ESQUERDA X EXTREMA DIREITA

Fale o que quiser enquanto podes ser manipulado – Por Raphael Fagundes

As redes sociais são projetadas para circular discursos em um determinado formato, o qual não é suficiente para uma transformação social

Redes sociais.Créditos: Tânia Rêgo/Agência Brasil
Escrito en OPINIÃO el

Tanto a esquerda quanto a extrema direita são produtos da Superindústria do Imaginário neoliberal. Embora ambos espectros políticos façam referência a movimentos que marcaram a história do século XX, não podemos dizer que a extrema direita atual é a mesma que alimentou Hitler e nem que a esquerda dos nossos dias é a mesma que inspirou Che Guevara a revolucionar a solitária ilha do Caribe.

A ascensão do neoliberalismo nos anos 1970 trouxe algumas alterações para a sobrevida do capitalismo, por meio de “uma política estatal que comprou com dinheiro tempo ao sistema capitalista, garantindo uma espécie de lealdade das massas ao projeto neoliberal de sociedade enquanto a sociedade de consumo de uma forma que a teoria do capitalismo tardio não podia, pura e simplesmente, imaginar”.[1]

Uma pós-modernidade que desacreditou no futuro e na alternativa ao capitalismo ganha espaço após a crise da URSS, provocando uma fragmentação das lutas sociais que logo foi apropriada pela indústria do entretenimento (filmes e séries) e, até mesmo, pelo capital, de modo que hoje uma empresa é qualificada por seguir as recomendações da agenda ESG (da sigla environmental, social and governance, ou seja, governança ambiental e social).

A crise de 2008 forneceu novas armas ao capital, promovendo a uberização das relações trabalhistas, a ascensão das big techs e um enfraquecimento da razão, da verdade como princípio, em prol de um processo de idiossubjetivação que tolhe a capacidade das pessoas de interpretar criticamente as mensagens que circulam na decadente esfera pública.

Enquanto o projeto neoliberal retira os direitos sociais e trabalhistas, a extrema direita age por meio de uma agenda de costumes contrária ao projeto moderno de emancipação de grupos outrora excluídos, por motivos raciais e de gênero.

Outros aspectos desse movimento na Europa foram capturados pelo jornalista Grégory Rzepski: “’Chega de ‘propaganda climática [que diz] o que fazer e o que comer’, dos ‘punks de cachorro’ [subgrupo de punks que vivem em situação de rua e têm cães como companheiros] que jogam ‘molho de tomate na Monalisa’, exasperava-se Éric Zemmour em março; ‘Chega da ‘histeria irracional do CO2’ que destrói estruturalmente nossa sociedade, nossa cultura e nossos modos de vida’, já afirmava a AfD em 2023, enquanto os Verdes alemães tentavam proibir caldeiras a gás e a óleo”.[2]

Enquanto o projeto neoliberal de retirada dos direitos sociais e trabalhistas continua a todo vapor, ataques à extrema direita são forjados por “certa esquerda moralista e identitária”. Há casos bizarros de ataques de esquerda a pessoas do (supostamente) mesmo grupo, como “pessoas que se revoltaram por Rihanna usar tranças que seriam tipicamente ‘africanas’, outros [que] censuraram o chef Jamie Oliver por ter preparado um ‘arroz jamaicano’”. Como diz o jurista e cientista político Rubens Casara, são “exemplos do absurdo disfarçado de luta em favor das minorias e dos mais fracos”.[3]

A Superindústria do Imaginário vem produzindo cada vez mais conteúdo para alimentar e formatar esses campos. Séries e filmes que tratam da ascensão da extrema direita, da questão da imigração, do racismo etc, parecem ter a intenção de conscientizar sobre o assunto, mas no fundo buscam vender seu produto. As pessoas compram achando que estão se conscientizando, mas, na verdade, estão retroalimentando uma “consciência” que não prejudica o funcionamento da economia e da racionalidade neoliberal.

A base dessa economia é a maximização dos lucros às custas do aumento da exploração da força de trabalho, arrancando desta direitos básicos. Além disso, promove uma racionalidade que enxerga tudo e todos como uma empresa e o próximo como um concorrente.

“A Superindústria do Imaginário fabrica industrialmente os significados e as mediações que o sujeito consome para colar algum sentido a si e ao que diz. O capitalismo aprendeu a fabricar, em vez de bens de consumo corpóreos, imagens (signos visuais) e objetos (sígnicos) para o sujeito dividido [entre o ‘eu’ e o inconsciente] forjar sua unidade e sua completude imaginária. Nunca se viu algo assim. Antes, a cultura (por meio das religiões, das associações laborais, do Estado, de uma infinidade de instituições) fornecia esses sentidos sortidos (em discursos, em signos, em marcas), que não eram mercadorias. Agora, tudo isso é fabricado industrialmente, só pode ser fabricado industrialmente, e tudo, absolutamente tudo isso, é mercadoria”, explica Eugênio Bucci.[4]

Por exemplo, a indústria cultural simula ditadores em cenários distópicos, grandes empresários corruptos etc para consumidores ávidos por um conteúdo reflexivo, alimentando a utopia liberal de um governo fraco e de um mundo sem oligopólios no qual todos possam competir usando as suas competências e habilidades.

A extrema direita defende essa utopia criticando o fato de haver cotas para mulheres e negros, flexibilidade para imigrantes etc, enquanto que a esquerda defende a mesma utopia dizendo que esta nunca se realizará por conta do preconceito às minorias excluídas dos cargos de poder… Enquanto isso, o capital exerce sua dominação sobre as relações sociais.

As pessoas acreditam que aquela película, aquele vídeo do YouTube, aquele coach ou aquele influenciador “inteligentíssimo” inventaram a roda, mas na verdade só estão produzindo significados para descrever o mundo de modo a não atingir o centro gravitacional: o capitalismo.

Somos induzidos a não pensar. Alguns só dão opinião após conferir o que o seu influenciador preferido (seja de direita ou de esquerda) tem a dizer sobre determinado assunto. Contudo, na lógica do algoritmo, muitos influenciadores dizem o que pode gerar uma quantidade significativa de curtidas. Desse modo, a direita produz conteúdo para o público de direita e a esquerda faz o mesmo para os seus seguidores. Discursos radicais, de ódio, em muitos casos. Contudo, não será implantada nenhuma ditadura e muito menos uma revolução comunista. Apenas o que o capitalismo pode “neoliberalizar” e se tornar “neoliberalizante”. O que há é a governança do mercado (inclusive no mercado das ideias).

Não é que todos são fantoches do neoliberalismo, mas a divisão entre os oprimidos, o processo de idiossubjetivação, a crise da verdade etc, pariram a esquerda e a direita que temos. Aliás, a crise da verdade, como mostra o filósofo Byun Chul Han, só se prolifera “onde a sociedade se desintegrou em agrupamentos ou tribos, entre as quais não é mais possível uma conciliação, uma desintegração vinculativa das coisas”.[5]

O fato é que o sistema capitalista não precisa mais de uma ditadura e nem teme uma revolução comunista, porque sabe alimentar a imaginação, complementando muito bem a necessidade que temos de dar sentido às coisas fabricando significados a partir de um imaginário que nos é comum, podendo, assim, manipular a compreensão que temos dos objetos que consumimos. Caso tenha dúvida de alguma coisa “dê um Google” ou siga o Instagram do seu influenciador preferido para ficar “antenado” em tudo que passa no mundo! Alimente-se de significados, pois há uma indústria imensa que não para de crescer. Quem sabe um dia você faça parte dela sendo também um influenciador?

As ideias só circulam se for pelos métodos do capital. As redes sociais são projetadas para circular discursos em um determinado formato (frases curtas, ideias simples e objetivas, de baixa complexidade), o qual não é suficiente para uma transformação social. Vejam os protestos promovidos pelas redes sociais: são apenas “uma espécie de ruído de fundo carnavalesco para o realismo capitalista”, diria Mark Fisher.[6]

Marx e Engels acreditavam que a união da classe operária seria facilitada “pelo crescimento dos meios de comunicação que são criados pela grande indústria e que colocam em contato os operários de diferentes localidades”.[7] Hoje sabemos, desde os estudos de Adorno, que os meios de comunicação, principalmente os criados pela “grande indústria”, agem não para unir os operários, mas para separá-los através da promoção de uma racionalidade neoliberal que entende que “tudo e todos são negociáveis a partir de cálculos de interesses que miram, exclusivamente e sem condicionantes, o lucro e a obtenção de vantagens pessoais”[8], assegurando a reprodução das relações tradicionais de produção. O controle e a dominação devem assumir a forma de prazer ou de qualquer outra manifestação emocional para esconder o seu interesse principal, a manutenção do capitalismo.

 

[1] WOLFGANG, S. Tempo comprado. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 54.

[2] RZEPSKI, G. A união das direitas na Europa. Le Monde diplomatique Brasil, ano 16, n° 203, junho 2024, p. 33.

[3] CASARA, R. A construção do idiota. Rio de Janeiro: Da Vinci, 2024, p. 149.

[4] BUCCI, E. A Superindústria do Imaginário. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 308.

[5] HAN, B-C. Infocracia. Petrópolis: Vozes, 2022, p. 83.

[6] FISHER, M. Realismo capitalista. São Paulo: Autonomia Literária, 2022, p. 27.

[7] MARX e ENGELS. Manifesto do Partido Comunista. São Paulo: Martin Claret, 2006. p. 54.

[8] CASARA, p. 273.

*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.