Mesmo após o fim da promoção de ingressos mais baratos durante a chamada “semana do cinema”, e aproveitando que a rede Cinemark permanece com valores reduzidos (exceto para pré-estreias), vamos dar a dica de alguns dos melhores filmes brasileiros do ano que entraram em cartaz e merecem a conferida, especialmente por oferecerem linguagem lúdica para personagens marcantes e novas perspectivas.
Em primeiro lugar, vale muito fazer um verdadeiro mutirão para a nova comédia romântica “O dia que te conheci” de André Novais, da prolífica produtora Filmes de Plástico (a mesma do sucesso independente do ano passado, “Marte Um” de Gabriel Martins, e que foi o representante brasileiro ao Oscar 2024).
Quando de sua estreia na competição do 25º Festival do Rio, já era possível atestar que finalmente havíamos ganhado um “Antes do Amanhecer” para chamar de nosso. Ainda mais com a dupla Renato Novais e Grace Passô, ambos tendo atuado juntos em "Temporada" (longa anterior de André) e que, agora, regressam e vão construindo amizade, flerte e romance com irreverência e humor ao longo de um dia juntos até o amanhecer do dia seguinte. E sem precisar ser óbvio! As músicas clássicas como desenhos antigos à la Tom e Jerry dão tom de fábula e tensão de classe nos corres, antes de apresentar um casal e desconstruir o gênero.
Muitos cineastas já tentaram se debruçar sobre o formato que hoje associamos à trilogia “Antes do Amanhecer” de Richard Linklater, mesmo que esse formato de acompanhar casal ao longo de um dia tenha existido desde sempre e vá continuar a existir -- de Truffaut à Barry Jenkins, que, aliás, fez o seu próprio formato com muita personalidade em "Remédio para Melancolia", antes mesmo do cult "Moonlight", onde, inversamente a seu filme oscarizado, dessaturava as cores numa jornada de cura e reflexões românticas e sociais.
Por falar nisso, aqui, temos a saúde emocional, mental e financeira como um tema raríssimo abordado em romances, quiçá com humor como neste filme -- mesmo não sendo o foco, já que o riso é espontâneo e conjunto às personagens, não rindo "delas", e sim "com elas" e nossas idiossincrasias deliciosas. Seria um desequilíbrio delicado falar de temas tão importantes (cuja sociedade alopática que vivemos hoje é tão diagnosticada de forma incorreta) e rir daquela situação, por isso defendo não se tratar de uma comédia romântica e sim de um romance que tem humor consigo mesmo.
Os diálogos impagáveis (desde sobre o “despertador” ao do “pastel”) até os travellings no para-brisa do carro (à la Kiarostami, como no filme “Dez”) compõem maioria de planos-sequência dinâmicos e intimistas, num panorama carinhoso de Betim a BH – e lembrando que as seqüências de carro são compostas por dois planos, o do para-brisas e o de dentro do carro, perfeitamente sincronizados no diálogo). Sem falar que a trilha realmente engrandece o filme, aparecendo para realçar gestos minimalistas como as trocas dos protagonistas, pois um mira de esguelha sempre quando o outro não está olhando e vice versa, bem como os pequenos detalhes do cenário e referências cinematográficas, de Totoro à Shrek! André e equipe da produtora Filmes de Plástico retomam a parceria com a dramaturga, diretora e atriz também mineira, Grace Passô, e com o próprio ator Renato Novais, e revisita novas personas, identidades e vivências fora de padrão imposto, delicadamente construídas na rotina de um dia e na quebra dela, a proporcionar um encontro inesquecível.
Aliás, o filme saiu do Festival do Rio com o prêmio especial do júri e de melhor atriz – confira o registro do debate do filme no Cine Odeon com equipe e elenco aqui!
Já outro lançamento imperdível, e igualmente com título poético, "Saudade fez morada aqui dentro" de Haroldo Borges, também saiu premiado do mesmo Festival do Rio, em outra mostra, a Novos Rumos, com a láurea de melhor filme (confira o debate com equipe e elenco aqui). A narrativa segue um jovem que está ficando cego e isto move montanhas na vida de todos ao seu redor, da família aos amigos.
O quão sensível pode ser a alteridade pelo prisma dos encontros que o cinema pode proporcionar. Com vários temas trazidos com o filme baiano "Saudade fez morada aqui dentro", perpassamos elementos como o Nordeste, a equiparação de oportunidades, a necessidade de pontos de vista diversos pra abarcar identidades plurais, a inexistência paterna em tantas famílias brasileiras e até mesmo o quanto a ausência de algo dado como garantido por muita gente pode criar dispositivos cinematográficos para nos colocar no lugar do outro.
No caso, a ausência neste filme é da visão, já que seu protagonista está perdendo este sentido, e o filme vai experimentar dispositivos tanto visuais, como desde um apagão numa festa onde todos se sentem mais próximos por estar no mesmo breu; ao desenho de som que perscruta pelo tato, pelo sensorial para ir galgando outras formas de imergir na realidade (para o personagem e para nós). Até a presença forte dos animais, como cabras, pássaros e cachorros acaba servindo de contato com outras formas de comunicação, seja pelo tato, olfato ou audição.
Os sentidos imergem numa experiência solidária, como na cena da chuva ou quando jogam futebol vendados com uma bola coberta de sininhos para incluir o protagonista, cenas lúdicas que lembram outro clássico, “Timbuktu” (2014), de Abderrahmane Sissako, só que, enquanto neste as cenas eram de resistência contra a censura e violência de um regime totalitário, no nosso exemplar brasileiro isso é usado como paridade e emancipação da identidade.
Seu diretor Haroldo Borges, produtora Paula Gomes e equipe integrante de um coletivo responsáveis por outras obras ímpares, como o cult instantâneo "Jonas e o Circo Sem Lona" (dirigido por Paula, e cujo protagonista faz participação especial aqui), estão se especializando aos poucos em filmes de itinerância, descobrindo cidades regionais nos interiores dos Brasis para escavar a autofabulação em meio a linguagens que podem esbarrar no documental, mas que se ficcionalizam ao criar COM os sujeitos dos encontros, e não apenas SOBRE objetos de estudo (como já se viu tanto no cinema), ao semear audiovisual com frutos e liberdade. Assim, eles trazem para tela verdadeiras revelações, como os jovens novos artistas e perspectivas enriquecedoras, sem maniqueísmos, e com as vulnerabilidades, paixões e identificações que a vida traz em seus altos e baixos. Justamente pela tenra idade, e com uma responsabilidade bastante pesada do destino, o filme em nenhum momento julga os descaminhos que são necessários na trajetória da maturidade.
A vantagem desta linguagem é a criatividade possível da colaboração e da descoberta! Nas palavras do diretor: "deixar a porta do caos aberta não só para o improviso dos atores, mas atrás das câmeras também. Para toda a equipe".
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.