A insistência da direção do Banco Central, liderada por Roberto Campos Neto, em manter nas alturas a taxa de juros da economia reacendeu o debate sobre o papel dessa instituição e os impactos de sua política na vida do país. A economia brasileira, que há anos patina sem decolar sofre mais um choque contracionista inibidor do crescimento com a manutenção da Selic em altos patamares, sob pífias justificativas.
Na verdade, o que se percebe é um Banco, agora legalmente autônomo, liderando um projeto próprio para a economia brasileira. Com a autonomia ele pretende incidir sobre a estratégia de crescimento e desenvolvimento do país a partir da perspectiva da direção atual, qual seja, de proposital retração da economia através da política de juros, que garanta lucro imediato aos financistas e mantenha o governo constrangido e sitiado pelo mercado, às custas do povo brasileiro.
Esse é o risco que corre uma sociedade ao conceder autonomia ao Banco Central. Aliás, tramita no Congresso uma proposta de emenda à constituição (a PEC 65), que quer aprofundar e constitucionalizar essa autonomia, a fim de transformá-la em independência completa, ainda que para muitos estudiosos não haja, na prática, diferença entre autonomia e independência quando os instrumentos sob controle dessa instituição são tão poderosos quanto juros e câmbio, caso brasileiro. Acrescente-se que no Brasil o início e o fim dos mandatos do presidente da república e do presidente do banco central não coincidem.
No plano prático a autonomia do Banco Central pode gerar uma grave falta de coordenação nas políticas econômicas, na medida em que permite a este órgão não levar em consideração os objetivos gerais da economia política definida pelo governo legitimamente eleito. Política fiscal e monetária passam a ser tocadas separadamente, causando um grave desencontro no planejamento econômico.
Na dimensão política o risco é facilmente percebido: com o BC autônomo há uma proibição explicita da relação entre soberania popular e a gestão plena da política econômica, na medida em que a direção do Banco pode impedir a execução da agenda escolhida democraticamente pelos eleitores, como vem ocorrendo no Brasil atualmente.
Vivenciamos agora mesmo uma quebra de braço entre um governo que foi eleito prometendo diminuir as desigualdades e uma elite financeira que não topa arcar com os custos da saúde fiscal do Estado brasileiro através de mais impostos para os ricos. Tampouco permite qualquer debate sobre os gastos do governo com o pagamento dos juros da dívida. Para ela a questão fiscal tem que ser resolvida com cortes em gastos primários, prejudicando benefícios como o BPC, concedido às pessoas mais pobres do país. Seria necessário apertar ainda mais os pobres para que os ricos sigam tendo seus privilégios bancados pelo Estado.
Nesse cenário de desacerto sobre a gestão do conflito distributivo no país o Banco Central é um instrumento importante, na medida em que coordena aspectos fundamentais da macroeconomia, que incidem fortemente sobre o conjunto da população. Aliás, não só maneja instrumentos como gere recursos que pertencem ao povo brasileiro, como as nossas reservas cambiais. Ao tornar-se autônomo em relação ao governo eleito o Banco vira presa fácil do mercado financeiro, que passa a ser seu interlocutor direto, sem a intermediação da vontade popular expressa nas urnas. Essa influência é usada, via política de juros, para constranger o governo eleito a manejar a política fiscal de acordo com o interesse de uma exígua minoria, em detrimento da maioria que o elegeu.
Diferente da fantasia propagada pela teoria política liberal, a autonomia do Banco Central só existe em relação ao governo, e ao invés de desconcentrar o poder do Estado ajuda a concentrar o poder nas mãos de pouquíssimos operadores do mercado, sem adequado controle democrático.
Não é difícil perceber tratar-se de uma usurpação da soberania popular, um atalho que a elite financeira encontrou para que seus interesses e suas teses escapem das urnas, burlando o caminho democrático. Usurpação potencializada em países periféricos de superexploração como o Brasil, onde até mesmos as mais simples tentativas de mediação e pactuação civilizatória são rejeitadas pela elite.
Para o neoliberalismo, no entanto, é preciso conter a democracia. A soberania popular vira mera formalidade, as instituições políticas tornam-se reféns do mercado e os governos eleitos sofrem infinitamente mais influência da ínfima minoria rica que das maiorias sociais. Numa linguagem republicana clássica, à moda maquiaveliana, ao aplicar essa perspectiva poderíamos estar facilmente a falar de sociedades que degeneram para um sistema oligárquico, jamais repúblicas, e muito menos uma república democrática. A chamada crise da democracia tem mais a ver com isso que qualquer outra coisa.
Rejeitar a autonomia do Banco Central é defender a democracia, sistema político que garante à plebe fazer-se escutada, regime que promete formar uma razão pública e conformar vontades políticas através da voz popular. Nela, os técnicos, sejam eles simples assessores ou o diretor de uma autarquia, não são nada mais que agentes subordinados, a serviço das políticas escolhidas a partir das necessidades das maiorias sociais. Numa democracia o poder final deve ser da gente comum, não dos tecnocratas.
Os que defendem a prevalência da cidadania e o fortalecimento da democracia precisam se importar com a capacidade dela incidir sobre funções econômicas ora intocadas, prejudicando o esquema capitalista-neoliberal de cisão entre economia e política. É por esse viés que precisamos olhar a questão da autonomia do Banco Central.
Os Roberto Campos Neto e outros medíocres da mesma estirpe passam. O que não pode passar são os instrumentos democráticos que ainda possuímos para resistir ao avanço feroz de um capitalismo cada vez mais implacável.
Lutemos, então, verdadeiramente pela democracia.
**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Revista Fórum.