Em dois artigos anteriores, procurei, em [1], fornecer uma visão, ainda que bastante resumida, razoavelmente completa, de como interagem as principais variáveis macroeconômicas (demanda agregada, desemprego, inflação, juros, tributação, gasto público e câmbio) no Brasil e no mundo de hoje, defendendo que a visão de Fernando Haddad sobre macroeconomia é de fato atual. E, em [2], procurei defender que a esquerda deve apoiar a luta de Haddad para obter o déficit zero através da tributação dos mais ricos, ainda que também deva criticar qualquer tentativa de rebaixar os pisos de saúde e educação como forma de compatibilizar a Constituição ao arcabouço fiscal.
Neste artigo, pretendo argumentar que a política macroeconômica deve ser consistente com as demais políticas de desenvolvimento e que essas, por sua vez, devem ser consistentes com seus objetivos, conforme expressos na nossa Constituição, em seus direitos e garantias fundamentais. Para obter essa consistência, é preciso enxergar a floresta na diversidade de suas árvores.
Parece não haver muita controvérsia de que a demanda agregada (compras de produtos brasileiros) deva ser mantida de modo que tenhamos um mínimo de desemprego com estabilidade da inflação. Nos EUA, o banco central tem esses dois objetivos expressos em lei, o que é conhecido como mandato dual do FED (da sigla “Federal Reserve”). Mas e quanto às outras principais variáveis macroeconômicas, juros, tributação, gasto público e câmbio? A taxa básica de juros nominal é determinada pelo banco central de modo a suavizar os ciclos econômicos. Também não parece haver muita controvérsia de que a média da taxa básica de juros real (juros nominais menos inflação) deva estar mais próxima da média internacional. Isso só é possível com um adequado déficit/superavit primário (tributação menos gasto público), que depende de cada país em cada época. Mas qual é a tributação e o gasto público correto? E quanto ao câmbio?
Outras florestas
Nesse processo de visualização da nossa floresta, são muito úteis comparações com as florestas dos demais países. Em relação à tributação, tributamos muito o consumo e pouco a renda quando comparado com países desenvolvidos. E, nesses países, a tributação da renda é progressiva, ou seja, os mais ricos já foram colocados no imposto de renda de modo adequado. A tributação do consumo também é bem mais racional do que a nossa, o que começará a ser finalmente corrigido com a recém aprovada reforma tributária, uma conquista impressionante de Haddad como ministro da fazenda.
Em relação ao gasto público, um estudo recente [3] divulgado pela secretaria do tesouro compara o gasto em diversas áreas do setor público como percentual do PIB no Brasil e em diversos países do mundo. Esse estudo [4] confirma dados mais antigos que apresentei sobre o judiciário brasileiro, onde gastamos 4 vezes a média dos demais países (1,6% do PIB no Brasil versus 0,4% do PIB nos demais países selecionados).
Outra área em que gastamos excessivamente, também 4 vezes a média dos demais países, é com os juros da dívida pública (6,7% no Brasil versus 1,7% nos demais países). Por outro lado, gastamos aproximadamente o mesmo que o resto do mundo em educação (4,5% no Brasil versus 4,8% nos demais países), mas menos do que o resto do mundo em saúde (5% no Brasil versus 6,1% nos demais países). Gastamos aproximadamente o mesmo que os países desenvolvidos em previdência (8,7% no Brasil versus 8,4% nos países desenvolvidos), mas gastamos menos da metade da média dos demais países em transporte (0,9% no Brasil versus 2,3% nos demais países).
Essas comparações são importantes para guiar a própria regra fiscal, pois deveríamos diminuir onde nossos gastos estão muito acima da média internacional e aumentar onde nossos gastos estão muito abaixo dessa média. Portanto não parece fazer muito sentido diminuir nossos gastos como percentual do PIB em áreas onde já estamos abaixo da média, como em educação e especialmente em saúde. Ou seja, faz muito mais sentido excluir os pisos de saúde e educação do teto de gastos do que modificar a Constituição para rebaixá-los, como defendi em [2].
Além de procurarmos ter gastos como percentual do PIB nas diversas áreas do setor público mais parecidos com a média internacional, devemos também procurar crescer nosso PIB per capita a taxas mais elevadas do que a dos países desenvolvidos, de modo a obter uma convergência com o PIB per capita desses países.
E não será possível aumentar nosso PIB per capita apenas através da agropecuária, da mineração ou dos serviços tradicionais. A agropecuária e a mineração já possuem alta produtividade, mas não possuem muito espaço para aumentar seu percentual no PIB sem graves consequências negativas para o meio ambiente. Por outro lado, o setor de serviços tradicionais (cabeleireiros, treinamento esportivo etc.) não possui muito espaço para aumentar sua produtividade.
Os únicos setores onde pode haver aumento de produtividade combinado com aumento do percentual do PIB são a manufatura e os serviços modernos (design, software etc.), fortemente vinculados ao setor industrial. E esses dois setores dependem crucialmente do câmbio, a variável macroeconômica mais negligenciada nas políticas de desenvolvimento brasileiro e que receberá minha devida atenção num próximo artigo que será todo dedicado a ela.
Brasília, dia 15 de Fevereiro de 2024
Mauro Patrão - Doutor em Economia e em Matemática e Professor Associado da UnB
[1] Patrão, M.: Haddad, o equilibrista:
https://sul21.com.br/opiniao/2024/01/haddad-o-equilibrista-por-mauro-patrao/
[2] Patrão, M.: Haddad, apoios, críticas e soluções:
https://revistaforum.com.br/debates/2024/1/26/haddad-apoios-criticas-solues-por-mauro-patro-152985.html
[3] COFOG - Despesas por Função do Governo Geral:
https://www.tesourotransparente.gov.br/publicacoes/despesas-por-funcao-do-governo-geral-cofog/2022/114
[4] Tribunais no Brasil têm custo acima da média global e consomem 1,6% do PIB:
https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2024/01/25/tribunais-no-brasil-tem-custo-acima-da-media-global-e-consomem-16-do-pib.htm
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.