilegal ao Brasil as joias milionárias dadas pelo governo da Arábia Saudita pode "configurar os crimes de descaminho, peculato e lavagem de dinheiro, entre outros possíveis delitos”.
"Os indícios iniciais permitem-nos concluir pela necessidade de uma melhor apuração, conforme determinado pelo Exmo. Ministro da Justiça, mormente por existir a possibilidade da prática de eventuais crimes contra a administração pública, cometidos em detrimento de bens, interesse ou serviço da União, nos termo do art. 144, § 1º da Constituição Federal", diz o despacho da Corregedoria-Geral da PF publicado no mesmo dia em que Dino solicitou a investigação.
O Ministério Público Federal (MPF), por sua vez, recebeu denúncia da Receita Federal, pediu mais informações sobre o caso e também abriu um procedimento investigatório que, assim como o inquérito da PF, seguirá sob sigilo. O caso também está sob a mira do TCU.
Outra frente de investigação se dará no Senado Federal, por meio da Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor (CTFC), presidida por Omar Aziz (PSD-AM). O órgão se debruçará na tentativa de estabelecer uma possível relação entre as joias milionárias e a venda da Refinaria Landulpho Alves (Rlam), na Bahia, para o grupo Mubadala Capital.
“Como presidente da comissão CTFC, vou abrir investigação no Senado sobre a venda refinaria da Petrobras Landulpho Alves, na Bahia, para o fundo árabe Mubadala Capital. Qualquer violação ao interesse da União, relação com a tentativa de descaminho de joias, ou qualquer ato que tenha gerado vantagens a autoridades nessa venda, será levado à Justiça para punição dos envolvidos. O primeiro passo da comissão será pedir documentos da Petrobras sobre a avaliação de preço abaixo do valor de mercado do ativo brasileiro para os estrangeiros”, anunciou Aziz.
O que pode acontecer com Bolsonaro
O jornalista Julinho Bittencourt, da Fórum, conversou com juristas sobre o caso das joias para saber o que pode acontecer com Bolsonaro após as investigações.
De acordo com o Fernando Hideo Lacerda, advogado do Grupo Prerrogativas e mestre em Direito Processual Penal pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), “os fatos que vieram à tona, desde o ingresso no país com as joias escondidas até as tentativas de reaver as joias apreendidas sem pagamento de multa, prevalecendo-se da condição de agentes públicos, são gravíssimos”.
O jurista diz que as ocorrências “podem caracterizar os crimes de peculato (pena de prisão de 2 a 12 anos), descaminho (pena de prisão de 1 a 4 anos), lavagem de dinheiro (pena de prisão de 3 a 10 anos) e associação criminosa (pena de prisão de 1 a 3 anos)”.
“A Polícia Federal conduzirá investigação para apurar os fatos que, uma vez comprovados, deverão resultar na condenação criminal dos envolvidos, com possível pena privativa de liberdade”, afirma Hideo.
Já o advogado Marco Aurélio Carvalho, também do Grupo Prerrogativas, ressalta que a prisão “não é pra já”. Ele afirma que “Bolsonaro tem, como qualquer cidadão, o direito a um processo legal”.
“O que a gente defende como Grupo Prerrogativas, como advogados do campo progressista, é a aplicação do devido processo legal. É um Direito que possa assegurar as garantias individuais e coletivas para todo e qualquer brasileiro, de toda e qualquer coloração partidária”, destaca.
“Mas o caso é grave, é extremamente grave, requer investigações rigorosas. Isso mostra que, realmente, ele sempre confundiu o público com o privado, sempre utilizou a máquina pública estatal a benefício próprio, e isso ninguém tem dúvida”, emenda.
Carvalho diz, ainda, que não é caso de prisão para agora porque não há nenhuma dificuldade, nenhum obstáculo à instrução criminal, ou seja, a investigação pode transcorrer sem maiores dificuldades. “A princípio, ele não tem como interferir, pois está fora da Presidência, tá fora do Brasil, então não estão configuradas as hipóteses para uma prisão, digamos, de natureza cautelar”, pontua.
O jurista ressalta, entretanto, que Bolsonaro foi “um presidente que capturou as instituições, instrumentalizou nosso sistema de Justiça a serviço de interesses políticos e eleitorais e que acreditou que ia ficar impune. A punição dele deverá ser fortemente pedagógica e, em hipótese nenhuma, revanchista”, assevera.