OPINIÃO

Os defensores da austeridade também são golpistas (e também tentaram matar Lula)

Bolsonarismo, mercado, mídia e parte do judiciário formavam, num passado recentíssimo, um mesmo bloco, cujo objetivo era implementar à força o pacote de austeridade econômica que beneficiaria a riqueza das elites econômicas

Bolsonaro com Paulo Guedes, general Ramos, Roberto Campos Neto e Ciro Nogueira.Créditos: Marcelo Camargo/Agência Brasil
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A recente revelação do macabro plano arquitetado pelo núcleo militar mais próximo de Bolsonaro, com direito a tentativa de assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes impactou a sociedade brasileira. Afinal, não é todo dia que se descobre uma trama golpista urdida por um presidente da república tentando a morte de seu sucessor. Essa descoberta escancarou o nível animalesco da política bolsonarista e escandalizou a “elite civilizada” do país, para a qual a volta de ruptura democrática seguida de golpe militar aparentemente soaria repugnante. 

Ora, mas calma lá: não foram exatamente os setores dominantes do mercado financeiro, com o trabalho incessante de propaganda da grande mídia e ações meticulosamente articuladas no poder judiciário que organizaram um verdadeiro golpe no país entre 2015 e 2018? Sim, eles mesmos. E mais, planejaram e executaram uma tentativa de assassinato civil e político de Lula, atropelando a Constituição, o processo penal e até o direito civil. Confabularam, planejaram e executaram o afastamento fraudulento de uma presidenta eleita e a prisão de Lula, com um único objetivo: interditar, à força, a vontade política da maioria e implementar uma agenda econômica de austeridade antipopular. 

Os golpistas de hoje já serviram aos propósitos dos golpistas de ontem. As mesmas dúvidas de fraude eleitoral que o bolsonarismo insiste em reforçar foram levantadas por Aécio Neves após derrota para Dilma, com a complacência da mídia, que ajudava a tocar fogo no país. Os militares radicalizados que hoje escandalizam a elite e sua mídia foram os mesmos por elas utilizados para fechar o cerco contra Lula, como no dia 03 de abril de 2018, quando o Jornal Nacional, da Globo, de forma leviana e golpista promoveu em rede nacional a nota do general Villas-Boas ameaçando o STF em caso de concessão de Habeas Corpus a Lula, então na iminência de ser preso. 

Bolsonarismo, mercado, mídia e parte do judiciário formavam, num passado recentíssimo, um mesmo bloco, cujo objetivo era implementar à força o pacote de austeridade econômica que beneficiaria estruturalmente a riqueza das elites econômicas, até então contido, atrasado ou, no limite, rejeitado pelo modelo de moderada distribuição de renda do lulo-petismo. Em livro publicado em 2021 o próprio general Villas-Boas conta detalhes sobre a confecção da famosa nota promovida pelo Jornal Nacional, revelando que ela foi elaborada por muitas mãos pelo mesmo alto comando militar hoje repudiado na mídia. E vai além, revela conversas com ministros do STF onde eles teriam garantido a prisão de Lula. 

De fato, no dia 4 de abril de 2018 o STF rejeitou o Habeas Corpus de Lula e abriu caminho para sua prisão, infundada, injusta e fruto das armações e atropelos constitucionais desde sempre explícitos por parte de Sergio Moro e sua trupe. O encarceramento de Lula representava a retirada violenta do principal adversário do plano de reestruturação das condições da acumulação de riquezas no país, o pacote de austeridade econômica de médio prazo iniciado por Temer. E assim foi feito, no fatídico dia 7 de abril daquele ano. Mas não parou aí. Lula não deveria só ficar preso, ele tinha que ser apagado da vida política, da memória e do cotidiano do país. Violentado, ele deveria se converter num morto vivo, isolado, calado, esquecido.

 Assim, em outubro daquele ano o STF escandalosamente proibiu até que Lula concedesse entrevistas, lhe tirou o direito de expressar-se e proibiu alguns poucos órgãos de imprensa interessados em entrevista-lo de exercerem seu papel garantido pela Constituição. Grandes veículos da mídia, como Globo e Estadão, não esbravejaram contra o fechamento de direitos democráticos caros à própria imprensa. Alias, sequer demonstravam interesse em entrevistar um personagem que mobilizava a atenção de centenas de líderes e personalidades mundiais e nacionais, que o visitavam todos os dias, e de milhares de pessoas comuns que lhe mandavam cartas e desejavam sua soltura. Não vale matéria? Claro que sim, mas a ordem era “matar” Lula, civil, política e historicamente. 

A ação da mídia, orientada pela elite econômica, era deliberadamente partidária e política. Enquanto apagava Lula seguia vinculando a “necessária virada de página” do país à implementação das reformas concentradoras de renda do pacote estrutural de austeridade, materializado pelo Teto de Gastos e pela Reforma da Previdência. Em paralelo, a ação de membros do judiciário, sempre prontos para garantir a prisão, a tortura (proibições para ida a velórios de familiares) e o silenciamento de Lula, gerou grave tensionamento em jurisprudências já estabelecidas, abalando o Estado Democrático de Direito. Cumplices de uma fraude judicial que afetou direta e decisivamente as eleições de 2018, o “alto comando” do projeto golpista austericida da elite econômica do país atacou frontalmente a vontade popular e a democracia.

E ali, aliado a eles, em segundo plano, o bolsonarismo e seu militares radicais. Eram a tropa disposta a fazer o jogo sujo enquanto mercado, mídia, o judiciário e sua “tecnicalidade” cuidavam de fazer o golpe não parecer o que de fato era, um golpe. Ocorre que Bolsonaro, o Frankenstein criado pela elite brasileira, superou seus concorrentes no interior desse grande bloco que unia taticamente, além dele, Lava Jato, mídia, mercado e setores do judiciário, tornando-se presidente e alçando seu movimento à condição de único com adesão das massas nesse conglomerado de forças. O bolsonarismo, então, ganhou vida própria, sobrepondo-se no interior do bloco, crescendo a ponto de ameaçar todos os outros setores dessa verdadeira frente golpista. 

No primeiro ano de seu mandato os sinais ofensivos não eram tão claros e ele implementava a agenda de austeridade econômica que motivou toda a trama, cuja representação máxima era a aprovação da reforma da previdência, ocorrida em 2019. Os jornalões o toleravam ajustando aqui e ali algumas críticas laterais, mesmo ele já tendo dado várias declarações a favor de torturadores e da ditadura de 1964. A elite econômica lhe rendia jantares e aplaudia a “política pró-mercado” de seu ministro da fazenda, Paulo Guedes. 

Confortável, com seu principal opositor preso e silenciado, Bolsonaro e seu movimento fascistoide avançaram, até colidirem abertamente com outras frações do bloco golpista durante a pandemia. Ali se abriu uma crise que foi agravando-se com o passar do tempo. Pior: o bolsonarismo recebia o respaldo internacional dos EUA, sob a presidência de Donald Trump, ator estranho à elite nacional, historicamente ligada aos planos coloniais dos democratas, que com Obama lhes deram sustentação, anos antes, para o golpe contra Dilma, o que garantiu uma vantagem a seus planos golpistas que Bolsonaro não teve em 2022.  

O desequilíbrio no interior do bloco golpista em favor do bolsonarismo consolidou-se, e ele mais e mais avançava contra a estrutura institucional construída pelo pacto das elites na Nova República. Então veio o rompimento. Os artífices do golpe do mercado deslocaram-se. Lula, a quem tentaram eliminar, passou a ser a única força política capaz de derrotar o monstro que eles haviam criado. As reformas trabalhista e previdenciária já haviam sido aprovadas, o Teto de Gastos unido aos efeitos da pandemia já havia preservado a riqueza e jogado 30 milhões de brasileiros na fome. Melhor seria manter as instituições democráticas estáveis num cenário de frágil maioria social do lulismo, deixando-o vivo, mas acuado, sem força para reverter o modelo econômico de austeridade, joia da coroa do golpe. 

O STF se redime, na figura de Alexandre de Moraes, que de fato cumpre papel importante no combate ao avanço do proto-fascismo. Mas segue dando sustentação às mudanças econômicas, trabalhistas e sociais implementadas pelo golpe fundamental, já executado, entre 2015 e 2021. A mídia, aquela mesma que deu sopro de vida ao barro disforme do bolsonarismo alimentando o antipetismo e o ódio vil a Lula, que deu sustentação a todas as atrocidades da Lava Jato contra o Estado Democrático de Direito, insurge-se “heroicamente” contra o arbítrio de Bolsonaro. No entanto, segue chantageando o governo para que ele não mude a política estrutural de austeridade que garante a espoliação do povo brasileiro em favor do enriquecimento da elite econômica. Segue, também, defendendo o golpe primordial. 

Todos eles juntos tentaram matar Lula, que foi salvo pela energia, pela emoção e pela memoria do povo brasileiro mais pobre, dos rincões do país, que nem na prisão o abandonou, preservando assim sua força política. Para boa parte do povo trabalhador do país a única garantia de preservação do mínimo de dignidade e direitos frente à economia política tirânica, frente à economia política da fome e da morte da austeridade fiscal das elites, razão fundamental dos ataques à democracia nos últimos 8 anos, era e segue sendo seu líder carismático popular: Luiz Inácio Lula da Silva. 

Que Lula e o PT lembrem sempre da generosidade e grandiosidade do povo brasileiro, que em seu sofrimento e mesmo bombardeado pela propaganda e pela trama do grande bloco golpista, o escolheu novamente para a presidência da república, com um só desejo: voltar a ter avanços humanos, sociais e, esses sim, democráticos, que a imposição da agenda econômica perversa da austeridade interrompeu. 

Que lutemos contra o bolsonarismo, que denunciemos e prendamos os militares que tentaram, sob intenso delírio, reviver 1964. Mas que não esqueçamos que a verdadeira razão das sucessivas tentativas de golpe recentes é a manutenção de privilégios de uma elite tacanha, as custas do sofrimento do povo brasileiro. E nesse caso, é preciso também desengatilhar a arma da austeridade fiscal apontada contra todos nós e contra nossa democracia social, desde 2016. 

É preciso voltar a organizar o campo popular e recobra-lo do verdadeiro sentido da defesa da democracia e das intenções das frações de classe em luta no país desde a última década. Por democracia, memória e justiça. E pela construção de um outro Brasil.    

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.

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