No dia 05 de março de 2013 tive a oportunidade de ver pessoalmente o filósofo Slavoj Zizek, considerado um dos grandes pensadores do século XXI tanto pela profundidade e originalidade de suas análises da sociedade contemporânea através de leituras de Hegel, Marx e Lacan quanto pelo seu apelo popular e seu jeitão bonachão e divertido. Zizek é um grande contador de histórias e anedotas (como todo bom leitor da psicanálise) e na ocasião em Porto Alegre veio lançar seu livro “Menos que nada” um tijolaço de mais de mil páginas sobre Hegel.
O médico diz ao paciente: tenho duas notícias, uma boa e outra ruim.
Qual é a ruim?
Você só tem 3 dias de vida e não tem tratamento.
Qual é a boa?
Eu ganhei na loteria.
Nas duas últimas semanas a esfera cibernética da esquerda se agitou após a veiculação de um vídeo produzido pela Marinha do Brasil como suposta comemoração ao dia da Marinha, 13 de dezembro, que, diferente das usuais propagandas de alistamento ou exaltação do exército, parece estar alguns tons acima no quesito agressividade e também parece querer dar uma resposta a críticas que as forças armadas tem recebido de setores da esquerda brasileira nos últimos anos. O vídeo apresenta cenas em que predomina o rigor do treinamento militar, navios em mares tempestuosos, soldados carregando sacolas pesadas em formação, exercícios físicos pesados, instrução de tiro e alguns momentos de atuação solidária, como um blindado anfíbio andando em um terreno alagado.
A protagonista mais evidente da peça publicitária é uma mulher negra que, no desfecho do vídeo olha para a quarta parede e diz “privilégio? vem para a marinha”. As cenas de treinamento, que parecem mais as antigas propagandas de cigarros Hollywood dos anos 80 com esportes radicais, são intercaladas com cenas de jovens cidadãos comuns nadando em piscinas ou na praia, fazendo Yoga, jogando videogame... A suposta mensagem a ser transmitida é um velho mantra repetido exaustivamente por militares e especialmente pelos homens deslumbrados que adoraram brincar de soldados no alistamento militar obrigatório “vocês civis estão aí no conforto e na mordomia enquanto as forças armadas se sacrificam duramente para protegê-los”.
A frase final diz respeito às críticas da esquerda aos privilégios das forças armadas e à constante e inócua ameaça do Governo Lula de cortá-los. Orçamento das forças armadas brasileiras gira em torno de 88,6 bilhões de reais, o que inclui aposentadoria integral de oficiais que SOBEM de patente quando se retiram (aos 53 anos), pensões de filhas de falecidos e de famílias de EXPULSOS da corporação, alimentação, assistência médica e odontológica, recursos para o alistamento e serviço militar obrigatório, substituição de tanques, navios e caças obsoletos (que só servem para treinamento e eventuais patrulhamentos, afinal nossa última guerra foi a do Paraguai e as anteriores foram sufocamento de revoltas internas), manutenção das escolas militares (em cujo currículo se ensina que o golpe militar de 64 foi uma revolução que nos protegeu do comunismo).
Não é difícil de imaginar a ambivalência involuntária (ou não, diria Freud...) que já virou piada na internet “privilégio? vem para a marinha” que é dita por uma mulher negra e que supostamente é soldada rasa, ou seja, alguém que não possui quase nenhum dos privilégios descritos acima, pois a crítica é aos generais e coronéis obesos e empanzinados de picanha e leite condensado que não são capazes de durar dois minutos em uma selva (ver General Pazuello).
A mensagem poderia dizer “quer privilégio? Venha ser oficial golpista da marinha e caia para cima, ocupe a maior parte dos cargos do governo Bolsonaro (incluindo o ministério da saúde durante a maior crise sanitária da história), ganhe salários de cargos acumulados que superam o teto dos servidores públicos, tenha direito a julgamento em tribunal exclusivo e corporativo.
E mais: ganhe impulsionamento de postagens em redes sociais que criem a fantasia de que as forças armadas são a garantia da ordem institucional, da honestidade, de poder moderador e torne o governo conciliador de Lula seu refém, tendo em vista que sua primeira decisão deveria ser ter exonerado todos os generais que compuseram o governo anterior, e mais: deveria ter decretado a desmilitarização total e irrestrita de TODO o país, que não é só o exército, mas são todos os contingentes de uma das polícias que mais mata no mundo na verdadeira guerra civil que assola o país: a guerra os povos nativos (o exército e a aeronáutica cobram aluguel do governo para patrulhar os garimpos ilegais) os homens e mulheres negros e negras das periferias.
Quando eu tive a ideia de escrever esse texto, eu queria tratar do conceito de dialética em Hegel, eu queria dizer que para o grande pensador alemão, a dialética depende díade, do dois, mas não de qualquer dualidade, de um conflito de forças em interdependência. Se acabarmos com todos os senhores, todos os escravos serão livres, não serão mais escravos, da mesma forma que se acabarmos com os escravos não será mais possível termos senhores, assim como o capitalismo se sustenta da exploração da força de trabalho pelos detentores dos meios de produção e acumulação, daí a ideia do colapso do capitalismo pela mecanização, não é possível explorar a mão de obra das máquinas e tampouco (ainda) não existem máquinas que possam explorar a mais-valia de outras máquinas ou humanos.
No caso da mensagem transmitida pelo vídeo em questão, há uma falsa dualidade: “vocês civis reclamam que nos sustentam, mas sem a nossa presença vocês não poderiam dormir sossegados”. Assim como no futebol, no conflito Grêmio e Internacional é falsa premissa de que um não vive sem o outro, ou seja, a minha vida de colorado seria normal sem a existência do Grêmio, o Brasil não sentiria a mínima falta das forças armadas, todas as suas supostas tarefas de patrulhamento, ação em desastres e patrulhamento poderiam ser substituídas com largas vantagens por forças civis bem administradas, descentralizadas e profissionalizadas sem os vícios ideológicos e políticos que assombram nossa nação desde a fundação da república (que por sinal foi um golpe militar).
E mais: o vasto orçamento das forças armadas seria otimizado e utilizado em instituições muito mais proativas e úteis, como as Universidades Federais, que produzem vacinas, remédios tecnologias de ponta e cujas políticas afirmativas representam a real possibilidade de inclusão das populações vulnerabilizadas deste país.
Qual o orçamento das Universidades Federais? 5,5 bilhões, e são o primeiro alvo de cortes dos pacotes de austeridade fiscal. E como um professor universitário federal se aposenta? Com apenas uma parte de seu salário integral calculado pela média de todo o seu período laboral (ou seja, baixa de “patente”) em 35 anos para os homens e 30 para as mulheres, com teto de idade de 65 e 60 anos. Demora pelo menos 15 anos para formar um doutor apto a prestar concurso com 4 provas diferentes para ganhar 08 mil reais por mês com quase 50 por cento de desconto entre INSS e Imposto de Renda, usados em sua maioria para custear as forças armadas.
Não é dialética, é parasitismo, segundo a Wikipedia
Parasitismo é uma relação ecológica desarmônica entre duas espécies, na qual uma, o parasita, se beneficia ao se alimentar da outra, o hospedeiro, prejudicando-a.
Fabio Dal Molin, psicólogo, psicanalista, doutor em sociologia, professor da FURG e pós-doutorando do Programa de Pós-graduação em Psicanálise, Clínica e Cultura da UFRGS
@b.dalmolin