CRÔNICA

Começa na cozinha – Por Esther Rapoport

Imagino que muitos dos meus leitores habituais estavam esperando o momento no qual me dedicaria à gastronomia. Vou tentar falar de gastronomia na Alemanha

Bratwurst, a salsicha alemã, com repolho.Créditos: CCNULL/Creative Commons
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O texto de hoje começa na cozinha, mas não sei onde vai terminar. Ficou curioso? Então mãos à obra.

Imagino que muitos dos meus leitores habituais estavam esperando o momento no qual me dedicaria à gastronomia. Vou tentar falar de gastronomia na Alemanha.

Para quem morou na Itália e pesquisou um pouco sobre a História da Itália através da sua gastronomia, de norte a sul da península, o texto sobre a Alemanha vai ficar bem curtinho: 

Salsicha, repolho e batata. Necessariamente nesta ordem!!!

Ok ... tem joelho de porco (Eisbein), tem também o schnitzel (de porco), tem a perna do porco (Schweinebeine) e tem ainda o Rouladen, que é um rocambole de carne... de porco.

É, a estrela da cozinha é o porco. Mas isso eu já tinha contado quando estava na Itália, lembra?

O confronto cultural entre os romanos e os germânicos foi também um confronto de valores alimentares. A cultura do pão, vinho e óleo, símbolo do desenvolvimento cultural romano, de um povo que havia desenvolvido uma agricultura e elaborava tecnologicamente sua produção (transformação do trigo, da uva e da azeitona) se chocou, para depois se mesclar, com a cultura de povos com uma estreita ligação com a Floresta, de onde extraíam a carne, o leite, o toucinho (gordura animal) e a manteiga, símbolos alimentares de quem praticava a caça, o extrativismo, a vida selvagem nos bosques do norte, revelando ausência de conhecimentos técnicos agrícolas.

A herança pastoril medieval da floresta se apoiava na criação do porco. Selvagem ou doméstico, este animal esteve sempre muito presente na alimentação europeia onde nunca foi proibido por nenhuma tradição religiosa ou cultural local, diferente do Egito, do Islã e da Palestina judaica.

Mas um porquinho selvagem, um javali, alimenta quantos? Se o cliente for o Obelix, vai metade do rebanho. E estamos falando da Baixa Idade Média, de vilarejos explorando os recursos naturais sem planejamento, sem tecnologia, sem excedente de produção.  Não sobravam alimentos, por isso foram desenvolvidas formas de aproveitar todos os recursos e não desperdiçar nada, e técnicas para preservar o que se produzia em determinada estação do ano, para alimentar a família nos meses seguintes, sem geladeira!

Alguém teve então a ideia de usar os intestinos do animal e colocar dentro o que sobrou da carne dele, amarrar bem e deixar secar para conservar. O clima frio e os ventos secos da região que depois vai se tornar a Alemanha, eram especialmente favoráveis e essa técnica se espalhou por aqui. E cada região foi imprimindo uma personalidade diferente na sua produção, uma característica específica do povo e da região que a produzia, um que temperava a carne com uma erva típica daquele local, outro que acrescentava uma carne de vitela que sobrara também, um fazia o embutido mais longo, outro mais grosso, um que cozinhava, outro assava, e assim os alemães inventaram uns 1500 tipos diferentes de salsicha (e linguiça porque aqui não tem diferença entre elas).

As salsichas alemãs se chamam “Bratwurst” e uma explicação para este nome diz que “Brat” seria uma palavra do alemão antigo, falado entre os séculos IX e XI, que deveria significar “carne sem desperdício”. Já “Wurst” derivaria da palavra “Wirren” que significaria “mistura”. Achei essa explicação meio que “sob medida”, não me convenceu muito, previsível, né? 

Embora Otto Von Bismarck, o chanceler de ferro, tenha dito: “Quanto menos as pessoas souberem como se fazem as salsichas e as leis, melhor dormirão à noite“, as autoridades não brincavam com a saúde da população e desde o século XV existem regras severas para produzir essa iguaria germânica, com comitês encarregados de controlar a qualidade dos ingredientes e da produção.

Jurei que não ia fazer um guia gastronômico, mas antes que vocês reclamem de um texto superficial, eu aprofundo a informação. Hoje elas são classificadas em três grupos: 

  • Rohwurst - feitas com ingredientes crus e podem ser também defumadas
  • Brühwurst – o recheio parece um patê, como as de cachorro-quente
  • Kochwurst - as carnes usadas foram previamente cozidas.

Aí tem as famosas, como a Berliner Currywurst, que se trata de uma bratwurst assada, cortada em rodelas e servida com ketchup e curry, e é um prato típico de Berlim. Tem também as salsichas DOC (denominação de origem controlada, como os melhores vinhos e queijos), como a Thüringer Rostbratwurst , que ganha esse nome somente se produzida no estado alemão da Turíngia (Thüringer). E a Nüremberger Bratwurst, que tem que ser feita em Nürnberg e por definição tem que ter entre 7 e 9 centímetros, ser fina e temperada com manjericão. Mas se a produção só acontece em Nuremberg, a venda se faz no país todo e até o McDonald's incluiu essa iguaria em seu cardápio, criando um negócio chamado de Nürnburger

Salsicha no McDonald's tudo bem, difícil é encará-las quando você está no hospital e te servem duas delas, com repolho cozido como primeira refeição depois de 36 horas de jejum.

E tem salsicha até no reino animal, como os cachorros (sem trocadilho) que não são quentes, mas são os Dachshund, o cão-salsicha, raça criada aqui. Aliás, se existe uma lista de filósofos alemães, de ganhadores de Nobel alemães, de cientistas alemães, tem uma longa lista de raças caninas desenvolvidas na Alemanha. Quer dar uma olhada?? 

Pastor alemão. Dizem que se desenvolveu no sul da Alemanha, no século XIX, de um animal híbrido entre cão selvagem e lobos. Um cara tinha um desses e que se chamava Hektor. Ele resolveu rebatizar o amiguinho como “Horand von Grafrath”, e fundou um clube, o do Pastor Alemão. E esse pimpolho, com nome de conde, se tornou o pai da raça.

Depois tem a história de Karl Friedrich Louis Dobermann que em 1860 cruzou uma cadela de pastor alemão com outras 5 raças e as ninhadas seguintes foram chamadas de “cães do Dobermann”. Em 1898 um deles foi registrado como “Graf Belling von Groenland”, nome de barão, e deu início a uma nova raça, os dobermanns.

Tem também o Boxer, que é fruto da mistura do Bullenbeisser com o buldogue inglês.

E para não ficar prolongando ad nauseum esse papo animal, encerro com um exemplo de imigração, sempre meu tema de preferência.

É a história dos cães romanos, os molossus, que no início da Era Cristã emigraram para o norte, atravessaram os Alpes e chegaram na Floresta Negra onde encontram cães locais, em geral pastores de gado, que pertenciam aos açougueiros, e se misturaram com eles, com os cães locais, não com os açougueiros. (um parênteses único neste texto: naquela época os açougueiros cuidavam da produção da carne do começo ao fim, desde o pasto até o balcão)

Com a chegada das ferrovias no território, houve uma mudança profunda na dinâmica das cidades e do campo, os rebanhos não transitavam mais nas estradas e esses cães pastores foram desaparecendo.

Mas na cidade de Rottweil sobrou uma fêmea. Esta fêmea, depois de cruzar com outros cães pastores, deu origem à uma nova ninhada, que deu origem a novas famílias, que deu origem a uma nova raça, que homenageando a cidade, deu a um macho chamado “Russ von Bruckenbuckel”, nome de príncipe, o título de primeiro Rottweiler da história.

Moral da história: se misturou tudo e tanto até se chegar ao híbrido perfeito para então chamá-lo de “Raça Pura”.  

Coisas da Alemanha...

Abraços!

**Este artigo não reflete, necessariamente, a opinião da Fórum

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