“Deus me livre de mulher CEO”. Essa foi a resposta do empresário Tallis Gomes a um seguidor que o fez uma pergunta nas redes sociais.
"Deus me livre de mulher CEO. Salvo raras exceções (eu particularmente só conheço 2), essa mulher vai passar por um processo de masculinização que invariavelmente vai colocar meu lar em quarto plano, eu em terceiro plano e os meus filhos em segundo plano", escreveu.
A postagem feita na quarta-feira (18) ainda dizia que esse "não era o melhor uso da energia feminina". Segundo o empresário, "o mundo começou a desabar exatamente quando o movimento feminista começou a obrigar a mulher a fazer o papel de homem".
A declaração pegou mal e, depois de ver o estrago, ele recuou. Em nova postagem, na quinta-feira (19), ele diz "errei feio num texto aqui no Instagram. E quero reconhecer o erro e pedir desculpas. Muitas mulheres se sentiram machucadas pelas minhas palavras, e eu estou profundamente chateado por ter magoado essas pessoas".
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"Minhas mais sinceras desculpas por causar esse desconforto a todas vocês. O lugar das mulheres é onde elas quiserem estar. Seja na vida pessoal, seja no mercado de trabalho", complementou.
Gomes é CEO da G4 Educação e faz parte do conselho de administração do Grupo HOPE, marca de moda íntima voltada para o público feminino.
Pelas redes sociais, a CEO da HOPE, Sandra Chayo, postou nesta sexta-feira (20) um comunicado oficial informando que "Tallis é um membro externo do conselho consultivo" e que a declaração dele "não representa os princípios da companhia".
"Me surpreendi ao ler o post, pois não reflete a conduta dele no conselho, sempre respeitou e valorizou a liderança feminina em nossa marca. Nós como empresárias, sempre acreditamos no nosso papel de protagonistas e na liberdade em escolher nossos caminhos pessoais e profissionais", afirmou ela na postagem.
A ex-deputada Manuela D'Ávila (PCdoB), ativista feminista, jornalista, escritora, mestra e doutoranda em Políticas Públicas e coordenadora do Instituto E se fosse você? comentou a fala lamentável do empresário.
"Esse texto é emblemático de como pensam os homens que aderem aos movimentos misóginos, sejam eles redpills ou incels.
O que eles querem?
Homens no espaço público, capazes de prover e usando sua “energia” para as tarefas “cascudas”. As palavras ridículas entre aspas são dele.
Mulheres no espaço privado, edificando o lar e cuidando dos filhos. Para esses, estranhamente ele usa o pronome “meu”: meu lar e meus filhos. Propriedade dele. Responsabilidade dela", comentou.
Capivara fascista
Tallis surpreende zero pessoas com a mais recente fala misógina. Antes de atacar mulheres em cargos de comando, ele já fez declarações que afrontam a legislação trabalhista brasileira.
Em um podcast admitiu que os funcionários da empresa que preside encaram jornadas de trabalho de até 80 horas por semana - regime de trabalho ilegal e imoral - e que não contrata 'esquerdistas'. Uma das empresas dele foi denunciada por funcionários ao Ministério Público do Trabalho por assédio moral e jornada exaustiva.
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Durante a campanha para a Presidência da República, em outubro de 2022, ele publicou uma carta aberta para pedir votos para a reeleição do então presidente Jair Bolsonaro para que a necropolítica da agenda econômica ultraliberal de Paulo Guedes prosseguisse por mais quatro anos.
Lugar de mulher?
Afirmar que mulheres não devem ocupar espaços de poder, como cargos de CEO, reflete o combo de crenças culturais, estereótipos de gênero e preconceitos estruturais.
Alguns homens, como Tallis, e até mulheres, defendem essas ideias mofadas baseados em noções tradicionais sobre os papéis de gênero. Alegam que nós somos menos aptas ou que nossas características pessoais não se alinham com o perfil de liderança exigido para esses cargos.
Os misóginos acreditam que as mulheres são mais adequadas para papéis de cuidado ou administrativos e menos indicadas para a liderança, baseado na ideia de que somos "emocionalmente instáveis" ou "menos assertivas" do que os homens.
Isso se alinha a estereótipos antigos que associam características como agressividade e controle à masculinidade, e empatia e sensibilidade à feminilidade.
Tudo balela. Há diversos estudos que refutam essa ideia medieval de que mulheres não são aptas para cargos de liderança, como o de CEO, e que demonstram os benefícios da diversidade de gênero nas posições executivas.
7 estudos mostram vantagem de mulher CEO
Separei sete estudos que desmontam a crença infame do empresário bolsonarista e demonstram consistentemente que mulheres são tão ou mais aptas que os homens para ocupar cargos de liderança e CEO.
1. Harvard Business Review: "Why Women are More Effective Leaders" (2020)
Por que as mulheres são líderes mais eficazes: Mostra que as mulheres superaram os homens em 17 das 19 competências-chave que caracterizam uma boa liderança, como resiliência, iniciativa, ética e orientação para resultados.
2. McKinsey & Company: "Women in the Workplace" (2022)
Mulheres no local de trabalho: Analisa a representação de mulheres em cargos de liderança e revela que empresas com maior diversidade de gênero em cargos executivos têm desempenho financeiro superior.
3. Catalyst: "Why Diversity Matters" (2020)
Por que a diversidade importa: Mostra que empresas com mulheres em posições de liderança têm maior retorno sobre investimentos, maior criatividade e inovação, e melhor performance em termos de governança.
4. Credit Suisse: "Gender Diversity and Corporate Performance" (2016)
Diversidade de gênero e desempenho corporativo: Analisou mais de 3 mil empresas em todo o mundo e concluiu que companhias com pelo menos uma mulher no conselho de administração tiveram melhor desempenho financeiro do que aquelas sem mulheres em cargos de liderança.
5. Peterson Institute for International Economics: "Is Gender Diversity Profitable? Evidence from a Global Study" (2016)
A diversidade de gênero é lucrativa? Evidências de um estudo global: Analisou dados de quase 22 mil empresas em 91 países e encontrou uma correlação significativa entre a presença de mulheres em posições executivas e maior lucratividade.
6. Zenger and Folkman: "Women are Better Leaders During a Crisis" (2020)
As mulheres são melhores líderes durante uma crise: Revela que mulheres demonstram qualidades de liderança mais eficazes durante crises, como a pandemia de covid-19, como empatia, tomada de decisões colaborativas e melhores habilidades interpessoais, o que as torna aptas para cargos executivos em situações desafiadoras.
7. World Economic Forum: "The Global Gender Gap Report" (2021)
Relatório Global de desigualdade de gênero: Analisa a desigualdade de gênero em diversos setores e mostra como países com maior participação de mulheres em cargos de liderança apresentam índices mais altos de competitividade e desenvolvimento econômico.
O papel libertador do feminismo
A fala de Tallis é toda problemática, mas vou me ater a apenas uma frase: "o mundo começou a desabar exatamente quando o movimento feminista começou a obrigar a mulher a fazer o papel de homem".
Essa sentença deixa à mostra o quanto o debate sobre feminismo, papéis de gênero e divisão sexual do trabalho precisam de mais espaço e reflexão.
O feminismo é um movimento social, político e intelectual que busca a igualdade de direitos e oportunidades entre os gêneros, lutando contra a opressão e as desigualdades impostas às mulheres. Historicamente, tem combatido estruturas patriarcais que relegam as mulheres a posições subordinadas em várias esferas da vida, como na família, no trabalho, na política e na sociedade em geral.
O movimento luta para que mulheres e homens tenham as mesmas oportunidades, direitos e liberdades, tanto na vida pública quanto na privada. Busca capacitar as mulheres para que possam exercer autonomia e controle sobre suas próprias vidas, seja no âmbito pessoal, econômico ou social.
Combate todas as formas de violência contra as mulheres, incluindo o assédio sexual, a violência doméstica, o feminicídio, entre outros. Trabalha para eliminar preconceitos e estereótipos sobre o que é ser mulher ou homem, desafiando a ideia de papéis de gênero tradicionais que restringem as mulheres a certos comportamentos e funções.
O feminismo busca equidade e justiça social, incluindo o acesso a educação, saúde, trabalho e participação política de forma igualitária para mulheres de todas as raças, classes e orientações sexuais.
Ondas e correntes do Feminismo
- Primeira Onda (séculos 19 e início do 20): Focou-se principalmente no direito ao voto (sufrágio feminino) e na conquista de direitos legais básicos, como a propriedade e a educação.
- Segunda Onda (década de 1960 a 1980): Abordou temas como a igualdade no trabalho, os direitos reprodutivos, o controle sobre o corpo feminino e o combate à violência de gênero.
- Terceira Onda (década de 1990 até o início dos anos 2000): Focou-se na diversidade e nas experiências de mulheres de diferentes raças, classes e orientações sexuais, além de desafiar normas de gênero.
- Quarta Onda (atual): É marcada pela interseccionalidade, abordando como diferentes formas de opressão (gênero, raça, classe, sexualidade) se interseccionam. Também usa as redes sociais como uma importante ferramenta de mobilização e conscientização.
O feminismo é plural, assim como as mulheres. Não é um movimento único e abriga várias correntes de pensamento.
- Feminismo Liberal: Focado em conquistar direitos e igualdade por meio de reformas nas leis e nas políticas públicas.
- Feminismo Marxista: Analisa como o capitalismo explora o trabalho das mulheres e busca igualdade de gênero por meio de mudanças estruturais na economia. Eu sigo essa corrente de pensamento.
- Feminismo Radical: Argumenta que o patriarcado é a raiz de todas as formas de opressão e defende uma transformação profunda das relações sociais.
- Feminismo Interseccional: Defende que as opressões de gênero não podem ser vistas isoladamente, pois se cruzam com questões de raça, classe, sexualidade e outras formas de discriminação.
Papéis de gênero
Para nós, feministas marxistas, um dos debates mais importantes gira em torno da divisão sexual do trabalho. Uma construção social que historicamente designou às mulheres tarefas relacionadas ao cuidado e à reprodução (esfera privada), enquanto aos homens foram atribuídas as tarefas produtivas (esfera pública e assalariada).
Esse conceito reflete uma estrutura hierárquica que legitima a exploração das mulheres, tornando seu trabalho invisível e desvalorizado, mesmo sendo essencial para a reprodução social e econômica.
Para feministas marxistas, como Silvia Federici e Heleieth Saffioti, essa divisão sexual do trabalho não é natural, mas sim uma imposição social criada para manter a opressão das mulheres e perpetuar o capitalismo.
O trabalho doméstico, não remunerado e feito majoritariamente por mulheres, é fundamental para a sustentação do sistema econômico, mas é desvalorizado.
Mundo dos homens?
A fala de Tallis sugere que o movimento feminista "obrigou" as mulheres a ocupar espaços antes dominados pelos homens, o que teria causado uma desordem no mundo. Jura?
Além de perpetuar a ideia de que existem papéis "naturais" e distintos para homens e mulheres, reforça a noção de que as mulheres deveriam permanecer restritas ao trabalho doméstico e de cuidado, enquanto os homens assumiriam o papel de provedores e trabalhadores fora de casa.
Essa lorota nada mais é do que uma visão conservadora da divisão sexual do trabalho, que naturaliza uma hierarquia de gênero e ignora o fato de que esses papéis foram socialmente construídos para manter uma ordem econômica desigual.
O movimento feminista, especialmente o feminismo socialista, sempre lutou para que as mulheres fossem libertas dessa divisão injusta, permitindo que elas tivessem a oportunidade de participar igualmente no espaço público e no mercado de trabalho.
Ninguém é obrigada a nada
A ideia de que o feminismo "obriga" as mulheres a "fazer o papel de homem" é uma distorção do objetivo real, que é a emancipação e a autonomia das mulheres em todas as esferas da vida.
A luta pela igualdade de gênero é uma tentativa de acabar com a divisão de gênero no trabalho, e não uma troca de papéis. A frase do bolsonarista ignora a desigualdade histórica de salários e oportunidades enfrentadas pelas mulheres, além de reforçar a ideia de que o trabalho masculino é mais valioso e importante, enquanto o feminino deveria continuar subordinado à esfera privada.
A verdadeira "desordem" no mundo é causada pela exploração capitalista que, historicamente, se beneficiou da exploração do trabalho reprodutivo das mulheres sem reconhecimento ou compensação. A crise social não está relacionada à entrada das mulheres no espaço público, mas sim à falha do sistema capitalista em valorizar igualmente todos os tipos de trabalho.
Deus me livre de gente misógina.
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