HOMOFOBIA

Aliança masculinista entre homens é perversa, mas não é “homoafetiva”

Discurso que caracteriza cultura masculina como "homoafetiva" é essencialmente homofóbico na tentativa de justificar o fracasso heterossexual

Créditos: Langston Hughes fotografado por George Platt Lynes
Escrito en OPINIÃO el

Possivelmente você já cruzou com a frase atribuída à filósofa estadunidense Marilyn Frye, segundo a qual a cultura heterossexual masculina é “homoafetiva”. De acordo com Frye, “tudo ou quase tudo que é próprio do amor, a maioria dos homens héteros reserva exclusivamente para outros homens”. Para eles, ela argumenta, as mulheres seriam apenas amuletos para relações sexuais.

A formulação, presente no livro Políticas da Realidade (1983), volta e meia reaparece na internet em tom de ‘desmascaramento’ das relações entre homens: “pegamos vocês no pulo, seus homoafetivos!”. No ano passado, a ideia encontrou até mesmo em Leandro Karnal um de seus porta-vozes. Na ocasião, o historiador complementou o raciocínio de Frye, dizendo que, se por um lado os homens héteros seriam “homoafetivos” — com o que ele concorda —, homens gays seriam, por sua vez, “heteroafetivos”, dada a proximidade entre gays e mulheres heterossexuais.

De lá para cá, a frase não deixou de reverberar. Nesta semana, por exemplo, voltou a ecoar: foi citada por Milly Lacombe em entrevista à Revista TPM e mencionada por Vanessa Barbara no podcast da Rádio Novelo. No relato de assédio que Barbara diz ter sofrido do ex-marido André Conti, ela também dispara: “a masculinidade tóxica é homoafetiva”. Está aos 52 minutos e 18 segundos do episódio, para quem quiser ouvir.

Em todos esses exemplos, a frase foi citada quase ipsis litteris, conforme a formulação feita por Frye. Mas a facilidade com que se tornou uma frase de efeito é proporcional à falta de compromisso com o que implica caracterizar como “homoafetividade” uma aliança tão perniciosa quanto a que homens mantêm entre si numa cultura patriarcal como a nossa.

Alto lá! 

Segundo Michel Foucault, em entrevista à revista francesa Gai Pied (1981), a homossexualidade é um modo de vida, e não exatamente uma orientação sexual. De acordo com ele, a homossexualidade — indissociável da homoafetividade — tem muito pouco a ver com quem você leva para a cama. “Imaginar um ato sexual que não esteja conforme à lei ou à natureza, não é isso que inquieta as pessoas. Mas que indivíduos comecem a se amar, aí está o problema”, diz.

Para o filósofo, enquanto postura e não identidade fixada, a homoafetividade seria justamente a ausência de definição: “um jogo em aberto” que, ao contrário da heterossexualidade e de todo seu compromisso institucional (monogamia, família, filhos etc.), não instituiu historicamente um modelo compulsório para os indivíduos. Sem o apoio desse repertório, advém muitas vezes a dificuldade de homossexuais se enxergarem na velhice.

Não havendo um “modelo homoafetivo” imposto historicamente por instituições e práticas convencionais, somos levados — apesar da angústia — a criar novas formas de ética. É essa criatividade não programada que interessa a Foucault ao falar de homoafetividade como “abertura”.

Ao contrário da heteronormatividade, portanto, a homoafetividade não projeta uma imagem do próprio futuro. Como afirma Lee Edelman em No Future, o futuro é, em sua estrutura, heterossexual. Ao não contar com um ideal operatório de futuro — mesmo que indivíduos homossexuais, claro, também se casem e tenham filhos —, as relações homoafetivas ganham em flexibilidade e autonomia, inserindo-se no que poderíamos chamar de temporalidade queer. “A homossexualidade é uma ocasião histórica de reabrir virtualidades relacionais e afetivas”, define o filósofo francês.

História

Na mesma entrevista, ao fazer uma análise histórica da sexualidade, Foucault reconhece também uma diferença na socialização entre homens e mulheres. Ao contrário destas, que desde sempre tiveram acesso ao corpo umas das outras (abraçar, segurar pela cintura, andar de braços dados na rua etc.), os homens só começaram a ter acesso ao corpo uns dos outros de forma mais recorrente no século XIX, quando a proximidade passou a ser exigida em função das guerras.

O amor e o sexo que davam uns aos outros nas bases militares, longe de casa — como bem demonstrou Gore Vidal em sua autobiografia —, não importam tanto quanto o contexto: trata-se, antes de mais nada, de uma aproximação que nasce sob a consigna da violência e que, tão logo terminaram as guerras, foi desfeita e esquecida como um pacto de silêncio. Voltaram a se entrincheirar, novamente, dentro de suas famílias.

A suposta “homoafetividade” que Frye denuncia não é homoafetividade, mas a projeção do “ideal do eu” — aquilo que os homens gostariam de ser — instituída pela violência masculinista autoinfligida. Homens, via de regra, não amam uns aos outros. Preferem serem temidos. E quando um homem admira o outro, quase sempre não é o afeto que domina — aqui entendido como acolhimento e parceria —, mas a imponência masculinista que, uma vez reconhecida no outro, ele gostaria que fosse sua.

Mas poderíamos perguntar a Frye: que “homoafetividade” é essa que faz com que homens se abram tão pouco afetivamente uns aos outros? Que ‘amor exclusivo’ é esse que os torna mais propensos ao suicídio porque, entre outros fatores, não possuem vocabulário sentimental e subjetivo nem em relação às mulheres, nem entre si? A “turma do bolinha” ou o “FPC” exposto por Vanessa Barbara não são homoafetivos. São patéticos. Violentos. Tristes.

Quem insiste em confundir masculinismo com homoafetividade incorre não apenas num erro categorial, mas também numa homofobia escancarada, ainda que implícita. A sugestão de que (1) o masculinismo é homoafetivo; (2) o masculinismo, enquanto aliança entre homens, sustenta o predomínio masculino sobre as mulheres; e, por óbvio, (3) que devemos ser contra essa sujeição feminina; só pode levar à conclusão de que (4) é preciso acabar também com a homoafetividade, por ser ela a “argamassa” dessa aliança patriarcal.

Essa lógica é homofóbica.

Melancolia hétero

Os homens que mulheres heterossexuais lutam para que as reconheçam são, assim como elas em sua maioria, predominantemente heteroafetivos. Entrincheirados nas instituições que inventaram e reproduzem entre si, não é a falta de heteroafetividade que assombra os relacionamentos heterossexuais, mas justamente o seu excesso. Que essa seja feia, a culpa não é nossa.

Enquanto prática central na divisão sexual que fundamenta o patriarcado e impõe barreiras sociais, é a heteronormatividade reprodutivista que impede homens de admirarem mulheres para além do script sexo–reprodução.

No entanto, embora a balança dos custos da heterossexualidade compulsória pese de forma distinta para homens e mulheres, ambos dependem uns dos outros no abraço de afogados da heteronormatividade. Como na dialética do senhor e do escravo, o segredo que o senhor não ousa contar em voz alta é que precisa do escravo tanto quanto este dele para se autorizar como senhor. Por mais utilitária que essa visão masculinista possa ser — e é —, os homens dependem das mulheres tanto quanto elas deles, para não amargarem o papel da “titia”.

Qual a dificuldade de entender que a ruína da heterossexualidade encontra em si mesma sua razão de ser? Que o preço de gozar da estima social que a heterossexualidade ainda mantém enquanto norma é, justamente, a tormenta?

Não é a homoafetividade que afunda as relações entre homens e mulheres heterossexuais. É a própria heterossexualidade que, marcada por sua compulsividade, se mostra muito mais violenta do que gostaríamos de imaginar ao ignorarmos a heteronormatividade reprodutivista como mecanismo central da divisão sexual que institui o patriarcado.

Fazemos por bem não projetar os afetos tristes da heterossexualidade na homoafetividade. Enquanto homossexuais, em um dos países que mais mata LGBTs no mundo, já enfrentamos problemas o suficiente.

**Este texto não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

Reporte Error
Comunicar erro Encontrou um erro na matéria? Ajude-nos a melhorar