OPINIÃO

O Brasil, o Oscar e a reconstrução democrática – Por Álvaro Quintão

O Oscar de Ainda Estou Aqui reafirma a memória e a resistência democrática do Brasil

Fernanda Torres como Eunice Paiva no filme 'Ainda Estou Aqui'.Créditos: Divulgação
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O reconhecimento do filme Ainda Estou Aqui com o Oscar de Melhor Filme Internacional marca um ponto de virada para o cinema brasileiro e reverbera muito além das telas. Não é apenas uma consagração artística; é um manifesto político, um resgate histórico e um lembrete incômodo da importância de preservarmos nossa memória coletiva. A vitória do longa-metragem dirigido por Walter Salles carrega um simbolismo potente, especialmente considerando o momento que vivemos, em que ainda sentimos as cinzas de uma tentativa de golpe contra as instituições democráticas.

Ainda Estou Aqui não é apenas um drama bem executado, mas um testemunho cinematográfico sobre a resistência contra a barbárie. O filme reconstrói a história de Eunice Paiva, mulher que sofreu uma das mais brutais violências da ditadura militar brasileira, com a prisão e o desaparecimento de seu marido, Rubens Paiva. Fernanda Torres, numa interpretação visceral, captura a essência dessa luta, dando corpo e voz a uma geração de viúvas, filhos e irmãos que nunca receberam uma resposta sobre seus entes queridos.

A memória histórica do Brasil sempre foi um campo de batalha, e este Oscar surge como uma resposta contundente à tentativa de apagamento de nossa própria trajetória. Em um país onde a extrema direita investe em narrativas revisionistas, glorificando torturadores e relativizando crimes de Estado, um filme como Ainda Estou Aqui se impõe como um ato de resistência. Mais do que um troféu dourado, a conquista representa a reafirmação de que a arte ainda é uma ferramenta essencial na luta contra o autoritarismo e o esquecimento.

O Oscar vem, paradoxalmente, num momento de renovação democrática e reconstrução institucional. O Brasil ainda está digerindo os ataques de 8 de janeiro de 2023, quando hordas de extremistas, inconformados com a derrota eleitoral de seu líder, invadiram as sedes dos Três Poderes em Brasília. A cena grotesca de um país sendo golpeado por aqueles que se autoproclamam patriotas escancarou o que muitos insistiam em ignorar: a democracia é frágil e precisa ser defendida diariamente. A resposta das instituições foi firme, e as condenações demonstram que a justiça ainda tem força. No entanto, a própria existência desse levante antidemocrático sinaliza que o trabalho está longe de terminado.

O triunfo de Ainda Estou Aqui coloca o Brasil de volta no cenário cinematográfico internacional, mas também reposiciona nossa história na centralidade do debate global sobre direitos humanos e justiça histórica. Ao valorizar um filme que denuncia os horrores de uma ditadura, a Academia de Hollywood envia um recado contundente contra o autoritarismo, num mundo em que movimentos ultraconservadores crescem em diversas nações. E se esse recado é captado no exterior, ele precisa ser ecoado ainda mais dentro de nossas fronteiras.

A extrema direita brasileira nunca esteve tão organizada e barulhenta, utilizando-se da desinformação para distorcer a realidade e propagar um discurso de vitimismo e perseguição. O ataque constante à imprensa, à cultura e à educação não é aleatório: trata-se de uma tentativa de domínio narrativo. Se não houver quem conte a história real, abre-se espaço para que a mentira se solidifique como verdade. O Brasil é um país onde a cultura nunca recebeu o valor que merece, e a ascensão de governos de extrema direita apenas agravou esse descaso. No entanto, a vitória de Ainda Estou Aqui prova que a arte, quando bem conduzida, rompe silêncios e fronteiras.

Num momento de recuperação, esse prêmio também resgata a dignidade do cinema nacional, que sofreu duros golpes nos últimos anos, com cortes de financiamento, censura velada e perseguição ideológica. O reconhecimento internacional deveria, agora, impulsionar um renascimento do setor, fortalecendo políticas de incentivo e assegurando que mais histórias relevantes possam ser contadas. Se não quisermos ser reféns de um ciclo de destruição e reconstrução intermitente, é essencial que o setor audiovisual seja tratado como estratégico para a identidade e soberania nacional.

No fim das contas, o Oscar é só um prêmio, mas seu significado transcende a estatueta dourada. Ele é um sintoma de que nossa história não pode ser soterrada pelo descaso ou pelo revisionismo. Ele reafirma que, apesar das tentativas de silenciamento, ainda estamos aqui: criando, lembrando, denunciando e, acima de tudo, resistindo.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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