Você possivelmente já cruzou com a frase de Marilyn Frye que diz que a cultura heterossexual masculina é “homoafetiva”. De acordo com a filósofa estadunidense, “tudo ou quase tudo que é próprio do amor, a maioria dos homens héteros reserva exclusivamente para outros homens”. Para eles, ela argumenta, as mulheres seriam apenas amuleto para relações sexuais.
A frase, extraída do livro de Frye, Políticas da Realidade (1983), de tempos em tempos volta a repercutir na internet em tom de ‘desmascaramento’ das relações entre homens: ‘pegamos vocês no pulo, seus homoafetivos!’
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No ano passado, encontrou até mesmo em Leandro Karnal um de seus porta-vozes. Na ocasião, o historiador aproveitou para complementar o raciocínio de Frye, dizendo que, se por um lado os homens héteros eram “homoafetivos” — com o que ele concorda —, homens gays seriam, por sua vez, heteroafetivos, dada a proximidade entre gays e mulheres heterossexuais.
Mas de lá para cá, não tardou. Nesta semana, novamente, a frase voltou a ecoar, sendo citada por Milly Lacombe em entrevista à Revista TPM e mencionada por Vanessa Barbara no podcast da Rádio Novelo. No relato de assédio que Barbara descreve ter sofrido do ex-marido André Conti, ela também dispara: “a masculinidade tóxica é homoafetiva”. Está em 52 minutos e 18 segundos para quem quiser ouvir.
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Em todos esses exemplos, a frase foi praticamente citada ipsis litteris da formulação feita por Frye. Mas a facilidade com que virou uma frase de efeito — dizendo que homens heterossexuais são, no fundo, “homoafetivos” —- é proporcional à falta de compromisso com o que implica caracterizar como “homoafetividade” uma aliança tão perniciosa como a que homens mantêm entre si no patriarcado.
Alto lá
De acordo com Michel Foucault, em entrevista à revista francesa Gai Pied (1981), a homoafetividade é um modo de vida e não exatamente uma orientação sexual. A homossexualidade, indissociável da homoafetividade, segundo ele, tem muito pouco a ver com quem você vai para a cama. “Imaginar um ato sexual que não esteja conforme a lei ou a natureza, não é isso que inquieta as pessoas. Mas que indivíduos comecem a se amar, aí está o problema”, diz.
Para o filósofo, enquanto postura e não identidade, a homoafetividade seria justamente a ausência de definição: “um jogo em aberto” que, ao contrário da heterossexualidade e toda sua carga institucional (monogamia, família, filhos etc.), não instituiu, na história, um modelo compulsório sobre os indivíduos. Daí, inclusive, a dificuldade de homossexuais se enxergarem na velhice.
Não havendo um “modelo homoafetivo” imposto historicamente por instituições e práticas convencionais, somos levados, apesar da angústia, a criar novas formas de ética. É essa criatividade não programada que interessa a Foucault ao falar de homoafetividade como “abertura”.
Ao contrário da heteronormatividade, assim, a homoafetividade não faz uma imagem do próprio futuro. Como crava Lee Edelman em No Future, o futuro é mesmo heterossexual. Ao não contar com um ideal operatório de futuro — mesmo que indivíduos homossexuais, claro, também se casem e tenham filhos —, as relações homoafetivas ganham em flexibilidade e autonomia, inserindo-se no que poderíamos chamar de temporalidade queer. “A homossexualidade é uma ocasião histórica de reabrir virtualidades relacionais e afetivas”, define o filósofo francês.
História
Nessa mesma entrevista, ao fazer uma análise histórica da sexualidade, Foucault reconhece também uma diferença na socialização entre homens e mulheres. Ao contrário destas, que desde sempre tiveram acesso ao corpo umas das outras (abraçar, segurar pela cintura, andar de braços dados na rua etc.), os homens só começaram a ter acesso ao corpo um do outro de forma mais recorrente no século XIX, quando a proximidade passou a ser exigida em função das guerras. O amor e o sexo que davam uns aos outros nas bases militares longe de casa, como bem demonstrou Gore Vidal em sua autobiografia, não importa. Trata-se, antes de mais nada, de uma aproximação que nasce sob a consigna da violência --- e que tão logo tenha terminado a guerra, foi desfeita e esquecida como um pacto de silêncio quando voltaram a se entrincheirar, novamente, dentro de suas famílias.
A suposta “homoafetividade” que Frye denuncia não é homoafetividade, mas a projeção do “ideal do eu” — o que os homens gostariam de ser — instituída pela violência masculinista autoinfligida. Homens, via de regra, não amam uns aos outros. Preferem, como Maquiavel, serem temidos. E quando um homem admira o outro, quase sempre não é o afeto que domina — aqui entendido como acolhimento e parceria —, mas a imponência masculinista que, uma vez reconhecida no outro, ele gostaria que fosse sua própria.
Mas poderíamos perguntar a Frye: qual “homoafetividade” é essa que faz com que homens culturalmente se abram tão pouco afetivamente uns aos outros? Que ‘amor exclusivo’ é esse que faz com que sejam mais propensos ao suicídio porque, entre outros fatores, não possuem vocabulário sentimental e subjetivo nem em relação às mulheres nem aos outros homens? A “turma do bolinha” ou o “FPC” exposto por Vanessa Barbara não são homoafetivos. São patéticos. Violentos. Tristes.
Quem insiste em confundir masculinismo com homoafetividade não apenas incorre num erro categorial, mas também numa homofobia escancarada, mesmo que implícita. A sugestão de que (1) se o masculinismo é homoafetivo; e (2) o masculinismo, enquanto aliança entre homens, leva ao predomínio do homem em detrimento da mulher; e por óbvio, enquanto progressistas, (3) somos contra a sujeição feminina pelo homem; só nos resta concluir que (4) temos de acabar também com a homoafetividade que serve de argamassa para a aliança patriarcal.
A lógica implícita só pode ser essa. E ela é homofóbica.
Melancolia hetero
Os homens que mulheres heterossexuais lutam para que as reconheçam são, assim como elas em sua maioria, predominantemente heteroafetivos. Entrincheirados nas instituições que inventaram e reproduzem entre si, não é falta de heteroafetividade que assombra os relacionamentos heterossexuais, mas justamente o excesso dela. Que essa seja feia, a culpa não é nossa.
Enquanto prática central na divisão sexual que fundamenta o patriarcado e impõe barreiras sociais, é a heteronormatividade reprodutivista que impede homens de admirarem mulheres para além do script sexo-reprodução. No entanto, embora a balança dos custos da heterossexualidade compulsória pese de forma distinta para os dois, ambos dependem uns dos outros no abraço de afogados da heteronormatividade. Como na dialética do senhor e do escravo, o segredo que o senhor não ousa contar em voz alta é que ele precisa do escravo tanto quanto o escravo dele para se autorizar como senhor. Por mais utilitária que essa visão masculinista possa ser — e é —, eles dependem das mulheres tanto quanto as mulheres dependem deles para não amargarem a “titia”.
Qual a dificuldade de entender que a ruína da heteressexualidade encontra em si mesma sua razão de ser? Que o preço de gozar da estima social que a heterossexualidade ainda mantém enquanto norma é, justamente, a tormenta?
Não é a homoafetividade que afunda as relações entre homens e mulheres heterossexuais. É a própria heterossexualidade que, marcada por sua compulsividade, é bem mais violenta do que gostaríamos de imaginar quando ignoramos a heteronormatividade reprodutivista como mecanismo central da divisão sexual que institui o patriarcado.
Fazemos por bem não projetar os afetos tristes da heterossexualidade na homoafetividade. Enquanto homossexuais, em um dos país que mais mata LGBTs no mundo, já enfrentamos problemas demais.
**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum