FALTA COERÊNCIA

A hipocrisia das mulheres que defendem a submissão feminina

Direitos conquistados pelo feminismo garantem até mesmo o direito de criticá-lo; uma mulher que se coloca contra esses avanços deveria abrir mão deles

Escrito em Opinião el
Jornalista que atua em Brasília desde 1995, tem experiência em redação, em comunicação corporativa e comunicação pública, em assessoria de imprensa, em produção de conteúdo, campanha política e em coordenação de equipes. Atuou, entre outros locais, no Governo Federal, na Presidência da República e no Ministério da Justiça; no Governo do Distrito Federal, na Secretaria de Comunicação e na Secretaria de Segurança Pública; e no Congresso Nacional, na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC) da Câmara dos Deputados e na Comissão Mista de Planos, Orçamentos Públicos e Fiscalização (CMO).
A hipocrisia das mulheres que defendem a submissão feminina
A hipocrisia das mulheres que defendem a submissão feminina. Direitos conquistados pelo feminismo garantem até mesmo o direito de criticá-lo; uma mulher que se coloca contra esses avanços deveria abrir mão deles.. Canva

Em plena celebração do Dia Internacional das Mulheres, no último sábado (8), um vídeo do Frei Gilson viralizou nas redes sociais ao defender a submissão das mulheres aos homens. O religioso afirmou que nós fomos criadas para sermos "auxiliares dos homens" e que deveríamos abrir mão de poder e autonomia. 

O discurso gerou indignação entre ativistas e internautas e inflamou o repetitivo, mas fundamental, debate sobre o papel das mulheres na sociedade e o peso da religião na manutenção de valores patriarcais.

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Porém, o que me causa perplexidade não é o discurso de um fundamentalista religioso conservador de extrema direita, mas sim o fato de que muitas mulheres compartilham dessa visão. 

Mulheres que defendem sua própria submissão e que combatem o feminismo parecem ignorar que apenas graças à luta feminista podem hoje expressar suas opiniões livremente, ter uma conta bancária, votar e até mesmo se divorciar. Se fossem coerentes com seu discurso, deveriam abrir mão de todos esses direitos.

Os direitos femininos que o feminismo conquistou

A submissão feminina já foi uma regra incontestável ao longo da história. No entanto, nós, mulheres, temos lutado por décadas para garantir direitos básicos e avançar na conquista da equidade de gênero. No Brasil, graça às nossas lutas, diversas leis e marcos legais foram fundamentais para assegurar esses direitos.

Direito ao voto e participação política

  • 1932 – Decreto nº 21.076: O Código Eleitoral garantiu às mulheres brasileiras o direito ao voto, permitindo que participassem das eleições.
     
  • 1945 – Constituição de 1946: O voto feminino passou a ser obrigatório, equiparando-se ao voto masculino.
     
  • 1997 – Lei nº 9.504: Estabeleceu cotas mínimas de 30% para candidaturas femininas nas eleições proporcionais.
     
  • 2021 – Emenda Constitucional nº 117: Tornou permanente o financiamento público de campanhas para candidaturas femininas, incentivando a maior presença de mulheres na política.

Independência financeira e jurídica

  • 1962 – Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121): Revogou a necessidade de autorização do marido para que mulheres casadas pudessem trabalhar, abrir contas bancárias e administrar seus próprios bens.
     
  • 1977 – Lei do Divórcio (Lei nº 6.515): Garantiu às mulheres o direito de se divorciarem sem precisar de autorização do cônjuge.
     
  • 1988 – Constituição Federal: Instituiu a igualdade de direitos entre homens e mulheres em todos os aspectos civis, sociais e trabalhistas.

Direitos trabalhistas

  • 1943 – Consolidação das Leis do Trabalho (CLT – Decreto-Lei nº 5.452): Regulamentou o trabalho feminino e proibiu condições de trabalho degradantes.
     
  • 1973 – Convenção nº 100 da OIT (ratificada pelo Brasil em 1957): Determinou a igualdade salarial entre homens e mulheres que exercessem a mesma função.
     
  • 1988 – Constituição Federal: Incluiu a proibição da discriminação de gênero no mercado de trabalho.
     
  • 2013 – Lei das Domésticas (Emenda Constitucional nº 72): Igualou os direitos das trabalhadoras domésticas aos dos demais trabalhadores, garantindo carteira assinada, jornada de trabalho regulada e benefícios trabalhistas.

Direitos reprodutivos e combate à violência

  • 2006 – Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340): Criou mecanismos para proteger as mulheres contra a violência doméstica e familiar.
     
  • 2015 – Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104): Tornou o assassinato de mulheres por razões de gênero um crime hediondo.
     
  • 2018 – Lei de Importunação Sexual (Lei nº 13.718): Criminalizou o assédio sexual em transportes públicos e locais públicos.
     
  • 2023 – Lei da Violência Psicológica (Lei nº 14.188): Passou a considerar a violência psicológica contra a mulher um crime com pena de reclusão.

Educação e representatividade

  • 1979 – Fim da proibição da entrada de mulheres em algumas carreiras militares: Mulheres passaram a ser aceitas na Escola de Formação de Oficiais da Marinha.
     
  • 1988 – Constituição Federal: Estabeleceu a igualdade de acesso à educação para homens e mulheres.
     
  • 2015 – Lei de Incentivo à Representação Feminina na Ciência (Lei nº 13.243): Criou programas de estímulo à participação feminina na ciência e tecnologia.

Essas conquistas são frutos de décadas de luta feminista e transformaram a vida de milhões de mulheres no Brasil, promovendo maior igualdade de oportunidades e direitos. 

Se o feminismo nunca tivesse existido, as mulheres ainda dependeriam de maridos ou pais para cada decisão de suas vidas. É exatamente essa independência que permite, paradoxalmente, que algumas mulheres defendam a própria submissão.

Por que a ideia da submissão feminina não faz sentido?

A defesa da submissão feminina não resiste a qualquer argumento racional, social ou científico. Essa visão medieval do mundo vai contra os direitos humanos e a igualdade de gênero. 

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU estabelece que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, independentemente de gênero. O princípio da igualdade de gênero está presente na Constituição Federal do Brasil, que garante direitos iguais para homens e mulheres.

A ideia de que a mulher nasceu para ser submissa ao homem é um conceito socialmente construído, não uma regra biológica. Homens e mulheres têm as mesmas capacidades intelectuais e emocionais, e qualquer limitação imposta é resultado da cultura e não da natureza.

Em sociedades que ainda impõem a submissão feminina, os índices de violência doméstica e abusos são alarmantes. Mulheres que dependem financeiramente de seus parceiros ficam vulneráveis a relacionamentos abusivos e sem alternativas para se libertar.

Se a submissão feminina fosse levada a sério, as mulheres perderiam o direito de estudar, votar, trabalhar e decidir sobre suas próprias vidas. Mulheres que defendem esse discurso, ironicamente, só podem expressá-lo porque o feminismo garantiu esse direito a elas.

A ideia de que o homem deve ser o "chefe do lar" impõe a ele uma pressão social desnecessária, reforçando estereótipos de masculinidade tóxica. Relações baseadas na igualdade são mais saudáveis e equilibradas, promovendo respeito e parceria entre os gêneros.

Embora algumas interpretações religiosas preguem a submissão feminina, muitas vertentes do cristianismo, do islamismo e do judaísmo defendem relações baseadas no respeito e na cooperação mútua. O próprio conceito de amor e respeito mútuo, presente em diversas religiões, é incompatível com a dominação de um gênero sobre o outro.

A submissão feminina é uma ideia ultrapassada que contradiz todas as conquistas sociais das últimas décads. Mais do que isso, é um discurso que apenas beneficia aqueles que querem manter as mulheres sob controle, privando-as de oportunidades e autonomia.

Mulheres que defendem esse discurso deveriam se perguntar: estariam dispostas a abrir mão de seu direito ao voto, de sua liberdade financeira e de sua autonomia sobre o próprio corpo? Estariam dispostas a rasgar seus títulos de eleitor, fechar suas contas bancárias e depender exclusivamente da permissão masculina para viver?

A resposta, provavelmente, seria um sonoro não. E esse é o maior argumento contra a submissão feminina: na prática, ninguém quer abrir mão da própria liberdade.

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