A estratégia política que norteia as ações do governo Lula III está prestes a colapsar. Os principais setores hostis ao presidente ganham força, enquanto sua base social começa a dar sinais de impaciência. Vai se configurando um verdadeiro cerco ao governo, que segue sem nada positivamente impactante para entregar às classes populares, refém que está do programa econômico liberal, a exigir cada vez mais austeridade, e da base classista e fisiológica do centrão comandada por Lira no congresso.
A situação atual é fruto da escolha por uma forte aproximação com a elite econômica brasileira e seu programa ultraliberal para isolar o bolsonarismo, até que o mau tempo passe e o presidente possa gradualmente se tornar mais autônomo em relação à agenda econômica da burguesia. A aproximação entre o campo lulista e o liberal ocorreu, porém, de maneira desequilibrada, dado que esse segundo grupo é o real detentor do poder no Brasil e, após uma vitória apertada de Lula nas eleições, viu a possibilidade de exigir a aceitação máxima de seu programa econômico como condição para ajudar o governo a navegar em mares tempestuosos.
Acontece que nunca esteve descartado o cenário de reaproximação entre a elite liberal e a extrema direita, sobretudo uma vez inabilitada judicialmente a ala golpista dos reacionários liderada pelo clã Bolsonaro. Uma alternativa reacionária comprometida com a preservação das instituições liberais sempre pôde ser abraçada pela burguesia brasileira, como agora se ensaia nessa grande ofensiva contra o governo. Isso porque os mínimos ganhos marginais que o lulismo precisa extrair em favor das classes populares para sobreviver politicamente incomodam a elite liberal.
No cenário de hostilidade atual até mesmo o sucesso na extração desse mínimo popular está exigindo algum nível de confronto por parte do governo. E aqui chegamos ao ponto central das dificuldades da estratégia lulista: a disputa aberta entorno do conflito distributivo no Brasil não faze parte da política do lulismo. Lula está agora simplesmente aplicando a mesmíssima estratégia de seus dois primeiros governos: tudo se negocia a portas fechadas com as elites, tendo como base seus interesses fundamentais, em busca de ganhos às classes populares, utilizando a força social do presidente da república. O povo, para ser incluído no orçamento, precisa ficar fora da política. Esse é um elemento estrutural do lulismo, que permanece.
Se a mobilização popular está fora da receita o que resta é a resolução de tudo em diálogo com as elites econômicas e seus serviçais no Parlamento e no Judiciário. Ocorre que essa estratégia está absolutamente defasada, pois o Brasil mudou muito nos últimos anos. De lá pra cá duas transformações em especial impactam com muita força a clássica estratégia lulista. A primeira é a deterioração da economia brasileira. Lula agora é forçado a negociar ganhos para os de baixo sem a “fartura econômica” de seus tempos áureos, quando podia operar um jogo de ganha-ganha entre as classes. Sem grande apelo entre as massas insatisfeitas e educadas pelo lulismo a só reagirem nas eleições, qual arma tem ele nesse momento para preservar sua força?
Outra mudança fundamental foi o enfraquecimento da Presidência da República, instituição mais diretamente vinculada à vontade popular no país. Desde o golpe contra Dilma e de forma institucionalizada durante o governo Bolsonaro, o parlamento aproveitou o vácuo de poder e agigantou-se a ponto de passar a decidir sobre parte expressiva do orçamento gerido pelo executivo. Sem grande apelo entre as massas e com o enfraquecimento da presidência, o que resta a Lula?
Para completar, hoje existe uma oposição anti-Lula encarniçada, o bolsonarismo, com grande capacidade de mobilização de rua e com uso violento das ferramentas digitais, que lhes ajudam a massificar versões falsas contra o governo. Isso definitivamente não existia no auge do lulismo, 15 anos atrás.
Frente a essas novidades a estratégia lulista de negociação recuada com a burguesia está superada. A repetição anacrônica dela obriga também o próprio PT a uma postura defensiva frente às maiorias sociais e às novas gerações, num momento de crise histórica onde elas exigem firmeza ideológica, mobilização social e um horizonte de mudanças reais e profundas. Essa estratégia leva a esquerda a, inversamente, focar sua ação quase exclusivamente em negociações no interior de um sistema político esgarçado, decadente e odiado pelo povo.
Isso tudo torna a lógica política do lulismo não só insuficiente, mas capaz de conduzir a uma grande derrota. Ao partir de um programa econômico austericida e ao focar sua atuação no interior das instituições, ao invés de estar construindo maioria social consistente, o lulismo ajuda os liberais a preservarem seu sistema e perde apelo nas massas para enfrentar os bolsonaristas nas ruas. Ou seja, faz o jogo dos dois outros campos na política, enquanto é mantido refém na economia, ao mesmo tempo em que perde o lugar de referência social em seu próprio campo, ávido por um projeto novo e ousado para o país.
Nada poderia ser mais antipopular e arriscado. A miopia do núcleo da inteligência petista quanto aos perigos desse cenário explosivo é impressionante. Se o lulismo não perceber que a última década acelerou o tempo histórico e que o momento exige forte enfrentamento ao neoliberalismo e à sua face reacionária ao mesmo tempo chegará em breve a seu fim, e com ele parte importante da esquerda.
Estamos diante, portanto, não apenas de um momento ruim do governo, mas de uma crise histórica do modelo político do lulismo, cuja resolução só pode ocorrer com a incorporação do enfrentamento ao modelo econômico da elite liberal e com o transbordamento da política para a vida das massas populares. Tal resolução inauguraria um novo momento da esquerda brasileira, que passaria finalmente a ter seu maior líder de massas fazendo a disputa de classe de forma mais aberta no exercício da presidência. Seria uma mudança do tamanho que o momento histórico exige.
A essa altura podemos nos perguntar: existiria um Lula para além do lulismo? Se não houver, possivelmente estamos presenciando o limite histórico de uma das maiores figuras brasileiras. Mas se esse líder popular tiver capacidade de reinventar-se outra vez e abandonar a ideia segundo a qual confronto é sinônimo de fracasso ainda é possível sair do cerco. É possível começar a demarcar ao menos alguns espaços à esquerda no governo, que produzam políticas populares e forcem um maior investimento público, ao mesmo tempo em que Lula comece a exercer o poder da presidência e passe a falar diretamente com as massas, enquanto o leme do navio vai girando noutra direção.
Porém, se Lula seguir refém do próprio modelo que criou veremos um governo recuando mais e mais, a começar pela abertura de secretarias do palácio do planalto ao centrão. De recuou em recuo a antiga lógica do lulismo aumentará gradualmente o isolamento político e social, até a derrota final.
É hora de confiar no povo brasileiro, que já mostrou sua coragem tantas vezes, e agora nos cobra reciprocidade. Não o decepcionemos. É hora de mudar.