ANÁLISE

Alguém tem que dizer para que serve a educação – Por Raphael Fagundes

Dizer que a educação é útil para o indivíduo ascender socialmente é limitar o potencial que o conhecimento escolar pode oferecer

Imagem Ilustrativa.Professor em sala de aula com alunosCréditos: Agência Brasil/Arquivo
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A frase célebre de Nelson Mandela é de suma importância para pensarmos na utilidade da educação: “A educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”. Mas é claro que o opressor não tem a intenção de dar à educação essa finalidade. Seria entregar o punhal nas mãos do oprimido.

Outros discursos sobre educação são forjados, mas o hegemônico é o de que ela é um investimento individual, capital humano, que ajudará o indivíduo a se inserir na sociedade obtendo lucros, retornos, ao investir com inteligência.

A lógica é de acomodação. As massas não podem se inserir na sociedade criticamente. Há um limite. A vontade de ser mais é negada. “É que o opressor sabe muito bem que esta ‘inserção crítica’ das massas oprimidas, na realidade opressora, em nada pode a ele interessar. O que lhe interessa, pelo contrário, é a permanência delas em seu estado de ‘imersão’ em que, de modo geral, se encontram impotentes em face da realidade opressora, como ‘situação limite’ que lhes parece intransponível”.[1] Mais claras do que as palavras de Paulo Freire, impossível.

Portanto, alguém precisa dizer que a educação tem utilidade para a experiência prática cotidiana. Que não se trata de algo de natureza abstrata. Óbvio que não me refiro ao utilitarismo no qual nossa sociedade está submersa. Quero pensar como o professor Nuccio Ordine: “No universo do utilitarismo, um martelo vale mais que uma sinfonia, uma faca mais que um poema, uma chave de fenda mais que um quadro: porque é fácil compreender a eficácia de um utensílio, enquanto é sempre mais difícil compreender para que podem servir a música, a literatura ou a arte”.[2]

Então, para que serve a educação? Ela de fato pode ser usada para mudar o mundo, como pensava Mandela?

Com as diversas definições dadas para a educação pelo Banco Mundial, pela Unesco, pelos institutos empresariais, a função de mudar a realidade ficou oculta, como, por exemplo, a sua capacidade de fornecer instrumentos úteis para resolver problemas sem fazer uso da violência. Um indivíduo com acesso a um conhecimento científico, comprovado, debatido, revisado etc, desenvolverá a habilidade de dar fundamentos às suas ideias, convencendo o outro através de instrumentos racionais que podem ser averiguados por todos. É como dizia Theodor W. Adorno nos finais dos anos 1960: “... desbarbarizar tornou-se a questão mais urgente da educação hoje em dia”.[3]

Os discursos atuais sobre a educação carregam a barbárie, a negação e a humilhação do outro. Não poderia ser diferente em uma sociedade que cultua a competição. Uns discursos “estão focados na eficácia e no desempenho, [enquanto que] outros, mais ou menos fanáticos, inspirados por convicções religiosas, nacionalistas, racistas, procuram impor uma hierarquia do ser humano - a partir de critérios tradicionais de dominação, ou como uma contra-hierarquia produzida por aqueles que foram vítimas de discriminação”. Além disso, há o anseio pela implementação de escolas militares, onde a educação e a violência se confundem bizarramente. “Sejam presidentes de países ricos, sejam doutrinados de países pobres, esses novos bárbaros, senhores da definição de quem merece viver, têm profundo ódio pela educação”.[4]

Outra utilidade da educação são os instrumentos que ela oferece para filtrar informações. Infelizmente, a capacidade de filtrar está sendo delegada aos algoritmos de recomendação. Como explica a professora Rose Marie Santini, “os algoritmos têm sido cada vez mais utilizados para fazer julgamentos morais e culturais complexos, construindo diferentes regimes de verdade que afetam a nossa percepção da realidade”.[5]

Cabe lembrar que “a atenção se transformou em moeda mais valiosa do que o dinheiro convencional que se amontoa nas contas bancárias”.[6] A atenção está em disputa na sociedade em que os bens simbólicos circulam como produtos das empresas que mais faturam no capitalismo atual. Vejam as Big Techs!

Não saber filtrar o que as mensagens, que têm como alvo nossa atenção, pode nos expor a ideias perigosas, até mesmo autodestrutivas. Soma-se a isso o fato de que “as engrenagens da economia digital estão criando um novo tipo de arquitetura da persuasão para influenciar nossa conduta, que tem sido direcionada tanto para nos fazer clicar em anúncios de sapatos quanto para influenciar nosso voto”.[7]

O conhecimento nos liberta dessas engrenagens e nos torna autônomos em relação aos sistemas de recomendação. A educação nos fornece os saberes que serão compartilhados pelos sujeitos em uma troca comunicativa que possibilita “um processo de filtragem, em seu potencial de saberes possíveis e partilhados em uma comunidade linguageira”. Patrick Charaudeau chama esses saberes de “filtros construtores de sentido”.[8] Hoje, estamos deixando esse filtro nas mãos de inteligências artificiais que nos fazem cada vez mais seus reféns.

Portanto, dizer que a educação é útil para o indivíduo ascender socialmente por meio da venda da força de trabalho qualificada é limitar o potencial que o conhecimento escolar pode oferecer.

Alguém tem que dizer que a educação não é algo privado. Sua função é social. É como diz o professor Newton Duarte seguindo os ensinamentos de Dermeval Savianni, “por um lado, a especificidade da educação escolar no interior da prática social é a socialização do saber sistematizado e, por outro, essa especificidade da escola está em conflito insuperável com a lógica privatizante do capitalismo”.[9]

O uso intensivo pela juventude de tecnologias voltadas para a comunicação e informação torna a educação primordial para cristalizar o critério de seleção. A educação é fundamental para a dieta da informação. Quanto mais base um indivíduo tiver de conhecimento sistematizado, mas difícil será sua manipulação. A educação ensina a questionar, mas não a qualquer coisa, como na lógica do “tudo dizível” da pós-verdade que contamina as redes sociais. Essa armadilha do ser “do contra”, que coloca a “fala do professor na escola [...] em dúvida pelos alunos, os quais confiam mais em sites (Wikipédia), blogs e redes sociais”, só pode ser combatida com a educação. Essa é a sua principal função na sociedade contemporânea, já que, como declara Charaudeau, “receber informação não é prova de saber. É necessário exercitar uma reflexão que leve a uma certa interpretação”.[10] É aí que se encontra a principal tarefa do professor: “a importância do papel do educador, o mérito da paz com que viva a certeza de que faz parte de sua tarefa docente não apenas ensinar os conteúdos, mas também ensinar a pensar certo”.[11]

Em contato com muitos companheiros professores, observa-se que, por fazerem parte de uma profissão tão aviltada, desistiram de agir pelos ideais da educação em sala de aula. Dizem que eu sou utópico demais perante toda a realidade do ensino público desse país. Mas eu resisto e respondo que “alguém tem que dizer”, senão tudo de fato estará perdido.

 

[1] FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992, p. 39.

[2] ORDINE, N. A utilidade do inútil. Rio de Janeiro: Zahar, 2016, p. 12.

[3] Apud CARA, D. Contra a barbárie, o direito à educação. CÁSSIO, F. (org.) Educação contra a barbárie. São Paulo: Boitempo, 2019, p. 15.

[4] CHARLOT, B. Educação e barbárie. São Paulo: Cortez, 2020, p. 16.

[5] SANTINI, R. M. O algoritmo do gosto. Curitiba: Appris, 2020, p. 14.

[6] DAVENPORT, T. H. e BECK, J. C. A economia da atenção. Rio de Janeiro: Campus, 2001, p. 4.

[7] BENTES, A. A indústria da influência e a gestão algorítimica da atenção. FERREIRA, M; BOCK, A. e Gonçalves, M. (orgs.) Estamos sob ataque. São Paulo: Instituto Silvia Lane, 2021, p. 44.

[8] CHARAUDEAU, P. Linguagem e discurso. São Paulo: Contexto, 2009, p. 31.

[9] SAVIANI, D. e DUARTE, N. Conhecimento escolar e luta de classes. Campinas, SP: Autores Associados, 2021, p. 44.

[10] CHARAUDEAU, P. A manipulação da verdade. São Paulo: Contexto, 2022, p. 169.

[11] FREIRE, P. Pedagogia da autonomia. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996, p. 29.

*Este artigo não representa, necessariamente, a opinião da Fórum.

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