TEATRO

Arqueologia Teatral - por Ana Beatriz Prudente Alckmin

Com toda essa complexidade, há aqueles que são corajosos em produzir esses tipos de teatro

Ana Beatriz Prudente Alckmin debate sobre arqueologia teatralCréditos: Pexels
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Na Arqueologia, a espiral hermenêutica teoricamente nos aproxima dos fatos que realmente aconteceram. Esse é o ponto de partida do método etnográfico da escola francesa em que observamos os fatos da forma que aconteceram, de certa forma isso foi possível em alguns poucos casos na Arqueologia, pego como exemplo Pompéia pois a cidade fora congelada da forma que estava, e muitas pessoas que lá moravam foram embora e deixaram seus bens materiais para trás. Ou seja, Pompéia é exceção e também representa um prato cheio para a Arqueologia tradicional que visa observar um sítio arqueológico com a ideia de algo intacto que se explica sozinho.

O método etnográfico consistia em tirar camadas muito finas de terra e ir analisando as peças, mas conseguir algo que esteja exatamente conservado da forma que foi deixado é exceção da exceção. A ideia de sítios arqueológicos com pisos ou camadas, onde eram simplesmente deixados os objetos e posteriormente por algum motivo havido o soterramento daquilo que viria a ser um registro arqueológico, é exceção da exceção.

Na proposta de teatro documental, algumas peças de teatro se propõem a ser uma espécie de arqueologia. Em outras palavras, elas querem mostrar realidades tirando camadas finas, desnudando o assunto e aos poucos levando o público a mergulhar na questão. Um trabalho feito com muita pesquisa, na maioria das vezes, um projeto de peça de teatro leva anos para ser concebido.

O teatro documentário é uma forma artística que utiliza documentos e fontes autênticas para criar uma dramaturgia que reflete uma tese sócio-política. Em vez de simplesmente reproduzir fatos históricos, essa modalidade teatral busca explorar a relação entre os documentos e a encenação, transmitindo não apenas informações, mas também estética e poesia. Um exemplo disso é o espetáculo "Melancolia and Demonstration", de Lola Arias, que retrata a história da mãe da própria artista e suas lutas com a depressão. Nessa obra, não apenas são contadas histórias, mas também são exploradas questões autobiográficas, dando voz às memórias e experiências pessoais. Outro exemplo é a peça "Becos da Memória", de Conceição Evaristo, que entrelaça autobiografia e criação artística, trazendo à tona as memórias e experiências pessoais dos indivíduos. Essa interseção entre história pessoal e coletiva revela-se como uma ferramenta poderosa para a expressão artística e o entendimento da condição humana. O teatro documentário, portanto, não apenas informa, mas também questiona e reflete sobre a sociedade e a experiência humana, utilizando documentos históricos como ponto de partida para narrativas complexas e profundas.

Agora, exige muita coragem em fazer teatro documentário. Porque, ao retratar uma realidade, você vai ter como espectador pessoas que de alguma forma estão ligadas a essa realidade. Comunidades que são atravessadas pelo tema que você trabalha. Portanto, os realizadores de teatro documental costumam lidar com pressão e receber críticas que nem sempre são agradáveis, nem sempre são elogiosas. Muitas vezes, um olhar duro comunitário. Assim, é fundamental na construção dessa categoria de teatro, ao elaborar uma peça durante o processo de pesquisa, diálogos. Se você está construindo uma peça que vai tratar da realidade dos povos indígenas, você precisa ouvir os povos indígenas. Se você vai construir uma peça que vai tratar de traumas ligados ao povo negro brasileiro, você precisa ouvir o movimento negro e a intelectualidade negra brasileira. Se você vai tratar de algum tema que é sensível para a comunidade judaica, você precisa ouvir as lideranças comunitárias judaicas. Então, a pesquisa para realizar esse tipo de teatro vai muito além de pesquisa bibliográfica, vai muito além de enciclopédia. Ele exige um trabalho de entrevistas e de muitas reuniões com os mais interessados nas temáticas tratadas.

Com toda essa complexidade, há aqueles que são corajosos em produzir esses tipos de teatro. Eu tive o privilégio de assistir à peça "Exílio", no Teatro Conteiner Mungunzá, desenvolvida pelo Coletivo Comum, que, ao tratar justamente do tema exílio, mexe com várias comunidades e com temas que são sensíveis a diversos grupos. Naturalmente, o olhar para a peça precisa ser muito crítico e, ao mesmo tempo, respeitoso. Porque ali eu vi o que eu chamo de Arqueologia Teatral. Mas eu prefiro começar essa crítica introduzindo o meu leitor ao tema em si, o exílio.

O termo "exílio" tem origem no latim "exsilium", referindo-se ao estado de estar fora do país ou da própria nação, seja por iniciativa própria ou forçado por perseguição política, religiosa ou racial. Este ato, tanto o exílio voluntário quanto o autoexílio, é reconhecido por organizações de direitos humanos. No contexto histórico brasileiro, diversos indivíduos notáveis experimentaram o exílio. Durante a ditadura militar, artistas como Nara Leão, Chico Buarque, Jorge Mautner entre outros foram forçados ao exílio. Outras personalidades importantes como Fernando Henrique Cardoso e Leonel Brizola escolheram sair do país. Esses casos evidenciam uma triste lacuna em nossa democracia, destacando a importância de um Estado que garanta os direitos de seus cidadãos e respeite a diversidade política, ao contrário de governos que celebram a saída de opositores, demonstrando desapego aos valores democráticos.

Para o Direito Romano, o exsilium é uma alternativa à pena de morte, seja voluntária ou resultado de uma sentença de banimento. Na atualidade, os exilados são sim pessoas punidas por suas sociedades e estão vivendo verdadeiras sentenças de morte. Mesmo que o exílio seja voluntário, consideremos que se a condição de vida daquela pessoa em seu país era terrível, colocando em risco sua existência, a decisão de sair é desesperada. O caminho até um lugar seguro também é muito penoso. As cenas constantes na imprensa de pessoas que abandonaram seus países para viver na Europa são desoladoras. Arriscam suas vidas no mar, viajando sem certeza de sobrevivência. Isso levanta questões sobre os horrores que enfrentavam em seus países de origem. Infelizmente, muitas vezes, ao chegarem em uma terra considerada democrática, enfrentam discriminação e marginalização.

O exílio é a busca por um lugar seguro, mas não é garantia de chegar a um. Ainda assim, enfrentar o exílio pode ser a única alternativa de sobrevivência para aqueles que vivem em países dominados por governos cruéis que desprezam os Direitos Humanos.

A peça "Exílio", construída pelo Coletivo Comum, tem uma ambição considerável, pois não se limita a tratar de uma comunidade específica ou de um episódio particular de exílio na história da humanidade. Ao dialogar com a realidade de diversos grupos étnicos, ela se apresenta como um grande memorial do exílio em forma de teatro. Como critica de teatro eu me sinto confortável para chamar o que eles fazem de arqueologia teatral, já que se propõe a ir retirando camadas e mostrando a realidade do que é o exílio nos mais diversos campos dessa realidade. Para sua criação, foi realizada extensa pesquisa, e tive acesso à bibliografia utilizada. O que mais me sensibilizou foram as cartas e documentos reais lidos durante a peça, escritos por pessoas forçadas a deixarem seus países de origem por uma série de circunstâncias, distanciando-se de seus familiares. Essas cartas, sem dúvida, representam o ápice da peça, dando voz de forma muito expressiva aos exilados.

Inicialmente, nas primeiras leituras das cartas, os atores usam uma entonação de voz própria, como se estivessem lendo qualquer outra coisa, e não trazem dramaticidade à leitura. Isso, a princípio, me incomodou. No entanto, após reflexão, compreendi que essa abordagem evitou que reproduzissem caricaturas, e até mesmo estereótipos preconceituosos, ao tentar imitar certos tipos de sotaques.

Levando em consideração tudo o que ouvi e assisti durante a peça, o que cintilou diante dos meus olhos foi a contribuição muito concreta da peça em trazer a realidade daqueles que são perseguidos e obrigados a se deslocar por serem LGBTQIAPN+.

Sem dúvida, o Oriente Médio é hoje um dos principais palcos de perseguição e ameaça à vida das pessoas LGBTQIAPN+.

Vejamos como alguns dos países do Oriente Médio lidam com a diversidade sexual:

• Israel: Não pune a homossexualidade desde 1988. A união civil homossexual é reconhecida desde 1993, e há leis que protegem os cidadãos LGBTQIAPN+ de discriminações.

• Palestina: A homossexualidade é ilegal na Faixa de Gaza dominada pelo Hamas, onde foi instituída uma pena de 10 anos de prisão para homossexuais. Na Cisjordânia, a homossexualidade é legal desde 1951, mas a união civil não é reconhecida em nenhuma das áreas.

• Irã: Pune a homossexualidade com pena de morte.

• Arábia Saudita: Pune a homossexualidade com pena de morte.

A peça "Exílio" está disponível de 11 de abril a 05 de maio de 2024, com 16 apresentações no total. Será realizada às quintas, sextas e sábados, sempre às 19h30, e aos domingos, às 18h.

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.