FALTA COERÊNCIA

A hipocrisia das mulheres que defendem a submissão feminina

Direitos conquistados pelo feminismo garantem até mesmo o direito de criticá-lo; uma mulher que se coloca contra esses avanços deveria abrir mão deles

A hipocrisia das mulheres que defendem a submissão feminina.Direitos conquistados pelo feminismo garantem até mesmo o direito de criticá-lo; uma mulher que se coloca contra esses avanços deveria abrir mão deles.Créditos: Canva
Escrito en OPINIÃO el

Em plena celebração do Dia Internacional das Mulheres, no último sábado (8), um vídeo do Frei Gilson viralizou nas redes sociais ao defender a submissão das mulheres aos homens. O religioso afirmou que nós fomos criadas para sermos "auxiliares dos homens" e que deveríamos abrir mão de poder e autonomia. 

O discurso gerou indignação entre ativistas e internautas e inflamou o repetitivo, mas fundamental, debate sobre o papel das mulheres na sociedade e o peso da religião na manutenção de valores patriarcais.

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Porém, o que me causa perplexidade não é o discurso de um fundamentalista religioso conservador de extrema direita, mas sim o fato de que muitas mulheres compartilham dessa visão. 

Mulheres que defendem sua própria submissão e que combatem o feminismo parecem ignorar que apenas graças à luta feminista podem hoje expressar suas opiniões livremente, ter uma conta bancária, votar e até mesmo se divorciar. Se fossem coerentes com seu discurso, deveriam abrir mão de todos esses direitos.

Os direitos femininos que o feminismo conquistou

A submissão feminina já foi uma regra incontestável ao longo da história. No entanto, nós, mulheres, temos lutado por décadas para garantir direitos básicos e avançar na conquista da equidade de gênero. No Brasil, graça às nossas lutas, diversas leis e marcos legais foram fundamentais para assegurar esses direitos.

Direito ao voto e participação política

  • 1932 – Decreto nº 21.076: O Código Eleitoral garantiu às mulheres brasileiras o direito ao voto, permitindo que participassem das eleições.
     
  • 1945 – Constituição de 1946: O voto feminino passou a ser obrigatório, equiparando-se ao voto masculino.
     
  • 1997 – Lei nº 9.504: Estabeleceu cotas mínimas de 30% para candidaturas femininas nas eleições proporcionais.
     
  • 2021 – Emenda Constitucional nº 117: Tornou permanente o financiamento público de campanhas para candidaturas femininas, incentivando a maior presença de mulheres na política.

Independência financeira e jurídica

  • 1962 – Estatuto da Mulher Casada (Lei nº 4.121): Revogou a necessidade de autorização do marido para que mulheres casadas pudessem trabalhar, abrir contas bancárias e administrar seus próprios bens.
     
  • 1977 – Lei do Divórcio (Lei nº 6.515): Garantiu às mulheres o direito de se divorciarem sem precisar de autorização do cônjuge.
     
  • 1988 – Constituição Federal: Instituiu a igualdade de direitos entre homens e mulheres em todos os aspectos civis, sociais e trabalhistas.

Direitos trabalhistas

  • 1943 – Consolidação das Leis do Trabalho (CLT – Decreto-Lei nº 5.452): Regulamentou o trabalho feminino e proibiu condições de trabalho degradantes.
     
  • 1973 – Convenção nº 100 da OIT (ratificada pelo Brasil em 1957): Determinou a igualdade salarial entre homens e mulheres que exercessem a mesma função.
     
  • 1988 – Constituição Federal: Incluiu a proibição da discriminação de gênero no mercado de trabalho.
     
  • 2013 – Lei das Domésticas (Emenda Constitucional nº 72): Igualou os direitos das trabalhadoras domésticas aos dos demais trabalhadores, garantindo carteira assinada, jornada de trabalho regulada e benefícios trabalhistas.

Direitos reprodutivos e combate à violência

  • 2006 – Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340): Criou mecanismos para proteger as mulheres contra a violência doméstica e familiar.
     
  • 2015 – Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104): Tornou o assassinato de mulheres por razões de gênero um crime hediondo.
     
  • 2018 – Lei de Importunação Sexual (Lei nº 13.718): Criminalizou o assédio sexual em transportes públicos e locais públicos.
     
  • 2023 – Lei da Violência Psicológica (Lei nº 14.188): Passou a considerar a violência psicológica contra a mulher um crime com pena de reclusão.

Educação e representatividade

  • 1979 – Fim da proibição da entrada de mulheres em algumas carreiras militares: Mulheres passaram a ser aceitas na Escola de Formação de Oficiais da Marinha.
     
  • 1988 – Constituição Federal: Estabeleceu a igualdade de acesso à educação para homens e mulheres.
     
  • 2015 – Lei de Incentivo à Representação Feminina na Ciência (Lei nº 13.243): Criou programas de estímulo à participação feminina na ciência e tecnologia.

Essas conquistas são frutos de décadas de luta feminista e transformaram a vida de milhões de mulheres no Brasil, promovendo maior igualdade de oportunidades e direitos. 

Se o feminismo nunca tivesse existido, as mulheres ainda dependeriam de maridos ou pais para cada decisão de suas vidas. É exatamente essa independência que permite, paradoxalmente, que algumas mulheres defendam a própria submissão.

Por que a ideia da submissão feminina não faz sentido?

A defesa da submissão feminina não resiste a qualquer argumento racional, social ou científico. Essa visão medieval do mundo vai contra os direitos humanos e a igualdade de gênero. 

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU estabelece que todas as pessoas nascem livres e iguais em dignidade e direitos, independentemente de gênero. O princípio da igualdade de gênero está presente na Constituição Federal do Brasil, que garante direitos iguais para homens e mulheres.

A ideia de que a mulher nasceu para ser submissa ao homem é um conceito socialmente construído, não uma regra biológica. Homens e mulheres têm as mesmas capacidades intelectuais e emocionais, e qualquer limitação imposta é resultado da cultura e não da natureza.

Em sociedades que ainda impõem a submissão feminina, os índices de violência doméstica e abusos são alarmantes. Mulheres que dependem financeiramente de seus parceiros ficam vulneráveis a relacionamentos abusivos e sem alternativas para se libertar.

Se a submissão feminina fosse levada a sério, as mulheres perderiam o direito de estudar, votar, trabalhar e decidir sobre suas próprias vidas. Mulheres que defendem esse discurso, ironicamente, só podem expressá-lo porque o feminismo garantiu esse direito a elas.

A ideia de que o homem deve ser o "chefe do lar" impõe a ele uma pressão social desnecessária, reforçando estereótipos de masculinidade tóxica. Relações baseadas na igualdade são mais saudáveis e equilibradas, promovendo respeito e parceria entre os gêneros.

Embora algumas interpretações religiosas preguem a submissão feminina, muitas vertentes do cristianismo, do islamismo e do judaísmo defendem relações baseadas no respeito e na cooperação mútua. O próprio conceito de amor e respeito mútuo, presente em diversas religiões, é incompatível com a dominação de um gênero sobre o outro.

A submissão feminina é uma ideia ultrapassada que contradiz todas as conquistas sociais das últimas décads. Mais do que isso, é um discurso que apenas beneficia aqueles que querem manter as mulheres sob controle, privando-as de oportunidades e autonomia.

Mulheres que defendem esse discurso deveriam se perguntar: estariam dispostas a abrir mão de seu direito ao voto, de sua liberdade financeira e de sua autonomia sobre o próprio corpo? Estariam dispostas a rasgar seus títulos de eleitor, fechar suas contas bancárias e depender exclusivamente da permissão masculina para viver?

A resposta, provavelmente, seria um sonoro não. E esse é o maior argumento contra a submissão feminina: na prática, ninguém quer abrir mão da própria liberdade.

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