O mal-estar aumentou significativamente a partir de março de 2013, quando Nicolás Maduro assumiu o poder após a morte de Hugo Chávez e começou a conduzir o governo venezuelano em direção a um regime de força, cujo caráter democrático passou a ser questionado pela comunidade internacional.
Desde então, o PT é frequentemente constrangido por seus adversários com as supostas práticas políticas autoritárias do governo venezuelano, como se os petistas fossem responsáveis pelo que acontece no país vizinho.
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Os questionamentos se justificam pela própria natureza do Partido dos Trabalhadores, fundado em 1980 no contexto da redemocratização. Naquele momento, o PT representava um movimento de autocrítica em relação à luta armada praticada por diversos grupos de esquerda durante a ditadura militar.
O PT nasceu do diagnóstico de que a luta armada não era a melhor estratégia para um projeto político de esquerda. O caminho passaria, então, pela construção de hegemonia na sociedade civil e pela ocupação de posições de poder seguindo os ritos da democracia liberal.
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O PT surgiu, portanto, como resultado de um consenso democrático na esquerda brasileira, que rejeitava a violência política e a militarização do Estado. Desde então, seja na oposição ou no governo, o Partido dos Trabalhadores sempre respeitou os ritos da democracia liberal, tanto em práticas quanto em discursos, ao mesmo tempo em que precisava lidar com as particularidades políticas de aliados ideológicos como a Venezuela madurista, fundada em outras concepções de democracia, bastante questionadas pela opinião pública brasileira e internacional.
A situação embaraçosa talvez tenha atingido seu auge nas eleições venezuelanas realizadas no último domingo, dia 28. O mundo inteiro observava uma Venezuela polarizada, com uma oposição engajada e o governo mobilizado. O processo eleitoral foi confuso desde o início, com líderes de oposição sendo impedidos de registrar candidaturas e com o próprio Nicolás Maduro prometendo um “banho de sangue” caso não fosse vitorioso.
Observadores internacionais, como o ex-presidente argentino Alberto Fernández, foram impedidos de entrar na Venezuela. O Tribunal Superior Eleitoral do Brasil desistiu de enviar representantes depois que Nicolás Maduro questionou o sistema eleitoral brasileiro, mobilizando argumentos semelhantes aos utilizados pelos bolsonaristas.
Fato é que, no próprio dia 28/07, o Conselho Nacional Eleitoral da Venezuela, ligado ao poder executivo, declarou a vitória de Nicolás Maduro, sob os protestos da oposição, que não reconhece a derrota.
Na posição de principal liderança política do sul global, o presidente Lula enfrenta um impasse difícil de resolver.
De um lado, estão as pressões dos velhos aliados ideológicos que enxergam Maduro como herdeiro da Revolução Bolivariana iniciada por Hugo Chávez, que reintroduziu no vocabulário político internacional os temas da “revolução” e do “socialismo”, apagados desde o fim da Guerra Fria, por aquilo que se acreditava ser a vitória derradeira do capitalismo liberal. Era o tal “fim da história” vaticinado pelo filósofo japonês Francis Fukuyama. Há também as pressões dos parceiros do BRICS, já que China e Rússia reconheceram a vitória de Maduro, pois obviamente a questão venezuelana faz parte do conflito maior que chineses e russos vêm movendo contra o poder ocidental, encarnado nos EUA e na União Europeia.
Do outro lado, estão o próprio histórico do PT e a biografia do presidente Lula, marcados pelo respeito às normas da democracia e pela defesa do poder civil. Em 2022, Lula venceu a eleição se apresentando como líder de uma ampla coalizão democrática, derrotando um autocrata que tentou militarizar o processo eleitoral. Organizações multilaterais como OEA e ONU foram convocadas para fiscalizar e avalizar a conturbada eleição brasileira. Essas mesmas organizações, hoje, não reconhecem o resultado das eleições venezuelanas. Foram legítimas para endossar o processo eleitoral brasileiro, mas não são legítimas para questionar o processo eleitoral venezuelano? Como é possível sustentar a coerência dessa lógica?
A situação, de fato, é complexa.
No dia 30/07, o Partido dos Trabalhadores publicou uma nota oficial reconhecendo Nicolás Maduro como presidente reeleito da Venezuela. As críticas vieram, como era de se esperar. Segundo Gleisi Hoffmann, a nota não foi combinada com o presidente. Difícil de acreditar, dada a influência que Lula exerce no partido. Mais verossímil é imaginar que tenha sido um movimento coreografado, com o PT acenando para seus aliados ideológicos, deixando o governo à vontade para adotar uma postura mais cuidadosa e crítica, como orienta o corpo diplomático.
De todo modo, a crise venezuelana movimenta o debate político nacional no momento em que o governo parecia superar as dificuldades enfrentadas no primeiro semestre, com queda nos índices de aprovação popular e diversas derrotas no Congresso Nacional. Pesquisas recentes mostravam tendência de recuperação na popularidade do presidente Lula. No dia 31/07, o IBGE divulgou os dados do desemprego, que estão em 6.9%, menor número desde 2014, situação praticamente de pleno emprego. A regulamentação da Reforma Tributária aponta para a diminuição dos impostos nos itens básicos, o que tende a potencializar o consumo das famílias, que já acelerou 2.3% no último trimestre.
Tudo sugeria, portanto, que o governo começaria a navegar em águas mais tranquilas. Pesquisas qualitativas mostram que o fator Venezuela não é irrelevante no imaginário político brasileiro e tem, sim, potencial de desgaste. Cabe ao governo brasileiro avaliar a relação custo-benefício envolvida no apoio incondicional a Nicolás Maduro. Cabe à esquerda brasileira avaliar se vale a pena sacrificar sua já cambaleante reputação na defesa de um aliado tão controverso e tão rejeitado, dentro e fora do Brasil.
O que Nicolás Maduro tem de concreto a oferecer na jornada global em defesa dos valores democráticos e dos direitos fundamentais?
Em tempos de polarização tão intensa, não existe desgaste pequeno.
*Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.